segunda-feira, 19 de março de 2018

Aquilo dos Jogos Olímpicos



Apenas como mera espectadora, como a maior parte, julgo eu, dos que se apercebem pela rama dos truques políticos mas têm suficiente discernimento para avaliar os esquemas psicológicos de alguns artesãos de jogadas políticas, que os media propalam, também eu achara que a colaboração das duas Coreias nos Jogos Olímpicos de Seul levava água no bico, pelo menos da parte do funesto Kim Jong-un, para fazer crer em contrição e cedência às ameaças tonitruantes de Donald Trump. A EDITORIAL de Diogo Queiroz de Andrade é explícita no recontar dos feitos, o texto de OPINIÃO de Teresa de Souza, rico de pormenor analista, demonstra que Donald Trump foi um patinho a cair na armadilha do perverso asiático. Ou talvez não. Será que vai mesmo ao encontro em Pyongyang? Quem aposta?
Leiamos os articulistas:
EDITORIAL
A diplomacia da loucura
Como de opaca a presidência norte-americana não tem nada, é fácil antever que Trump irá a correr negociar com Kim, de forma a poder garantir que foi ele a acabar com a ameaça nuclear.
DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE
10 de Março de 2018
Mais um capítulo na longa série de televisão em que está transformada a vida na Casa Branca. Desta vez há uma personagem estrangeira em cena, mas tudo continua a ser demasiado transparente, demasiado exposto, demasiado superficial. E pouco parece ser verdadeiro.
É verdade que as personagens são as melhores: Donald Trump prova constantemente que a realidade vai mais longe que a ficção e Kim Jong-un encarna na perfeição o papel de vilão à boa maneira dos filmes de James Bond. Mas todo este ano foi demonstrando um guião sem grande categoria. Trump começou por prometer fogo e fúria ao regime pária da Coreia do Norte, vociferando contra os seus avanços nucleares. Esse fogo (e essa fúria) rapidamente foram remetidos ao devido lugar: a China demonstrou claramente que não iria tolerar intromissões na esfera de influência directa e a Coreia do Sul demonstrou que qualquer espécie de conflito iria condenar à morte imediata dez milhões de habitantes de Seul. O mau da fita foi-se divertindo a carregar nos botões dos ensaios nucleares, deixando o mundo civilizado à beira de um ataque de nervos e Trump ainda com mais vontade de mostrar que tinha um botão maior e mais ameaçador.
Mas tudo não passou de uma pequena exibição pública de força, sem que ela tenha sido consubstanciada pelas acções – que eram inviáveis neste contexto, como todos bem sabiam. Daqui para a frente, torna-se quase impossível antecipar o que se passa nas mais altas esferas do poder de Pyongyang. Pode ser que o pequeno líder norte-coreano tenha planeado estas jogadas desde o início, de forma a arrastar o gigante americano para a mesa negocial e usar os seus trunfos para conseguir um retorno em grande à cena internacional. Mas também é bem possível que esta lógica diplomática seja apenas mais uma manobra de diversão que permita ao regime consolidar ainda mais a sua investigação nuclear.
Como de opaca a presidência norte-americana não tem nada, é fácil antever que Trump irá a correr negociar com Kim, de forma a poder garantir que foi ele a acabar com a ameaça nuclear. Mas o optimismo de Donald pode ainda esbarrar no tacticismo (ou na loucura) de Kim, que nesta fase tem pouco a perder: liberto da ameaça da aniquilação, resta-lhe conquistar o reconhecimento do mundo e o regresso de alguma riqueza ao país ou então a manutenção da glória nuclear.
Um optimista poderá olhar para esta crise como a prova de que o nuclear deve ser erradicado do planeta, um realista irá lamentar que não se tenha feito alguma coisa antes de Kim chegar à tecnologia. Infelizmente, Trump não é uma coisa nem outra – e será ele a liderar o mundo livre na negociação com um regime que ninguém entende bem.

