quarta-feira, 7 de março de 2018

“Crescei e multiplicai-vos”



É o que pensamos há muito, e mais uma vez com a leitura, agora, das análises ao comportamento de Pinto Monteiro, de Luís Rosa no Observador, de João Miguel Tavares, no Público, respectivamente de 5 e 6 de Março. Não, não vou comentar. Os textos ficam no meu blog, didáticos, éticos, dramáticos, direi mesmo trágicos, nas vergonhas que passamos, continuamente, os casos “tristes e indignos de memória” a estalarem continuamente sobre as faces de um povo baralhado, pela produção contínua, poluição ética acompanhando as outras.

O legado de Pinto Monteiro
LUÍS ROSA
OBSERVADOR, 5/3/2018,
Pinto Monteiro representou, como o caso Face Oculta demonstra, o lado obscuro da Justiça que prefere andar nas saias do poder político em vez de estar ao lado dos procuradores que devia liderar.
Fernando Pinto Monteiro tem um problema. Não com o passado, nem com o presente, mas sim com o futuro: está numa corrida contra o tempo para evitar que a história o recorde como o procurador-geral da República que fez tudo para não investigar José Sócrateso homem que o indicou para o cargo. É uma luta difícil, refira-se, por que os factos são chatos, incómodos mas suficientemente públicos para falarem por si.
Tal luta faz-se através do único meio que tem neste momento: o uso da palavra através dos meios de comunicação social. Ao contrário dos seus antecessores Souto Moura e Cunha Rodrigues (que preferem o recato que o seu estatuto de magistrados impõe), Pinto Monteiro gosta de dar entrevistas — a vaidade é um pecado que o assiste e não é em doses reduzidas. Mas de cada vez que fala em público a ideia que fica é que mais valia ter ficado calado.
A entrevista que deu ao Público/Rádio Renascença esta quinta-feira é apenas o último exemplo. É confrangedor ler e ouvir a entrevista de um homem que exerceu um dos mais altos cargos da nossa República e constatar a facilidade com que mente, deturpa ou simplesmente inventa — além do oportunismo evidente ao querer associar-se a Rui Rio e à sua luta contra o segredo de justiça.
Tudo para dizer, com os olhos arregalados e o braço bem levantado como aquelas crianças ansiosas por serem reconhecidas, que “investiguei todos os bancos e estão aí a ser julgados” (numa alusão à Operação Furacão) “quem criou o Apito Dourado fui eu” e que deu ordens para se “investigar tudo” — e que só não “investigou” José Sócrates e o BES de Ricardo Salgado porque, infelizmente, não havia elementos.
Bem vistas as coisas, é bastante provável que, no entender de Pinto Monteiro, ele tenha sido o criador da luta contra o crime económico-financeiro. Além de que, no seu tempo como procurador-geral, era “principescamente tratado em Angola”, tinha “relações ótimas” com Luanda e audiências com uma pessoa inacessível por natureza: José Eduardo dos Santos, presidente da República de Angola.
Infelizmente, e como se diz agora, as declarações de Pinto Monteiro são mais “fake news” do que os twitters de Donald Trump.
Não, Pinto Monteiro, não “criou o Apito Dourado”. O processo Apito Dourado ficou conhecido em Abril de 2004 com a detenção de Valentim Loureiro — era então Souto Moura o procurador-geral da República em exercício de funções e o investigador dá pelo nome de Carlos Teixeira, um procurador-adjunto de Gondomar que não hesitou em escrutinar o homem que não só era a representação perfeita da promiscuidade entre o futebol e a política como tinha acumulado poder de forma despudorada.
Pinto Monteiro, infelizmente para si, também não inventou a Operação Furacão. O inquérito iniciou-se em 2004 e um ano antes de o então procurador-geral tomar posse, o juiz Carlos Alexandre e o procurador Rosário Teixeira lideraram as buscas realizadas aos departamentos de private banking do BES, BCP, BPN e Finibanco. Havia suspeitas de crimes de fraude fiscal e de branqueamento de capitais com esquemas de facturação falsa e de sociedades offshore criados pelos próprios bancos e propostos aos respetivos clientes — sempre em prejuízo do Estado. O mérito da investigação pertence a Rosário Teixeira e ao então desconhecido inspector tributário Paulo Silva que descobriu o esquema dos bancos no distrito de Braga.
