Também se fala em “muita saúde”,
“boa saúde” e os “Parabéns a você” não deixam de acentuar os “muitos anos de
vida”, quer a novos quer a velhos, seja qual for o número de velas a apagar do
bolo, o que pode indiciar certa hipocrisia, se formos a ater-nos ao que afirma Bagão
Félix sobre o menosprezo pela velhice, quando se trata de saúde pública.
Mas não creio nisso. A vida é uma bênção em qualquer idade e quero pensar,
talvez puerilmente, no amor da família, crendo no amor dos velhos pela sua
família a progredir, e dos novos pelos seus velhos a apagar-se. Genericamente, pelo menos.
Mas o facto é que tanto Bagão
Félix como António Barreto se debruçam sobre a questão dos Serviços
de Saúde em crise – de valores o de Bagão Félix, mais
optimista o de António Barreto, preferentemente insistindo no foro
social, de greves reivindicativas de melhores condições económicas, pelos
responsáveis pelos doentes, esquecidos estes. Mas ambos acentuam a crise, num
país que produz pouco e deixa morrer, também, os próprios monumentos do passado,
como essa “escadaria do Convento de Cristo”, a precisar de “tratamento”
e bons cicerones, o que leva António Barreto a afirmar, com tristeza: “o
património faz-nos, é também o que nós somos”. E regressamos ao velho “ser
ou não ser” da questão, que também se processa nos novos, como o próprio Hamlet
evidenciou, num clima de violência, que o eliminou bem cedo. Mas outros o
criaram, o património, de par com as glórias, e os de agora dilapidam-no ou
maltratam-no, indiferentes a isso, heróis de novos projectos de vida. “Somos”
assim.
Eutanásia: financeira
até ver...
O primado frio das
estatísticas que hoje domina a política é, também, uma forma perigosa de se
iludir a realidade. Na saúde, antes dos números estão sempre as pessoas, antes
da aparência estatística está a realidade percepcionada por cada doente.
ANTÓNIO BAGÃO FÉLIX
PÚBLICO, 9 de Março de
2018
Há dias, foi
noticiada a demissão de directores clínicos do Hospital de Faro, alegadamente
por pressões superiores para que fossem dadas altas médicas mais cedo do que o
devido, e também uma “sugestão” para cortes nos exames a idosos. As acusações
foram, entretanto, refutadas pela Administração.
Relacionado com este tipo
de notícias (recorrentes) lembro-me que, há alguns anos, a propósito de um
parecer do Conselho de Ética para as Ciências da Vida, se falou no “racionamento
ético” (foi o termo) no uso de alguns medicamentos oncológicos, contra a sida
e artrite reumatóide, responsáveis por parte significativa do gasto com
fármacos quando se trata de prolongar a vida dos doentes. No fundo, estaríamos
perante a fórmula “viver mais 1 mês custa x, 6 meses custa y. O que fazer?”
É óbvio que a economia
da saúde está cada vez mais dependente da saúde da economia. Nada de
incomum, mas com a enorme diferença de, aqui, estar em jogo o mais absoluto
valor: o da vida. Daí a necessidade de uma séria ponderação de
custo-benefício e de equidade dos gastos. Pela sua natureza o bem “cuidados
de saúde” é, muitas vezes, rival, ou seja, o seu consumo por alguém impede
outrem de o consumir, o que se manifesta nas filas de espera, na aceleração
inadequada dos cuidados prestados ou na sua degradação.
Por outro lado, o
notável desenvolvimento tecnológico tem tendência a aumentar e não a diminuir
os custos unitários dos cuidados de saúde, porque frequentemente concretizados
por instrumentos cumulativos e não substitutivos de diagnóstico e de
terapêutica, conduzindo a uma prática de medicina mais defensiva e cara.
Também é difícil combater o
“pecado original” do princípio do terceiro pagante que advém da circunstância
de o efectivo promotor dos cuidados de saúde não ser o seu pagador. De um
modo caricatural, o médico prescreve, o doente consome, o Estado paga.
