quarta-feira, 14 de março de 2018

A justificação está no sirventês



É um sirventês moral, integrado na poesia satírica medieval, de Pêro Mafaldo, trovador galego da corte de Afonso X, avô de Afonso Henriques. Justifica os desmandos da altura já pela falta de honra da nossa longa tradição de hipocrisia e falsidade, justificativa também da desistência posterior de Camões, no seu excurso à musa, por conta de uma pátria mergulhada no “gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza”. Também o fado do nosso folclore disso dá conta, mais as baladas coimbrãs da nossa fúria politicamente mais esclarecida, com os “Meninos do Bairro Negro” à cabeça, superando as mazelas de dor e ciúmes da nossa insistência lacrimejante do anterior fado lisboeta.
Vem a referência a propósito dos textos de Editorial do PÚBLICO, “Já chega de confiar na sorte”, de e “A desigualdade” de AMÍLCAR CORREIA, e seus comentadores - o primeiro texto sobre a nossa incúria e inércia sem travões, que promete manter e não mantém, as infra-estruturas em mau estado de conservação, em permanente risco de desastre, os nossos professores, como exemplo, reivindicativos de melhoria salarial, não de espaços de trabalho menos empenados; o segundo texto sobre os desníveis salariais que reduzem o nosso país a uma nação definitivamente pobre, algumas novas profissões de remuneração débil, arrancadas ultimamente em função de um aumento de turismo ocasional inseguro.
Reclamação necessária, certamente, mas o estado de penúria e de desnivelamento social tem a ver com o mal constante da corrupção, apontada já no sirventês medieval, a que uma educação mais rigorosa e mais generalizada, também no domínio da ética, desde os tempos remotos, poderia e deveria ter posto freio.
 Eis o sirventês de Pêro Mafaldo, com promessa, seguida pela maioria de nós, dado o estado de falência material e moral a que chegámos, de uma integração pessoal no esquema-padrão: «mentirei ao amigo e ao senhor, e poiará meu prez e meu valor con mentira, pois con verdade dece».
Vej'eu as gentes andar revolvendo,
e mudando aginha os corações
do que põen antre si as nações;
e ja m'eu aquesto vou aprendendo
e ora cedo mais aprenderei:
a quen poser preito, mentir-lho-ei,
e assí irei melhor guarecendo.

Ca vej'eu ir melhor ao mentireiro
c’ao que diz verdade ao seu amigo;
e por aquesto o jur'e o digo
que jamais nunca seja verdadeiro;
mais mentirei e firmarei log'al:
a quen quer'hoje ben, querrei-lhe mal,
e assí guarrei come cavaleiro.

Pois que meu prez nen mia honra non crece,
porque me quigi teer á verdade,
vede-lo que farei, par caridade,
pois que vej'o que m'assí acaece:
mentirei ao amigo e ao senhor,
e poiará meu prez e meu valor
con mentira, pois con verdade dece.

EDITORIAL
Já chega de confiar na sorte
Sim, conversem todos, mas comecem por arranjar o que se tem perdido. Já que o dinheiro nunca é muito, o melhor é começar pela base. Já basta de confiar na sorte.
PÚBLICO, 13 de Março de 2018
Nos últimos quatro anos, Portugal registou 20 descarrilamentos de comboios. Sempre em troços de caminhos-de-ferro que são considerados problemáticos pela empresa que é responsável pela sua manutenção. Registe as palavras, usadas no relatório que hoje Carlos Cipriano nos desvenda: estas linhas são “medíocres” ou “más”. Estas, entre muitas outras, porque a conclusão dos técnicos da Infra-Estruturas de Portugal é que quase 60% das linhas do nosso país está neste estado. 
Registe também uma outra palavra que ele nos diz ser a mais usada, por estes tempos, dentro daquela empresa: “Sorte.” Sorte de, nestes 20 descarrilamentos, só haver registo de seis comboios de passageiros, “sorte” sobretudo de não haver registo de qualquer morte nestes acidentes.
Agora junte a tudo isto a triste história da Ponte 25 de Abril, em que há um parecer alertando para a necessidade de obras, o parecer anda de gaveta em gaveta durante anos — e só salta de lá com o respectivo envelope financeiro quando se sabe que há uma revista, a Visão, que vai fazer do tema capa. 
Não, o problema não é o das cativações, porque a questão é bem mais séria e transversal. A discussão que se lançou por causa da Ponte 25 de Abril, e que agora terá de se fazer também sobre as linhas férreas, é uma discussão que tem de se alargar a outros sectores do nosso Estado. Deve fazer-se no Serviço Nacional de Saúde, onde se discute mais a falta de profissionais do que os meios com que estes trabalham; deve fazer-se nas escolas, onde também se fala muito dos professores, mas pouco das condições em que eles ensinam os nossos filhos.
É este o estado do país e da discussão política. Hoje, por exemplo, os sindicatos de professores iniciam uma greve, que se fará dia a dia, região a região, porque não conseguem convencer o Governo a dar mil milhões de euros para lhes garantir uma reposição salarial de acordo com as suas pretensões. No dia em que reclamarem o mesmo, mas metade para eles e outra metade para que tenham condições para ensinar, é provável que tenham o país todo com eles.
Se António Costa e Rui Rio decidiram começar a conversar sobre onde aplicar os fundos europeus e que responsabilidades passar para as autarquias, podiam bem começar por aqui: olhar, sector a sector, que partes do Estado precisam de mais investimento, de reabilitação, ainda antes de nos lançarmos em novas aventuras. Sim, conversem todos, mas comecem por arranjar o que se tem perdido. Já que o dinheiro nunca é muito, o melhor é começar pela base. Já basta de confiar na sorte.
Comentários:
4ª República  República Bananeira da Tugalândia 
Já há imensos anos que digo o mesmo. Vejo os professores, médicos e outros funcionários públicos a queixarem-se das condições de trabalho, mas greves unicamente os vejo a fazer por causa dos salários e de regalias exclusivas que são ofensivas para os trabalhadores do privado que são quem produz a riqueza que lhes paga os salários. Não me lembro de uma manifestação, greve ou luta organizada exclusivamente pelas condições de trabalho, ou direito a formações e afins. Por vezes referem um pouco esses argumentos no meio das reivindicações salariais para disfarçar o objectivo que são apenas dois, rendimentos e regalias. Como se a qualidade do serviço dependesse apenas do que ganham.