O auto-elogio que o ex-procurador-geral pode fazer na Operação Furacão é ter deixado a procuradora Cândida Almeida transformar o Departamento Central de Investigação e Ação Penal numa espécie de guarda avançada da Autoridade Tributária, colectando os impostos que não tinham sido pagos por algumas das maiores empresas nacionais e deixando cair as acusações por fraude fiscal e branqueamento de capitais. Independentemente dos crimes terem sido cometidos (e, de acordo com o Ministério Público, terão sido cometidos), as empresas e os empresários pagavam os impostos em falta e o crime caía. Foram assim recuperados mais de 146 milhões de euros, segundo o último balanço conhecido. Ser uma espécie de cobrador de impostos, isto sim, Pinto Monteiro pode orgulhar-se.
O mais grave de Pinto Monteiro na entrevista ao Público/RR, contudo, é afirmar que há meios de comunicação social que têm as escutas telefónicas do processo Face Oculta que envolvem José Sócrates, insinuando que os media não as publicam porque não têm interesse jornalístico. Esta nem os anónimos dos Truques conseguiram ainda inventar.
Foi Pinto Monteiro quem, cinco meses após receber das mãos do procurador João Marques Vidal tais escutas decidiu promover a eliminação das mesmas e recusou abrir o inquérito criminal proposto pelo titular do processo Face Oculta. Tal como foi também o então procurador-geral que, após a concordância de Noronha de Nascimento (presidente do Supremo Tribunal de Justiça), promoveu a eliminação das escutas e até determinou a destruição física dos respetivos cd’s (até no suporte Pinto Monteiro erra ao falar em cassetes) através de fogo e de tesouradas, num autêntico auto de fé judicial.
Não deixa de ser uma ironia que este homem que, em conjunto com Noronha de Nascimento, promoveu um golpe judiciário, ao impedir que as suas decisões fossem escrutinadas por outros magistrados, esteja agora a insinuar que a comunicação social não revela informações que poderiam ter permitido descobrir mais cedo as ligações que foram descobertas na Operação Marquês — tudo com a insinuação de que nada contém. Alguma coisa devem conter e, se algum dia forem conhecidas, aposto que não vão deixar Pinto Monteiro muito bem na fotografia.
Fernando Pinto Monteiro representa, como a sua participação no processo Face Oculta demonstra, uma face obscura da Justiça. Uma Justiça obscura que não gosta de ser escrutinada, uma Justiça próxima do poder político que vê os representantes do Ministério Público como meros funcionários públicos e não como verdadeiros magistrados dotados de autonomia e uma Justiça que não quer exercer o seu papel constitucional de contra-freio aos abusos dos poderes executivo e legislativo — antes prefere andar nas saias do poder político à espera de migalhas de poder e de influência.
Durante o seu mandato, e ao contrário do que costuma apregoar, Pinto Monteiro foi igualmente a face de uma justiça para ricos e poderosos e outra para o resto da população. Foi durante o seu mandato que foram inventados os despachos intercalares de arquivamento de figuras relevantes da sociedade portuguesa (como o ex-ministro Luís Nobre Guedes) e a ideia de que os titulares de cargos políticos tinham direito a despachos de inocência a meio de um inquérito depois de uma notícia de um jornal pela exposição mediática de que eram vítimas.
Ao fim e ao cabo, a sua vaidade fez com que Fernando Pinto Monteiro também tenha desejado ser um dos poderosos do país. Um procurador-geral que preferia ser visto ao lado de um político como José Sócrates (“eu apreciava o estilo dele [Sócrates]”) em megas-lançamentos de livros do ex-primeiro-ministro, do que ao lado dos procuradores que liderou — ou pelo menos, devia ter liderado — e que hoje são os maiores críticos da sua passagem pela Procuradoria-Geral da República.
Infelizmente, Pinto Monteiro será mesmo recordado numa nota de rodapé da história com o procurador-geral que não quis investigar José Sócrates. É chato, incomoda mas é a verdade.

