domingo, 18 de março de 2018

Saudinha, é o que se deseja



Também se fala em “muita saúde”, “boa saúde” e os “Parabéns a você” não deixam de acentuar os “muitos anos de vida”, quer a novos quer a velhos, seja qual for o número de velas a apagar do bolo, o que pode indiciar certa hipocrisia, se formos a ater-nos ao que afirma Bagão Félix sobre o menosprezo pela velhice, quando se trata de saúde pública. Mas não creio nisso. A vida é uma bênção em qualquer idade e quero pensar, talvez puerilmente, no amor da família, crendo no amor dos velhos pela sua família a progredir, e dos novos pelos seus velhos a apagar-se. Genericamente, pelo menos.
Mas o facto é que tanto Bagão Félix como António Barreto se debruçam sobre a questão dos Serviços de Saúde em crise – de valores o de Bagão Félix, mais optimista o de António Barreto, preferentemente insistindo no foro social, de greves reivindicativas de melhores condições económicas, pelos responsáveis pelos doentes, esquecidos estes. Mas ambos acentuam a crise, num país que produz pouco e deixa morrer, também, os próprios monumentos do passado, como essa “escadaria do Convento de Cristo”, a precisar de “tratamento” e bons cicerones, o que leva António Barreto a afirmar, com tristeza: “o património faz-nos, é também o que nós somos”. E regressamos ao velho “ser ou não ser” da questão, que também se processa nos novos, como o próprio Hamlet evidenciou, num clima de violência, que o eliminou bem cedo. Mas outros o criaram, o património, de par com as glórias, e os de agora dilapidam-no ou maltratam-no, indiferentes a isso, heróis de novos projectos de vida. “Somos” assim.