OPINIÃO
COREIA DO NORTE
Trump, o lança-granadas
A decisão de Trump de começar por cima é diferente de tudo aquilo que já foi tentado ao longo de décadas pelos EUA para conter a ambição nuclear de Pyongyang. Mas o risco de falhar não deixa qualquer margem para regressar à mesa das negociações.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 11 de Março de 2018
1. Com a habilidade diplomática própria de quem não é louco, o líder coreano, Kim Jong-un, parece ter levado o Presidente americano, Donald Trump, a deixar-se cair numa armadilha cuidadosamente preparada. Kim utilizou os Jogos Olímpicos de Inverno, na Coreia do Sul, para retocar a sua imagem perante os olhos do mundo. Enviou os seus atletas e um grupo simpático de cheer-leaders, proibidas de falar com quem quer que fosse, e algumas altas individualidades do regime, para dar cor política à sua iniciativa. Já conseguiu o que queria: uma capacidade nuclear que lhe permite negociar directamente com os Estados Unidos. De igual para igual. Encontrou em Washington um presidente em cuja imprevisibilidade resolveu apostar. Outros agiriam com todo o cuidado, preparando o terreno e as saídas possíveis — Trump reage por impulso. Foi o que aparentemente aconteceu. Trump, numa decisão que não estava prevista nem pelo seu staff, nem pelo Departamento de Estado, aceitou o convite que lhe foi entregue em mão por um emissário do Governo da Coreia do Sul, para uma cimeira com o seu arqui-inimigo norte-coreano. Lá para Maio, diz a Casa Branca. Kim ganhou o primeiro round. Haverá tempo para que os Estados Unidos preparem uma qualquer estratégia para o encontro? Haverá encontro? Por enquanto, a única coisa que a Casa Branca diz é que foi uma “vitória diplomática” do Presidente, que encostou Kim à parede. Será? É difícil de acreditar. O chefe do Departamento de Estado, Rex Tillerson, disse imediatamente que foi uma decisão apenas do Presidente. Ele próprio, durante a sua deslocação a África, tinha dito aos jornalistas que ainda se estava longe do início de negociações. Ontem, a Reuters anunciava que Tillerson cancelou o seu programa africano por um dia, por se encontrar indisposto. A Coreia do Sul, cuja segurança é garantida pelos EUA, tem hoje uma liderança mais aberta a negociações e faz pressão sobre Washington.
2. Há também a tese contrária, difícil de aceitar com os elementos que temos. Teria sido a constante ameaça de Trump de lançar “o fogo e a fúria” sobre a Coreia do Norte, ameaçando com a força para não ter de a usar, que obrigou Kim a ceder. Será? Ninguém, em Washington, estava à espera da resposta imediata de Trump ao convite de Kim. O mundo inteiro saudou a cimeira, quanto mais não seja porque alivia a tensão, depois de um ano em que a escalada verbal entre Kim e Trump se aproximou da demência e um conflito militar passou a ser um risco que ameaçava o mundo inteiro. A oportunidade foi criada por iniciativa do Governo de Seul, que terá tido um papel fundamental. Esta mudança espectacular entre os dois protagonistas do confronto também pode ser vista como o resultado dos receios partilhados pelos aliados dos EUA na Ásia, de Tóquio a Seul, passando pelos países do Sudoeste asiático, em relação ao compromisso americano para com a respectiva segurança. Com um efeito colateralse as negociações prosseguirem, os ditadores e os párias olharão para o exemplo da Coreia do Norte como a confirmação de que a bomba atómica é a única linguagem que os EUA entendem. Se as negociações não chegarem à desnuclearização, o exemplo coreano será lido como um sinal de fraqueza dos Estados Unidos. Se os Estados Unidos abandonarem as negociações, Kim terá melhores condições para os culpar e o risco de conflito aumentará. Dizer que a cimeira corresponde a uma estratégia americana bem pensada é dar um salto demasiado grande. “Esta é uma questão muito séria”, diz Wendy Sherman, uma experiente diplomata que trabalhou com Clinton, citada pelo New York Times. “Não é um reality show. É a nossa segurança nacional que está em causa.”
