Apenas como mera espectadora, como
a maior parte, julgo eu, dos que se apercebem pela rama dos truques políticos
mas têm suficiente discernimento para avaliar os esquemas psicológicos de
alguns artesãos de jogadas políticas, que os media propalam, também eu achara
que a colaboração das duas Coreias nos Jogos Olímpicos de Seul levava água no
bico, pelo menos da parte do funesto Kim Jong-un, para fazer crer em contrição e
cedência às ameaças tonitruantes de Donald Trump. A EDITORIAL de Diogo
Queiroz de Andrade é explícita no recontar dos feitos, o texto de
OPINIÃO de Teresa de Souza, rico de pormenor analista, demonstra que
Donald Trump foi um patinho a cair na armadilha do perverso asiático. Ou talvez
não. Será que vai mesmo ao encontro em Pyongyang? Quem aposta?
Leiamos os articulistas:
EDITORIAL
A diplomacia da loucura
Como de opaca a presidência
norte-americana não tem nada, é fácil antever que Trump irá a correr negociar
com Kim, de forma a poder garantir que foi ele a acabar com a ameaça nuclear.
DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE
10 de Março de 2018
Mais um capítulo na
longa série de televisão em que está transformada a vida na Casa Branca. Desta
vez há uma personagem estrangeira em cena, mas tudo continua a ser demasiado
transparente, demasiado exposto, demasiado superficial. E pouco parece ser
verdadeiro.
É verdade que as
personagens são as melhores: Donald Trump prova constantemente que a realidade
vai mais longe que a ficção e Kim Jong-un encarna na perfeição o papel de vilão
à boa maneira dos filmes de James Bond. Mas todo este ano foi
demonstrando um guião sem grande categoria. Trump começou por prometer fogo e
fúria ao regime pária da Coreia do Norte, vociferando contra os seus avanços
nucleares. Esse fogo (e essa fúria) rapidamente foram remetidos ao devido
lugar: a China demonstrou claramente que não iria tolerar intromissões na
esfera de influência directa e a Coreia do Sul demonstrou que qualquer espécie
de conflito iria condenar à morte imediata dez milhões de habitantes de Seul. O
mau da fita foi-se divertindo a carregar nos botões dos ensaios nucleares,
deixando o mundo civilizado à beira de um ataque de nervos e Trump ainda com
mais vontade de mostrar que tinha um botão maior e mais ameaçador.
Mas tudo não passou de
uma pequena exibição pública de força, sem que ela tenha sido consubstanciada
pelas acções – que eram inviáveis neste contexto, como todos bem sabiam. Daqui
para a frente, torna-se quase impossível antecipar o que se passa nas mais
altas esferas do poder de Pyongyang. Pode ser que o pequeno líder norte-coreano
tenha planeado estas jogadas desde o início, de forma a arrastar o gigante
americano para a mesa negocial e usar os seus trunfos para conseguir um retorno
em grande à cena internacional. Mas também é bem possível que esta lógica diplomática
seja apenas mais uma manobra de diversão que permita ao regime consolidar ainda
mais a sua investigação nuclear.
Como de opaca a presidência
norte-americana não tem nada, é fácil antever que Trump irá a correr negociar
com Kim, de forma a poder garantir que foi ele a acabar com a ameaça nuclear. Mas
o optimismo de Donald pode ainda esbarrar no tacticismo (ou na loucura) de Kim,
que nesta fase tem pouco a perder: liberto da ameaça da aniquilação,
resta-lhe conquistar o reconhecimento do mundo e o regresso de alguma riqueza
ao país ou então a manutenção da glória nuclear.
Um optimista poderá
olhar para esta crise como a prova de que o nuclear deve ser erradicado do
planeta, um realista irá lamentar que não se tenha feito alguma coisa antes
de Kim chegar à tecnologia. Infelizmente, Trump não é uma coisa nem
outra – e será ele a liderar o mundo livre na negociação com um regime que
ninguém entende bem.
