Tenho a impressão – não posso
falar de certeza, a maioria das vezes lendo distraidamente ou passando ao largo
os artigos de Rui Tavares, - de que estes são progressivamente mais moderados e
tolerantes, e recheados de argumentos enriquecidos por uma pesquisa histórica e
de vivência – o tal saber de “experiência feito”, aliado ao “honesto estudo”
que favorecem o “engenho”, na opinião de um épico consagrado. Trata-se de
um “historiador” ainda jovem, natural é que o facciosismo próprio da rebeldia
juvenil, possa ir perdendo a virulência à medida da progressão de um “experto
peito”, ainda que não se defina pelo estatuto de conservadorismo conselheiro,
ao modo atento do “velho do Restelo”.
O certo é que gosto a valer
dos dois textos que dele transcrevo – o primeiro, informativo, sobre a origem
do termo só português “alfarrábio”, ligado ao nome do filósofo muçulmano do
décimo século, que lhe deu origem, estranhando que tal designação só apareça em
Portugal. O segundo é sobre os povos da União Europeia, quer se trate dos
crentes nela quer se trate dos cépticos sobre o europeísmo actual. O primeiro é
uma lição sobre os conceitos filosóficos que pesquisou acerca desse Al
Farabi, que ainda hoje poderão ter aplicação. Mas discordo do que informa
sobre a sua definição de “felicidade” (“tudo o que é útil para obter felicidade é bom, o mal é tudo aquilo que
nos impede de obter felicidade”), realmente aplicável
hoje em dia, mas bastante maquiavélica, tal como o é o conceito quinhentista de
Maquiavel de que os fins justificam os meios. Quanto à questão da exclusividade
do português para o termo alfarrábio, eu lembro um étimo que era
atribuído ao termo “barroco”, como “pérola irregular” usado pelos joalheiros
portugueses, o que me dava orgulho pátrio, por apreciar a arte barroca - antes
de ler, na Internet, com grande decepção, que outras podem ser as suas origens.
Fica-nos a “marmelada” como termo original nosso, mas a Internet mais uma vez
me defraudou consensos antigos, e neste momento não arrisco mais propostas de
origens terminológicas lusitanas enaltecedoras de orgulhos nacionalistas.
Prefiro acreditar na opinião serena de Rui
Tavares de que “a notícia mais importante em 2018 não é a do “fim
da Europa”. É a da sobrevivência da Europa a uma crise que chegou a ser quase
fatal.”
OPINIÃO
O Grande Alfarrábio
Al Farabi escreveu sobre astronomia, música, ética e teologia. Mas
especialmente importante nas suas obras é o que ele chama de “ciência
política”.
RUI TAVARES
PÚBLICO, 2 de Março de 2018
Toda a gente em Portugal sabe que um alfarrabista é um vendedor
de livros em segunda mão (no Brasil a palavra caiu em desuso e hoje chama-se
a uma loja desse ramo um “sebo”). E quase toda a gente sabe que
alfarrabista vem de alfarrábio, ou seja, livro antigo ou de grandes
dimensões (curiosamente, não encontro vestígio da palavra em castelhano no
Dicionário da Academia Espanhola). Não é difícil imaginar que a palavra
venha do árabe. Algumas pessoas saberão talvez que a sua origem é o nome
de um filósofo muçulmano chamado Al Farabi, que foi importante na Idade Média.
Talvez alguém que por cá consultasse muito os textos de Al Farabi tenha
passado a ser, de alguma forma e em alguma época que desconheço, alguém que
“andava com os alfarrábios debaixo do braço”. Terá sido nos inícios do reino de
Portugal? Na fundação da universidade de Lisboa/Coimbra, no fim do século XIII?
Ignoro. Sei que a palavra aparece já com esse sentido no dicionário português
mais antigo, em 1728.
Isto era tudo o que eu sabia sobre Al Farabi. Mas ignorava a época exata
da sua vida, as suas obras, sobre que escrevia ele. Pois bem, comecei a
corrigir essa ignorância. E estou fascinado. É um pensador de uma
atemporalidade, ou de uma modernidade até, difíceis de acreditar. E, ao
contrário do que eu pensava, não era um muçulmano da Península, mas alguém
de muito mais longe — alguém cuja história não atravessa só tempos, mas também
geografias muito diversas.