OPINIÃO
Foi isto um procurador-geral da República
A entrevista a Pinto Monteiro mostra como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente do Ministério Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana Marques Vidal no seu cargo.
JOÃO MIGUEL TAVARES
PÚBLICO, 6 de Março de 2018
A entrevista que Fernando Pinto Monteiro concedeu ao PÚBLICO e à Rádio Renascença na semana passada é a mais reveladora de toda a sua carreira. Ela demonstra, ainda que de forma involuntária, as razões por que Pinto Monteiro assumiu o papel de guarda-costas oficioso de José Sócrates entre 2006 e 2011, e por que se afundaram no Ministério Público todas as investigações que envolveram o então primeiro-ministro.
Sobre as mentiras de Pinto Monteiro nessa entrevista já Luís Rosa escreveu um excelente texto no Observador (O legado de Pinto Monteiro). E sobre tantos aspectos ainda por esclarecer da sua nomeação – como a relação de proximidade de José Sócrates com o seu irmão, o professor de Direito de Coimbra António Pinto Monteiro, ou a possibilidade de ter sido Proença de Carvalho a sugerir o seu nome – já Vítor Rainho escreveu um bom artigo no Sol (Um procurador que gosta de José Sócrates). Eu prefiro chamar a atenção para dois aspectos que esses textos não desenvolvem: os seus tristes comentários sobre o processo Face Oculta; e as barbaridades que disse como se fossem banalidades, tão sintomáticas do seu carácter.
Quanto às famosas destruições das escutas do processo Face Oculta, o ex-Procrador-geral da República admite na entrevista que delas constam a venda da TVI, pelo que se pressupõe que Sócrates foi mesmo apanhado a discutir os seus detalhes. Pinto Monteiro desvaloriza esse facto com o rigor habitual – “a estação de televisão de que está a falar já foi vendida e revendida 30 vezes!” –, e utilizando um argumento decisivo: “Aquilo não tem nada a ver com crime de atentado ao Estado de Direito! Sabe o que é um atentado ao Estado de Direito? Dou-lhe um exemplo: é um Governo acabar com o Tribunal Constitucional.”
Eis um exemplo extraordinário, que entronca numa interpretação que Freitas do Amaral já tinha desenvolvido em 2010 nas páginas da revista Visão. O texto chamava-se Decifrai o Procurador e nele Freitas acusava o procurador-geral da República de ter optado “por uma interpretação muito restritiva do conceito de atentado ao Estado de Direito.” Ou seja, Pinto Monteiro mandou destruir as escutas não porque elas fossem inocentes, mas porque no seu entendimento um atentado ao Estado de Direito envolve a destruição de uma instituição – conspirar sobre a sua venda parece ser insuficiente.
Esta interpretação tão estrita daquilo que constitui uma conduta criminosa, e esta visão tão lata daquilo que é permitido a quem ocupa cargos de poder, está espalhada por toda a entrevista. Pinto Monteiro assume que atendeu chamadas de Rui Rio a queixar-se da justiça (“telefonava-me de vez em quando a protestar contra as fugas”) e que isso não tem mal algum; declara que ir a lançamentos de livros de políticos sobre os quais tomou decisões judiciais é a coisa mais banal do mundo; confessa ter sido “principescamente” tratado quando viajou até Angola para assinar protocolos de cooperação e não lhe passa pela cabeça que ser “principescamente” tratado levante problemas éticos.
Não creio que Pinto Monteiro algum dia tenha sido corrompido por dinheiro. É o próprio a autocorromper-se por vaidade – deslumbrado pelo poder, fascinado por políticos, e, como qualquer bom português, muito amigo dos seus amigos. Embora lamentável a vários títulos, a entrevista a Pinto Monteiro tem esta dupla vantagem: mostra como uma pessoa com o seu perfil pode ser uma desgraça à frente do Ministério Público, e demonstra a importância fulcral de reconduzir Joana Marques Vidal no seu cargo.

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