OPINIÃO
COREIA DO NORTE
Trump, o lança-granadas
A decisão de Trump de
começar por cima é diferente de tudo aquilo que já foi tentado ao longo de
décadas pelos EUA para conter a ambição nuclear de Pyongyang. Mas o risco de
falhar não deixa qualquer margem para regressar à mesa das negociações.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 11 de Março de 2018
1. Com a habilidade diplomática
própria de quem não é louco, o líder coreano, Kim Jong-un, parece ter levado o
Presidente americano, Donald Trump, a deixar-se cair numa armadilha
cuidadosamente preparada. Kim utilizou os Jogos Olímpicos de
Inverno, na Coreia do Sul, para retocar a sua imagem perante os olhos do mundo.
Enviou os seus atletas e um grupo simpático de cheer-leaders, proibidas de
falar com quem quer que fosse, e algumas altas individualidades do regime, para
dar cor política à sua iniciativa. Já conseguiu o que queria: uma
capacidade nuclear que lhe permite negociar directamente com os Estados Unidos.
De igual para igual. Encontrou em Washington um presidente em cuja
imprevisibilidade resolveu apostar. Outros agiriam com todo o cuidado,
preparando o terreno e as saídas possíveis — Trump reage por impulso.
Foi o que aparentemente aconteceu. Trump, numa decisão que não estava prevista
nem pelo seu staff,
nem pelo Departamento de Estado, aceitou o convite que lhe foi entregue em mão
por um emissário do Governo da Coreia do Sul, para uma cimeira com o seu
arqui-inimigo norte-coreano. Lá para Maio, diz a Casa Branca. Kim
ganhou o primeiro round.
Haverá tempo para que os Estados Unidos preparem uma
qualquer estratégia para o encontro? Haverá encontro? Por enquanto,
a única coisa que a Casa Branca diz é que foi uma “vitória diplomática” do
Presidente, que encostou Kim à parede. Será? É difícil de acreditar. O
chefe do Departamento de Estado, Rex Tillerson, disse imediatamente que foi uma
decisão apenas do Presidente. Ele próprio, durante a sua deslocação a África,
tinha dito aos jornalistas que ainda se estava longe do início de negociações.
Ontem, a Reuters anunciava que Tillerson cancelou o seu programa africano por um
dia, por se encontrar indisposto. A Coreia do Sul, cuja segurança é
garantida pelos EUA, tem hoje uma liderança mais aberta a negociações e faz
pressão sobre Washington.
2. Há também a tese
contrária, difícil de aceitar com os elementos que temos. Teria sido a
constante ameaça de Trump de lançar “o fogo e a fúria” sobre a Coreia do Norte,
ameaçando com a força para não ter de a usar, que obrigou Kim a ceder. Será?
Ninguém, em Washington, estava à espera da resposta imediata de Trump ao
convite de Kim. O mundo inteiro saudou a cimeira, quanto mais não seja
porque alivia a tensão, depois de um ano em que a escalada verbal entre Kim e
Trump se aproximou da demência e um conflito militar passou a ser um risco que
ameaçava o mundo inteiro. A oportunidade foi criada por iniciativa do
Governo de Seul, que terá tido um papel fundamental. Esta mudança espectacular
entre os dois protagonistas do confronto também pode ser vista como o resultado
dos receios partilhados pelos aliados dos EUA na Ásia, de Tóquio a Seul,
passando pelos países do Sudoeste asiático, em relação ao compromisso americano
para com a respectiva segurança. Com um efeito colateral — se as
negociações prosseguirem, os ditadores e os párias olharão para o exemplo da
Coreia do Norte como a confirmação de que a bomba atómica é a única linguagem
que os EUA entendem. Se as negociações não chegarem à desnuclearização,
o exemplo coreano será lido como um sinal de fraqueza dos Estados Unidos. Se
os Estados Unidos abandonarem as negociações, Kim terá melhores condições para
os culpar e o risco de conflito aumentará. Dizer que a cimeira
corresponde a uma estratégia americana bem pensada é dar um salto demasiado
grande. “Esta é uma questão muito séria”, diz Wendy Sherman, uma experiente
diplomata que trabalhou com Clinton, citada pelo New York Times. “Não
é um reality show.
É a nossa segurança nacional que está em causa.”