Al Farabi nasceu na Ásia Central no fim do século IX e terá morrido em
Damasco no fim de 950 ou início de 951. Não se sabe bem onde seria a sua cidade
de origem, no atual Cazaquistão ou Afeganistão. Alguns autores dizem que a sua
língua materna era o persa, outros que falaria uma língua turca. Veio para
Bagdad, onde estudou com religiosos cristãos. Viveu em Damasco, em Alepo, e no
Cairo. Saberia ler árabe, persa, grego e sogdiano (a língua de Samarcanda, que
pode também ter sido a sua região de origem). Escreveu sobre astronomia,
música, ética e teologia. Mas especialmente importante nas suas obras é o que
ele chama de “ciência política”.
É impossível resumir o seu pensamento político numa crónica, mas eu
diria que há nele quatro coisas notáveis.
A primeira é o seu entendimento da comunidade política humana. Partindo de Aristóteles, Al Farabi define
os seres humanos como “os membros daquela espécie na qual não conseguem cumprir
com aquilo de que necessitam sem viverem juntos em muitas associações num único
lar”. Essas “associações dos humanos” são: “as aldeias, os bairros, as cidades,
os conjuntos de cidades, as nações e as associações de nações” até à
“associação cívica” da humanidade inteira que é a “associação humana
inqualificavelmente perfeita”. A linguagem é do século X, o pensamento é
útil para o nosso tempo.
Em segundo lugar, Al Farabi é um filósofo da felicidade. “A felicidade é o bem sem qualificações;
tudo o que é útil para obter felicidade é bom, o mal é tudo aquilo que nos
impede de obter felicidade”. Mais surpreendente é que esta é uma
felicidade terrena, a atingir nesta vida: não sei se há algum filósofo
medieval, muçulmano, judeu ou cristão que o dissesse de forma tão clara.
Em terceiro lugar, Al Farabi é um filósofo das cidades, e é aí que a sua
linguagem se torna quase poética. O seu catálogo de tipos de cidades parece
tirado de um conto de Borges ou romance de Calvino: para Al Farabi, há “cidades
onde a verdadeira felicidade pode ocorrer”, “cidades da ignorância”, “cidades da
necessidade”, “cidades do prazer”, “cidades timocráticas (onde manda o
estatuto)”, “cidades despóticas”, “cidades democráticas” “cidades imorais” e
“cidades errantes”.
Último aspecto, infelizmente desaparecido em tantos teólogos das três
religiões monoteístas: Al Farabi declara que as religiões se distinguem pelas
suas diferenças de opiniões e de ações e que a “comunidade cívica” deve
legislar para a multiplicidade de religiões. Sem precisar de usar a palavra, Al
Farabi é um filósofo da tolerância.
Ainda ignoro muito sobre ele. Como é que um filósofo que nasceu lá tão
longe se veio a tornar tão importante nesta ponta da Europa até se tornar
sinónimo de livro na nossa língua (e pelos vistos, só aqui) é um mistério
provavelmente perdido.
Encontrei finalmente Al Farabi num manual de filosofia medieval (para os
interessados: Medieval Political Philosophy, Parens & Macfarland,
Cornell University Press) que dá igual destaque a muçulmanos, judeus e
cristãos. Até aparece um filósofo lisboeta, imaginem lá. Infelizmente,
também não é ninguém que seja dado nas nossas escolas, embora fosse português e
falasse português: chamava-se Isaac Abravanel, e era judeu. Fica para uma
outra crónica.
OPINIÃO
O euronervosismo atual é mau conselheiro
Há momentos em que o
nervosismo se justifica, e outros em que não se justifica, porque nos faz
perder oportunidades de ver as coisas com mais clareza.
RUI TAVARES
PÚBLICO, 5 de Março de 2018
Numa coisa europeístas e
eurocéticos estão de acordo: a Europa está em crise. É uma pena,
porque é aí precisamente que estão errados. Não tanto sobre a Europa, que tem
problemas de sobra, mas sobre a ideia de crise.