Nos cuidados de saúde
entrecruzam-se a centralidade da pessoa (e não das corporações), a
equidade e a tempestividade no seu uso, estritas regras éticas e deontológicas,
a evolução tecnológica alucinante e uma revolução no domínio da genética que
levanta novas e insondáveis interrogações. É, pois, necessário maior
rigor na gestão dos meios e a assimilação pelo prestador das responsabilidades
de gestor de recursos escassos. A tudo isto, porém, responde-se digladiando
com ideologia, o que tem tornado a Saúde refém do imobilismo.
No Orçamento do Estado
para 2018, a despesa pública global de Saúde será de 10.289 milhões de euros,
dos quais 8427 respeitam ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) (não considerando
sequer os crónicos défices e o aumento de dotações de capital para os Hospitais
EPE). Isto corresponde a 997 euros por cada pessoa/ano e equivale a 84%
do IRS arrecadado e a 24,3% da totalidade dos impostos directos e indirectos.
O espartilho orçamental
é limitativo, mas não justifica tudo. E muito menos permite visões redutoras do
valor da vida. Imersa na primazia da quantidade, a pessoa corre o risco de ser
reduzida à condição indigna de “quase-número”.
Nos cuidados a
prestar às pessoas mais idosas, há mesmo a ideia cretinamente utilitarista e
humanamente perversa de que não vale a pena “investir” na saúde dos velhos.
O poder da tecnocracia e
da burocracia é também acentuado. Não é por acaso que o sistema de saúde
público deve ser o único sector que se queixa da procura e vê o seu aumento
como uma fatalidade e não como uma oportunidade! Também o poder do
organicismo sobre a humanização dos cuidados de saúde é preocupante. A
segmentação e compartimentação das respostas conduzem, não raro, à sua
insuficiência e iniquidade para problemas que são globais, ou mesmo à sua
omissão funcional constituindo quase “terras de ninguém” (vejam-se os
cuidados continuados e geriátricos e a saúde mental).
E não nos esqueçamos que
a ética de cuidar vai para além da ética de curar. A ética de cuidar é mesmo
decisiva quando falamos da velhice. Se formas explícitas ou larvares de
“eutanásia financeira” fazem doutrina, que futuro para os cuidados continuados?
Ser velho passou a ser definitivamente um encargo? Dantes, a velhice
significava uma dignidade, hoje parece, cada vez mais, significar só um peso.
Em Portugal
desvalorizou-se a vida antes do nascimento. Agora quer-se desvalorizá-la antes
da morte. Com uma desumana equação de euros versus um pedaço métrico de vida.
Este é o país onde há
dinheiro para o aborto voluntário e respectiva licença paga pela Segurança
Social. Mas, ao mesmo tempo, querem-se “tabelar”, por razões de
insuficiência financeira, cuidados durante a vida ou para o seu tempo final.
A desigualdade na saúde
ANTÓNIO BARRETO
DN, 18/2/18
É provável que a saúde
em Portugal esteja à frente do progresso. A saúde e, em particular, o Serviço
Nacional de Saúde vêm antes dos outros, educação, segurança social,
justiça, protecção civil e segurança, em eficácia e qualidade. A razão parece
simples: é o sector menos ideológico, menos submetido à polémica partidária,
mais exposto à opinião, influenciado pela ciência, aberto ao mundo e com
superior responsabilidade dos técnicos e cientistas.
O Serviço Nacional de
Saúde é justamente defendido por quase toda a gente. Há polémicas, desde
o papel da ADSE aos subsistemas, passando pela concorrência e pelo papel dos
privados. Isso é certo. Mas o papel essencial do SNS não é posto em
causa. Partidos de esquerda e de direita são convergentes, ninguém sugere a sua
extinção. Mesmo se o pensam, não o dizem. Ricos e pobres defendem o SNS.
Utentes de unidades públicas e das privadas defendem o SNS.
É verdade que há quem
queira dominar a medicina privada, limitando-a ou proibindo-a. Como há quem
queira privatizar a saúde pública. Mas não parece que estas opiniões tenham
muitos seguidores nem sequer hipóteses de se concretizar, a não ser nas cabeças
dos polemistas de serviço nos partidos, nas ordens e nos sindicatos.
