segunda-feira, 12 de março de 2018

Ainda os nossos escrúpulos de virtude



Outros escreveram. Eu apenas aprecio, concordando. Com ressalvas.

PEDRO PASSOS COELHO
A Universidade que temos
OBSERVADOR, 5/3/2018
A contratação de Passos Coelho pelo ISCSP nunca poderia ser bem-recebida num sistema universitário alheio ao mérito e alimentado por compadrios – e, portanto, precário para uns e generoso para outros.
Quem tivesse aterrado há cinco dias em Portugal, e ouvisse as críticas à contratação de Passos Coelho para dar aulas no ISCSP da Universidade de Lisboa (UL), poderia convencer-se que, por cá, se leva muito a sério a qualidade no recrutamento das universidades, assim como o rigor na atribuição de graus académicos. E se se convencesse disso estaria obviamente equivocado.
Poder-se-ia entrar no debate e explicar que ter ex-políticos de relevo a dar aulas numa universidade é uma prática comum no contexto internacional. Ou até esclarecer a ignorância de quem não sabe que o estatuto de catedrático-convidado, que Passos Coelho terá no ISCSP, não equivale a professor catedrático em termos de carreira académica. Mas o ponto não está nesta argumentação. A questão que realmente importa tem raízes mais profundas: a contratação de Passos Coelho nunca poderia ser bem-recebida num sistema universitário alheio ao mérito, alimentado por compadrios e redes de influência. Isto é, um sistema que aclama a endogamia – e que é, portanto, arbitrariamente precário para uns e generoso para outros.
Os dados da endogamia universitária falam por si. Na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (UC), todos os docentes de carreira fizeram o seu doutoramento nessa mesma faculdade. Não é arredondamento, é mesmo 100%. Em 53 professores, não há um único que se tenha formado numa outra instituição de ensino – basicamente, há os “da casa” e quem vem de fora fica à porta. Mas há muitos mais exemplos. Ainda em Coimbra, a universidade portuguesa com níveis mais elevados de endogamia, a Faculdade de Medicina tem uma taxa de 97%. Na de Medicina da Universidade do Porto (UP), a taxa de endogamia é só ligeiramente inferior: 93%. E na Faculdade de Letras da UP, a taxa mantém-se nuns elevados 83%. O que quase parece pouco se se comparar com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (UL), que tem 96% dos seus 165 docentes de carreira doutorados nessa mesma instituição. De resto, na UL, nada de particularmente diferente: a Faculdade de Medicina tem uma taxa de endogamia de 85% e a Faculdade de Direito quase iguala a marca de Coimbra: em 103 professores, apenas um se formou numa outra instituição, resultando numa taxa de endogamia de 99%.
Todos estes casos são sintomas da endogamia persistente no sistema universitário português: comunidades académicas fechadas sobre si mesmas, viciadas em favorecimentos internos, alheias a ideias novas e oriundas do exterior, e forçosamente menos integradas nas redes internacionais. Olhando para o cenário global das universidades portuguesas da rede pública, 70% dos docentes de carreira formaram-se na instituição onde agora dão aulas. É um valor altíssimo e preocupante. E é só a ponta do icebergue.
Os dados aqui mencionados, retirados de um relatório da Direcção Geral das Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), não contabilizam os professores convidados e similares – que, ao não serem de carreira, dispensam concurso de acesso, dando origem a (ainda mais) situações de endogamia. É, aliás, essa a conclusão de um estudo sobre o tema, publicado pelo Conselho Nacional de Educação : a legislação “continua a permitir que as instituições recorram à carreira informal dos professores convidados, a qual reforça o recrutamento endogâmico”, para beneficiar os seus protegidos em futuros concursos de vinculação à carreira.
O que quer dizer tudo isto? Que o caminho mais certo para a obtenção de um lugar numa faculdade é a vassalagem académica, tendo as lideranças das faculdades um poder tremendo sobre a carreira (e a vida) dos docentes. Que são estas as regras do jogo, que muitos lamentam mas cumprem porque disso depende a sua progressão profissional. E que quem entrar vindo de fora, por mérito próprio ou melhores contactos, será visto com inveja e tratado como ameaça.
Sim, há um problema nas escolhas que as universidades fazem na contratação dos seus docentes. Mas não, esse problema não está no perfil de experiência e qualificações de Passos Coelho para leccionar Administração Pública no ISCSP – já agora, a unidade da UL com mais baixa taxa de endogamia (59%). O problema está num sistema universitário erigido sobre pequenas teias de influência, lealdades, invejas e redes de poder. Discuta-se isso, que o resto é só ruído.