Como é evidente,
europeístas e eurocéticos estão de acordo por razões diferentes. Num domingo
como ontem, por exemplo, os primeiros olham com nervosismo para as eleições
italianas e os segundos olham com expectativa. Uns temem que um próximo governo
italiano seja anti-europeu, os outros anseiam por isso. Uns não querem que a
casa venha abaixo, outros querem ver o circo pegar fogo. Ambos ficarão
desiludidos.
A verdade é que a Itália
é acima de tudo um problema italiano. Por mais que esteja na moda culpar o euro
e a globalização pela instabilidade política e pelo populismo em muitos países,
em Itália já havia instabilidade política muito antes de haver euro e o
populismo italiano nasceu com o colapso do regime político provocado por
escândalos de corrupção que tiveram origem puramente doméstica. Do lado das
soluções, poucos italianos acreditam que uma saída do euro ou da UE resolvam
alguma coisa para a Itália e ainda menos eleitores acreditam que a Liga de
Matteo Salvini ou o Movimento 5 Estrelas conseguissem mesmo sair do euro, ainda
que o quisessem. A possibilidade de saída do euro perde agora mais votos do que
ganha. Em consequência, os partidos que antes pegavam na saída do euro recuam
agora nas suas promessas ou baralham as pistas (falando sobretudo dos
imigrantes africanos) para que não se perceba que estão a recuar.
Estas eleições italianas
decorrem depois de dois acontecimentos pedagógicos para toda a Europa: o voto do Brexit e a
chegada de Marine Le Pen à segunda volta das eleições francesas no ano passado. Ora, o Reino Unido sempre
foi o país com condições mais favoráveis para sair da União
Europeia — não está no euro, não está em Schengen, goza de uma série de
exceções no direito europeu, e está do lado de lá do Canal da Mancha. Mesmo
assim, o governo britânico não consegue entender-se com a saída. Não há nenhum
problema britânico que esteja a ser resolvido enquanto a classe política
britânica anda obcecada com o Brexit. Quanto a Le Pen, a sua chegada à segunda
volta das eleições francesas contra Macron representou a melhor ocasião que
alguma vez um defensor da saída do euro teve para poder explicar perante o
eleitorado os seus argumentos. O falhanço foi total; aquilo que era suposto ser
um ponto forte da sua campanha acabou por se tornar numa armadilha para Le Pen.
A partir daqui, tanto em Itália como noutros países europeus não falta gente
descontente com a União Europeia — mas isso não quer dizer que haja alguém que
acredite mesmo poder resolver os problemas do seu país acrescentando-lhe mais
problemas ainda com uma saída do euro ou uma desintegração da UE.
Ao nervosismo ora
ansioso ora expectante de europeístas e eurocéticos eu gostaria de contrapor
outro modo de análise: um europeísmo crítico. Trata-se de um
europeísmo, porque assume que o projeto europeu tem um potencial de enorme
valor que é melhor salvar do que desperdiçar. Mas é um europeísmo crítico,
porque lhe reconhece os inúmeros problemas e se esforça por, a cada um deles,
apresentar propostas de solução. Para o caso que nos importa hoje, é um europeísmo
crítico também em relação à omnipresença da ideia de crise. Se
tudo é sempre crise, é porque a palavra perdeu o significado. Ora, tal como é
importante reconhecer quando a União Europeia tem problemas graves que lhe
podem ser fatais (tal como se passou com a crise do euro em 2011 ou a crise do
estado de direito na Hungria e na Polónia hoje), também é igualmente importante
reconhecer quando as crises deixam de ser ameaças existenciais.
Não quero com isto dizer
que estejamos bem. Não estamos — nem na UE, nem nos estados-membros. Quero
somente explicar que há momentos em que o nervosismo se justifica, e outros em
que não se justifica, porque nos faz perder oportunidades de ver as coisas com
mais clareza. O nervosismo atual é mau conselheiro. Os velhos
hábitos tardam em desaparecer, e os jornais e os analistas políticos
continuarão a fazer títulos catastrofistas sobre o fim da Europa, mas os
eleitorados europeus seguiram em frente. Continuaremos ainda a ver grandes
votações em partidos populistas — o problema do populismo não é um exclusivo da
UE, o que basta verificar olhando para os EUA, o Brasil, a Turquia ou a Rússia
— mas a notícia mais importante em 2018 não é a do “fim da Europa”. É a
da sobrevivência da Europa a uma crise que chegou a ser quase fatal.
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