A actual agitação no
universo da saúde, especialmente pública, tem causas clássicas: carreiras
profissionais, vencimentos, horários, folgas... O habitual. Quando os
profissionais falam em qualidade dos cuidados, "para bem dos
doentes", estão evidentemente a usar eufemismos para o que está em causa:
as condições de trabalho. Mas existem também as tentativas de intervenção dos
partidos políticos, de esquerda e de direita, que tentam perturbar o governo ou
obter vantagens.
O problema novo é que parece
que a saúde está em crise. As dívidas estão descontroladas. Há talvez cinco ou
dez anos, a situação sanitária tem vindo a deteriorar-se. Menina
de 15 anos, com mais de 40 graus de febre espera na urgência até seis horas
para ser atendida. Rapaz de 15 espera seis meses por cirurgia urgente. Senhora
de 70 fica deitada numa maca no corredor durante três dias, para tratamento
urgente. Medicamentos em falta nas farmácias e nos hospitais. Os tempos de
espera por consulta, exame, análise e cirurgia aumentam. Estes casos não são
literatura: são de pessoas conhecidas que se dirigiram às urgências dos
melhores hospitais públicos da sua área de residência.
Que provoca a
deterioração do serviço? O número de profissionais parece não
ser. Na verdade, o aumento de médicos e de enfermeiros por habitante é
constante há várias décadas: Portugal era o último país da Europa em 1980 e é
hoje um dos primeiros. Quebra de qualidade e competência dos profissionais?
Nada faz crer nisso. Situações epidémicas graves? Não parece. Fuga dos bons
profissionais públicos para as entidades privadas? O argumento é puramente
demagógico.
Sempre na esperança de que
estudos independentes possam dizer mais, tudo leva a crer que estejamos diante
de dois factores primordiais: baixa de financiamento e organização
deficiente. Esta, apesar dos enormes progressos registados nos
últimos trinta anos, continua a ser uma forte razão. Ineficiência que se traduz
ou resulta da falta de autonomia, do poder excessivo dos corpos profissionais,
da confusão de funções, da acumulação de vínculos em sectores privados e
públicos e da falta de recompensa para a gestão de mérito.
Mas a primeira razão
parece mesmo ser a da redução do financiamento. É verdade que a
despesa com saúde, em percentagem do PIB ou por habitante, tem descido. Parece
estar agora em recuperação, mas muito ligeira e lenta. Que será preciso para
que se mantenha a saúde no topo das prioridades? Com o máximo de controlo
financeiro? Com o mínimo de desperdício? Com um real esforço de eficácia
social, isto é, uma tentativa permanente de evitar que os menos afortunados e
os mais pobres não estejam a ser sistematicamente desprezados nas filas de
espera e na qualidade do atendimento?
A desigualdade social na
saúde é a mais cruel de todas.
AS MINHAS FOTOGRAFIAS
Convento de Cristo, Tomar
ANTÓNIO BARRETO
Escadaria principal de
acesso à igreja, à Charola e aos claustros. Este é um dos grandes monumentos,
como a Batalha, Alcobaça e Jerónimos: são os mais visitados pelos turistas
portugueses e estrangeiros. Todos tão elogiados e tão menosprezados, bem
mereciam neste Ano Europeu do Património Cultural mais atenção, melhores
políticas, mais recursos e uma visão consistente que permitisse ordenar,
preservar, estudar e divulgar sem estragar... Alguns destes monumentos de
enorme dimensão e complexidade não chegam a ter uma dúzia de técnicos e
funcionários que vendam bilhetes, acompanhem, estudem, divulguem, guardem,
conservem, protejam, administrem... Será
assim tão difícil a qualquer governo, a qualquer ministro, a qualquer partido
considerar realmente prioritário este património único e irrepetível, sempre em
risco de se deteriorar, sempre à beira de ser roubado e destruído, como já foi
tantas vezes e ainda é? A questão é simples: o património faz-nos, é também o
que nós somos.
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