3. Por que “cedeu” Kim agora? Para além da tese da força bruta, o círculo de Trump acrescenta que as sanções deram um contributo decisivo. Alguns especialistas americanos admitem que, economicamente, Kim esteja num aperto, que já não seria o primeiro, com a queda abrupta das exportações e das importações, incluindo para a China. O que se sabe é que, quando Bill Clinton, em 1994, conseguiu um acordo com Pyongyang, oferecendo ajuda económica imediata e centrais nucleares civis, a maioria da população estava a passar fome, no verdadeiro sentido da palavra. É difícil de imaginar uma situação tão dramática. O pai de Kim acabou por continuar o seu programa nuclear. A segunda tentativa de Clinton, em 2000, também falhou, desta vez por causa da chegada de George W. Bush à Casa Branca. A Coreia do Norte fazia parte do seu “eixo do mal”, com o Iraque e o Irão. A sua política era a do “quanto pior melhor”.
4. Apesar das ofertas significativas de Pyongyang que o enviado de Seul levou a Washington — a promessa de congelar os ensaios nucleares e aceitar os exercícios militares conjuntos da Coreia do Sul e dos EUA —, não se vê como Pyongyang possa abdicar das armas nucleares, justamente o factor que lhe permite garantir a sobrevivência do regime. Além disso, a família Kim não é de confiança quando se trata de cumprir acordos. O problema é o que quer em troca. Provavelmente, a saída das tropas americanas da Coreia do Sul. É aí que a China aplaude. É esse o seu grande objectivo estratégico, tentando provar aos aliados americanos que só têm vantagem em dar-se bem com ela. O Japão tem o interesse contrário. Shinzo Abe saudou a iniciativa, acrescentando que irá a Washington falar com Trump já em Abril. Não devia ter a menor ideia do que se estava a passar, apesar de ser o maior aliado dos EUA na Ásia-Pacífico. Não informar os aliados é outro argumento a favor de que não havia qualquer estratégia previamente definida. Fica também a dúvida sobre o papel de Pequim nesta jogada de Kim e da inesperada resposta do seu homólogo americano. É mais uma incógnita fundamental sobre o que vai acontecer agora. Apenas sobra uma coisa: a decisão de Trump de começar por cima é diferente de tudo aquilo que já foi tentado ao longo de décadas pelos EUA para conter a ambição nuclear de Pyongyang. Mas o risco de falhar não deixa qualquer margem para regressar à mesa das negociações.
5. Ao mesmo tempo que lançava a “granada” norte-coreana, o Presidente tirava a cavilha a outra, cujos efeitos a médio prazo podem ser devastadores. Cumprindo uma promessa da campanha, anunciou a aplicação de taxas aduaneiras à importação de aço e de alumínio (25% e 10%, respectivamente). Ninguém conseguiu dissuadi-lo, nem o seu principal conselheiro económico, que já apresentou a demissão, deixando o campo aberto aos arautos do proteccionismo. Os Estados americanos com grande concentração de indústria automóvel e aeroespacial temem um desastre. Os que ainda têm alguma produção de aço batem palmas. A medida é controversa. Em vez de atingir a China, que só exporta para os EUA 3% da sua produção (embora inunde os mercados mundiais com o seu aço, chocando com os interesses europeus e americanos), atingiu os aliados. O Canadá é o maior exportador. O Brasil e o México também, tal como a Coreia do Sul. A Europa já prometeu retaliar. Os chineses fizeram alguns gestos de protesto. O risco de uma escalada proteccionista é real, pondo em causa o crescimento da economia mundial. Quando assinou o decreto, fundamentado numa norma que lhe dá esse poder quando se trata de risco para a segurança nacional, Trump anunciou que não haveria excepções. Já veio dizer que o Canadá e o México não seriam afectados. Ontem, acrescentou que estava a negociar com os “amigos australianos”, para não os atingir. A Europa espera idêntico tratamento, alegando que não constitui qualquer ameaça à segurança americana. No mesmo dia em que assinou o decreto, 11 países da orla do Pacífico assinavam em Santiago do Chile uma parceria transpacífica de livre comércio, que vai do Japão ao Peru, mas que não incluiu a China, negociada por Obama. Trump rasgou o tratado. É caso para perguntar o que vai ganhar com isso. A única exportação americana para a Europa que a Europa dispensava é a de Steve Bannon. O seu antigo estratego veio participar no congresso da Frente Nacional de Le Pen e já esteve em Itália a dar o seu apoio à Liga. Por ele, prefere mesmo os extremos.

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