3. Por que “cedeu” Kim agora? Para
além da tese da força bruta, o círculo de Trump acrescenta que as sanções deram
um contributo decisivo. Alguns especialistas americanos admitem
que, economicamente, Kim esteja num aperto, que já não seria o primeiro, com a
queda abrupta das exportações e das importações, incluindo para a China. O
que se sabe é que, quando Bill Clinton, em 1994, conseguiu um acordo com
Pyongyang, oferecendo ajuda económica imediata e centrais nucleares civis, a
maioria da população estava a passar fome, no verdadeiro sentido da palavra. É
difícil de imaginar uma situação tão dramática. O pai de Kim acabou por
continuar o seu programa nuclear. A segunda tentativa de Clinton, em 2000,
também falhou, desta vez por causa da chegada de George W. Bush à Casa Branca.
A Coreia do Norte fazia parte do seu “eixo do mal”, com o Iraque e o Irão. A
sua política era a do “quanto pior melhor”.
4. Apesar das
ofertas significativas de Pyongyang que o enviado de Seul levou a Washington —
a promessa de congelar os ensaios nucleares e aceitar os exercícios militares
conjuntos da Coreia do Sul e dos EUA —, não se vê como Pyongyang
possa abdicar das armas nucleares, justamente o factor que lhe permite garantir
a sobrevivência do regime. Além disso, a família Kim não é de confiança quando
se trata de cumprir acordos. O problema é o que quer em troca. Provavelmente,
a saída das tropas americanas da Coreia do Sul. É aí que a China aplaude. É
esse o seu grande objectivo estratégico, tentando provar aos aliados americanos
que só têm vantagem em dar-se bem com ela. O Japão tem o interesse
contrário. Shinzo Abe saudou a iniciativa, acrescentando que irá a
Washington falar com Trump já em Abril. Não devia ter a menor ideia do que se
estava a passar, apesar de ser o maior aliado dos EUA na Ásia-Pacífico. Não
informar os aliados é outro argumento a favor de que não havia qualquer
estratégia previamente definida. Fica também a dúvida sobre o papel de
Pequim nesta jogada de Kim e da inesperada resposta do seu homólogo americano.
É mais uma incógnita fundamental sobre o que vai acontecer agora. Apenas
sobra uma coisa: a decisão de Trump de começar por cima é diferente de
tudo aquilo que já foi tentado ao longo de décadas pelos EUA para conter a
ambição nuclear de Pyongyang. Mas o risco de falhar não deixa qualquer margem
para regressar à mesa das negociações.
5. Ao mesmo tempo que lançava a
“granada” norte-coreana, o Presidente tirava a cavilha a outra, cujos efeitos a
médio prazo podem ser devastadores. Cumprindo uma promessa da
campanha, anunciou a aplicação de taxas aduaneiras à importação de aço e de
alumínio (25% e 10%, respectivamente). Ninguém conseguiu dissuadi-lo, nem o seu
principal conselheiro económico, que já apresentou a demissão, deixando o campo
aberto aos arautos do proteccionismo. Os Estados americanos com grande
concentração de indústria automóvel e aeroespacial temem um desastre. Os que
ainda têm alguma produção de aço batem palmas. A medida é controversa. Em vez
de atingir a China, que só exporta para os EUA 3% da sua produção (embora
inunde os mercados mundiais com o seu aço, chocando com os interesses europeus
e americanos), atingiu os aliados. O Canadá é o maior exportador. O
Brasil e o México também, tal como a Coreia do Sul. A Europa já prometeu
retaliar. Os chineses fizeram alguns gestos de protesto. O risco de uma
escalada proteccionista é real, pondo em causa o crescimento da economia
mundial. Quando assinou o decreto, fundamentado numa norma que lhe dá esse
poder quando se trata de risco para a segurança nacional, Trump anunciou que
não haveria excepções. Já veio dizer que o Canadá e o México não seriam
afectados. Ontem, acrescentou que estava a negociar com os “amigos
australianos”, para não os atingir. A Europa espera idêntico tratamento,
alegando que não constitui qualquer ameaça à segurança americana. No
mesmo dia em que assinou o decreto, 11 países da orla do Pacífico assinavam em
Santiago do Chile uma parceria transpacífica de livre comércio, que vai do
Japão ao Peru, mas que não incluiu a China, negociada por Obama. Trump
rasgou o tratado. É caso para perguntar o que vai ganhar com isso. A
única exportação americana para a Europa que a Europa dispensava é a de Steve
Bannon. O seu antigo estratego veio participar no congresso da Frente Nacional
de Le Pen e já esteve em Itália a dar o seu apoio à Liga. Por ele, prefere
mesmo os extremos.
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