REDES SOCIAIS
Passos e Sócrates ou como a indignação tem cor política
FILOMENA MARTINS
OBSERVADOR, 8/3/2018
As redes das redes chegaram duas vezes ao grau máximo da indignação. Agora, por Passos ir dar aulas numa Universidade Pública. E antes, com a infame pergunta sobre como Sócrates pagava as contas.
Já andava desconfiada. Mas confirmei estes dias que o mercúrio do grau de indignação nas redes sociais e nos fóruns das tv’s e rádios é ideológico. Muda de cor conforme os envolvidos. O barómetro não podia mesmo ser mais preciso. Chegou ao ponto mais denso do vermelho com a notícia de que Passos Coelho ia dar aulas num mestrado de Administração Pública no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Exatamente a mesma linha de vermelho atingida quando Vítor Gonçalves fez na entrevista da RTP aquela infame pergunta a José Sócrates sobre como vivia agora e como pagava as contas o ex-primeiro-ministro.
Quando se questionou o curso de Sócrates, blasfémia, as redes das redes sociais e afins indignaram-se até ao limite do vermelho. Quando se noticiou que o engenheiro, que a Ordem não reconhece como tal, autorizou um aterro suspeito, blasfémia, a indignação também foi geral. Quando esse mesmo homem, com um empréstimo de cem mil euros (confessado pelo próprio), comprou um Mercedes de último modelo e um “master executivo” na Sciences Po em Paris, disse que vivia em casa de um amigo num dos principais bairros parisienses, comia e bebia nos melhores restaurantes, fazia férias luxuosas e vestia nas lojas das grandes marcas (há facturas a prová-lo) e alguém se atreveu a achar estranho, blasfémia, perseguição, houve levantamento de indignação não contra Sócrates, mas sim contra esses hereges.
Se pelo meio o ex-primeiro-ministro ainda conseguiu conciliar os estudos de Filosofia com a presidência do Conselho Consultivo do grupo farmacêutico Octapharma para a América Latina e negociar no Brasil com os seus amigos nenhum problema foi detectado pelas redes das redes e, blasfémia, o problema foi de quem ousou pôr em causa as suas capacidades para tal emprego. Se começou por receber 12.500 euros por mês mas rapidamente duplicou o ordenado, nada de indignações sociais e, blasfémia, proscritos foram os que questionaram que aqueles valores não eram merecidos ou aqueles negócios não eram éticos. Se mandou escrever um auto-bestseller sobre um tema em que era reconhecidamente especialista, a tortura, blasfémia, incultos apenas os que não acharam tal obra de génio (tal como a seguinte, sobre drones). E então quando alguém perguntou como é que os 2372 euros de subsídio político davam para pagar a renda de uma casa numa das zonas mais caras de Lisboa, os advogados e as restantes despesas, caiu o Carmo e a Trindade (ou os monumentos equivalentes do barómetro destes internautas).
Agora, quando se noticiou que Passos Coelho, três anos depois de ser primeiro-ministro, ia dar aulas numa universidade, repetiu-se exatamente o mesmo índice de indignação. Ai como tal podia ser permitido, que heresia, uma revolta geral no mundo virtual. Mas contra Passos. Que credenciais tem um homem que liderou o país durante uma das suas piores crises para ensinar administração pública, que desplante, contestação geral. Como pode uma faculdade pública contratar um político  ex-deputado, líder de partido e juventude partidária, que esteve à frente de instituições, para ensinar o que aprendeu na prática, que ignomínia. Como se pode pagar um ordenado milionário de entre 3 a 4 mil euros por mês a um homem formado em Economia que não pediu qualquer subsídio público, que afronta. Que interessa que Seguro também lá dê aulas sem que tenha havido um levantamento popular por causa disso, ou que seja melhor ser professor do que receber do Estado sem nada fazer, ui que pecado, multipliquem-se os post’s, os tweets.
E não, não podemos falar aqui apenas de uma revolta do conservador mundo académico. É mesmo ideologia, como já disse Maria João Marques. Porque há mais casos.
Maria Luís Albuquerque saiu do Governo e foi diretamente para a Arrow e gritaram (e bem) escândalo. Durão Barroso saiu da Comissão e foi diretamente para conselheiro/lobista da Goldman Sachs e gritaram (e bem) escândalo. Vítor Gaspar deixou de ser ministro e enfiou-se logo no FMI e também foi um escândalo. Paulo Portas tornou-se Consultor da Câmara do Comércio aproveitando os conhecimentos como MNE e, ui, que escândalo. Álvaro Santos Pereira deixou a Economia e anos depois concorreu a economista-chefe da OCDE e não deixou de ser um escândalo. Independentemente dos casos, uns mais escandalosos, outros absolutamente legítimos, a tendência foi sempre no mesmo sentido da indignação cibernética.
Mas onde estavam os mesmo indignados quando a EDP pagou 3 milhões para criar um curso especial para Manuel Pinho leccionar uma cadeira na Universidade de Columbia depois do ministro tutelar a empresa? Porque é que o ponteiro deste radar da indignação on-line não mexeu quando Francisco Louçã foi dar umas aulas numa angolana privada? E, fora do mundo académico, porque não subiu o mercúrio deste barómetro com os empregos dos amigos Lacerdas ou das famílias César? E porque é que só ganhou a tal cor rubra contra quem teve coragem para denunciar estes casos?
Defendo períodos de nojo entre a passagem do mundo da política para o dos negócios. Sei que não se ganha muito na política, mas sim depois da política. Não esqueço os grandes escândalos que atravessaram da direita à esquerda, de Dias Loureiro a Celeste Cardona e Relvas, até Armando Vara, Felgueiras ou Carlos Melancia. Mas não tenho os óculos embaciados. Não confundo empregos comuns, com cargos de boys, tachos de milhões ou crimes de aproveitamento político. E vejo uma graduação diferente para as indignações de esquerda e de direita. Parece-me que barómetro das redes das redes está claramente desnivelado. Ou avariado.

Dois comentários entre os 84 da nossa facúndia comprovativa:
Henrique Pinto
É falso equivaler as indignações a Sócrates às de Passos Coelho. 
Esta Filomena Martins é mais uma colunista do observador a pretender diminuir a democracia em Portugal e limitar a livre expressão. 
Daqui a nada, coloca-se uma estrela no casaco de quem não vota à direita... Tempos muitos perigosos se avizinham...
Pedro Santos             ------------à   Henrique Pinto
Tem toda a razão na conclusão do seu comentário, mas precisamente pelas razões opostas à que pretende. Faz ainda uma afirmação que não justifica nem fundamenta, aliás, à boa maneira esquerdóide, dando ainda mais razão, caso precisasse dela, ao artigo em causa.


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