Eutanásia: financeira até ver...
O primado frio das estatísticas que hoje domina a política é, também, uma forma perigosa de se iludir a realidade. Na saúde, antes dos números estão sempre as pessoas, antes da aparência estatística está a realidade percepcionada por cada doente.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 9 de Março de 2018
Há dias, foi noticiada a demissão de directores clínicos do Hospital de Faro, alegadamente por pressões superiores para que fossem dadas altas médicas mais cedo do que o devido, e também uma “sugestão” para cortes nos exames a idosos. As acusações foram, entretanto, refutadas pela Administração.
Relacionado com este tipo de notícias (recorrentes) lembro-me que, há alguns anos, a propósito de um parecer do Conselho de Ética para as Ciências da Vida, se falou no “racionamento ético” (foi o termo) no uso de alguns medicamentos oncológicos, contra a sida e artrite reumatóide, responsáveis por parte significativa do gasto com fármacos quando se trata de prolongar a vida dos doentes. No fundo, estaríamos perante a fórmula “viver mais 1 mês custa x, 6 meses custa y. O que fazer?”
É óbvio que a economia da saúde está cada vez mais dependente da saúde da economia. Nada de incomum, mas com a enorme diferença de, aqui, estar em jogo o mais absoluto valor: o da vida. Daí a necessidade de uma séria ponderação de custo-benefício e de equidade dos gastos. Pela sua natureza o bem “cuidados de saúde” é, muitas vezes, rival, ou seja, o seu consumo por alguém impede outrem de o consumir, o que se manifesta nas filas de espera, na aceleração inadequada dos cuidados prestados ou na sua degradação.
Por outro lado, o notável desenvolvimento tecnológico tem tendência a aumentar e não a diminuir os custos unitários dos cuidados de saúde, porque frequentemente concretizados por instrumentos cumulativos e não substitutivos de diagnóstico e de terapêutica, conduzindo a uma prática de medicina mais defensiva e cara.
Também é difícil combater o “pecado original” do princípio do terceiro pagante que advém da circunstância de o efectivo promotor dos cuidados de saúde não ser o seu pagador. De um modo caricatural, o médico prescreve, o doente consome, o Estado paga.
Nos cuidados de saúde entrecruzam-se a centralidade da pessoa (e não das corporações), a equidade e a tempestividade no seu uso, estritas regras éticas e deontológicas, a evolução tecnológica alucinante e uma revolução no domínio da genética que levanta novas e insondáveis interrogações. É, pois, necessário maior rigor na gestão dos meios e a assimilação pelo prestador das responsabilidades de gestor de recursos escassos. A tudo isto, porém, responde-se digladiando com ideologia, o que tem tornado a Saúde refém do imobilismo.
No Orçamento do Estado para 2018, a despesa pública global de Saúde será de 10.289 milhões de euros, dos quais 8427 respeitam ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) (não considerando sequer os crónicos défices e o aumento de dotações de capital para os Hospitais EPE). Isto corresponde a 997 euros por cada pessoa/ano e equivale a 84% do IRS arrecadado e a 24,3% da totalidade dos impostos directos e indirectos.
O espartilho orçamental é limitativo, mas não justifica tudo. E muito menos permite visões redutoras do valor da vida. Imersa na primazia da quantidade, a pessoa corre o risco de ser reduzida à condição indigna de “quase-número”.
Nos cuidados a prestar às pessoas mais idosas, há mesmo a ideia cretinamente utilitarista e humanamente perversa de que não vale a pena “investir” na saúde dos velhos.
O poder da tecnocracia e da burocracia é também acentuado. Não é por acaso que o sistema de saúde público deve ser o único sector que se queixa da procura e vê o seu aumento como uma fatalidade e não como uma oportunidade! Também o poder do organicismo sobre a humanização dos cuidados de saúde é preocupante. A segmentação e compartimentação das respostas conduzem, não raro, à sua insuficiência e iniquidade para problemas que são globais, ou mesmo à sua omissão funcional constituindo quase “terras de ninguém” (vejam-se os cuidados continuados e geriátricos e a saúde mental).
E não nos esqueçamos que a ética de cuidar vai para além da ética de curar. A ética de cuidar é mesmo decisiva quando falamos da velhice. Se formas explícitas ou larvares de “eutanásia financeira” fazem doutrina, que futuro para os cuidados continuados? Ser velho passou a ser definitivamente um encargo? Dantes, a velhice significava uma dignidade, hoje parece, cada vez mais, significar só um peso.
Em Portugal desvalorizou-se a vida antes do nascimento. Agora quer-se desvalorizá-la antes da morte. Com uma desumana equação de euros versus um pedaço métrico de vida.
Este é o país onde há dinheiro para o aborto voluntário e respectiva licença paga pela Segurança Social. Mas, ao mesmo tempo, querem-se “tabelar”, por razões de insuficiência financeira, cuidados durante a vida ou para o seu tempo final.

A desigualdade na saúde
ANTÓNIO BARRETO
DN, 18/2/18
É provável que a saúde em Portugal esteja à frente do progresso. A saúde e, em particular, o Serviço Nacional de Saúde vêm antes dos outros, educação, segurança social, justiça, protecção civil e segurança, em eficácia e qualidade. A razão parece simples: é o sector menos ideológico, menos submetido à polémica partidária, mais exposto à opinião, influenciado pela ciência, aberto ao mundo e com superior responsabilidade dos técnicos e cientistas.
O Serviço Nacional de Saúde é justamente defendido por quase toda a gente. Há polémicas, desde o papel da ADSE aos subsistemas, passando pela concorrência e pelo papel dos privados. Isso é certo. Mas o papel essencial do SNS não é posto em causa. Partidos de esquerda e de direita são convergentes, ninguém sugere a sua extinção. Mesmo se o pensam, não o dizem. Ricos e pobres defendem o SNS. Utentes de unidades públicas e das privadas defendem o SNS.
É verdade que há quem queira dominar a medicina privada, limitando-a ou proibindo-a. Como há quem queira privatizar a saúde pública. Mas não parece que estas opiniões tenham muitos seguidores nem sequer hipóteses de se concretizar, a não ser nas cabeças dos polemistas de serviço nos partidos, nas ordens e nos sindicatos.
A actual agitação no universo da saúde, especialmente pública, tem causas clássicas: carreiras profissionais, vencimentos, horários, folgas... O habitual. Quando os profissionais falam em qualidade dos cuidados, "para bem dos doentes", estão evidentemente a usar eufemismos para o que está em causa: as condições de trabalho. Mas existem também as tentativas de intervenção dos partidos políticos, de esquerda e de direita, que tentam perturbar o governo ou obter vantagens.
O problema novo é que parece que a saúde está em crise. As dívidas estão descontroladas. Há talvez cinco ou dez anos, a situação sanitária tem vindo a deteriorar-se. Menina de 15 anos, com mais de 40 graus de febre espera na urgência até seis horas para ser atendida. Rapaz de 15 espera seis meses por cirurgia urgente. Senhora de 70 fica deitada numa maca no corredor durante três dias, para tratamento urgente. Medicamentos em falta nas farmácias e nos hospitais. Os tempos de espera por consulta, exame, análise e cirurgia aumentam. Estes casos não são literatura: são de pessoas conhecidas que se dirigiram às urgências dos melhores hospitais públicos da sua área de residência.
Que provoca a deterioração do serviço? O número de profissionais parece não ser. Na verdade, o aumento de médicos e de enfermeiros por habitante é constante há várias décadas: Portugal era o último país da Europa em 1980 e é hoje um dos primeiros. Quebra de qualidade e competência dos profissionais? Nada faz crer nisso. Situações epidémicas graves? Não parece. Fuga dos bons profissionais públicos para as entidades privadas? O argumento é puramente demagógico.
Sempre na esperança de que estudos independentes possam dizer mais, tudo leva a crer que estejamos diante de dois factores primordiais: baixa de financiamento e organização deficiente. Esta, apesar dos enormes progressos registados nos últimos trinta anos, continua a ser uma forte razão. Ineficiência que se traduz ou resulta da falta de autonomia, do poder excessivo dos corpos profissionais, da confusão de funções, da acumulação de vínculos em sectores privados e públicos e da falta de recompensa para a gestão de mérito.
Mas a primeira razão parece mesmo ser a da redução do financiamento. É verdade que a despesa com saúde, em percentagem do PIB ou por habitante, tem descido. Parece estar agora em recuperação, mas muito ligeira e lenta. Que será preciso para que se mantenha a saúde no topo das prioridades? Com o máximo de controlo financeiro? Com o mínimo de desperdício? Com um real esforço de eficácia social, isto é, uma tentativa permanente de evitar que os menos afortunados e os mais pobres não estejam a ser sistematicamente desprezados nas filas de espera e na qualidade do atendimento?
A desigualdade social na saúde é a mais cruel de todas.

AS MINHAS FOTOGRAFIAS
Convento de Cristo, Tomar
ANTÓNIO BARRETO
Escadaria principal de acesso à igreja, à Charola e aos claustros. Este é um dos grandes monumentos, como a Batalha, Alcobaça e Jerónimos: são os mais visitados pelos turistas portugueses e estrangeiros. Todos tão elogiados e tão menosprezados, bem mereciam neste Ano Europeu do Património Cultural mais atenção, melhores políticas, mais recursos e uma visão consistente que permitisse ordenar, preservar, estudar e divulgar sem estragar... Alguns destes monumentos de enorme dimensão e complexidade não chegam a ter uma dúzia de técnicos e funcionários que vendam bilhetes, acompanhem, estudem, divulguem, guardem, conservem, protejam, administrem...  Será assim tão difícil a qualquer governo, a qualquer ministro, a qualquer partido considerar realmente prioritário este património único e irrepetível, sempre em risco de se deteriorar, sempre à beira de ser roubado e destruído, como já foi tantas vezes e ainda é? A questão é simples: o património faz-nos, é também o que nós somos.

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