  OldVic recomenda a música do dia: "Vinte e três" (Noiserv) 13.03.2018
 “Hoje, por exemplo, os sindicatos de professores iniciam uma greve, que se fará dia a dia, região a região, porque não conseguem convencer o Governo a dar mil milhões de euros para lhes garantir uma reposição salarial de acordo com as suas pretensões. No dia em que reclamarem o mesmo, mas metade para eles e outra metade para que tenham condições para ensinar, é provável que tenham o país todo com eles”: mas, caro autor, eles borrifam-se para o país. Há séculos que Portugal é uma colecção de corporações cuja única preocupação é assegurar o seu acesso à riqueza criada por outros, e neste momento essas corporações têm no poder um governo refém. Quando houver mais uma tragédia, vamos ouvi-los a censurar o “aproveitamento político” para desviar atenções da sua incompetência.

EDITORIAL
A desigualdade
Combater as desigualdades, sejam elas quais forem, é função da política; é função de um Estado. E essa terá de ser sempre a primeira opção.
AMÍLCAR CORREIA
PÚBLICO, 12 de Março de 2018
A investigação do ISCTE sobre a trajectória de um grupo de pessoas em situação de pobreza, em Lisboa, desde 2011, é lapidar: não é por trabalharem que as pessoas acompanhadas deixaram de ser pobres. A actual transformação de Lisboa, e o mesmo tem acontecido no Porto, com os processos de gentrificação e de especulação imobiliária, traduz-se em novos empregos, mas de baixa remuneração, e em dificuldades acrescidas de arrendamento a preços comportáveis.
Daí que essa transformação não possa ser reduzida a uma rápida reabilitação urbana e a uma economia mais pujante: este processo afasta para a periferia quem não consegue acompanhar a escalada dos preços das rendas e destrói as redes de vizinhança que ainda sobrevivem. Pior: as pensões que fecham e que reabrem como hostels retiram à Segurança Social a possibilidade de responder às necessidades de quem procura abrigo, como se tem verificado no Porto, onde estes casos se tornaram mais visíveis. A acumulação de riqueza num grupo mais pequeno distribui a pobreza por um grupo maior.
A pobreza sempre foi encarada em Portugal como uma espécie de fatalidade, à qual se respondia com comiseração e misericórdia, para culpabilização do próprio pobre. A evolução do país nestas quatro décadas de democracia, com a criação de novas políticas de combate à pobreza, não foi ainda suficiente para diminuir de forma considerável os seus índices. As prestações sociais do Estado, sejam elas pensões ou rendimentos de inserção para os casos mais extremos, também são insuficientes para fazer com que os idosos ou desempregados de longa duração deixem de fazer parte dos 18,3% de portugueses em situação de carência. Como diz Sérgio Aires, do Observatório de Luta contra a Pobreza na Cidade de Lisboa, as políticas públicas são positivas e surtem efeito até um certo ponto. Mas quem é pobre não consegue sair desse patamar aonde chegou, como se conclui da análise daquele grupo ao longo dos últimos sete anos. Estudos deste tipo, que nos traçam o percurso de um conjunto de pessoas, permitem perceber os solavancos da oferta de trabalho e a articulação, ou a falta dela, entre os serviços públicos do emprego e da Segurança Social. E uma das ilações possíveis é a de termos de ponderar novos tipos de respostas sociais, se quisermos deixar este patamar.
Combater as desigualdades, sejam elas quais forem, é função da política; é função de um Estado. E essa terá de ser sempre a primeira opção.
Comentário
Joaquim Sá
 Braga 
A “nossa” pobreza é bastante “mais pobre” do que a pobreza da maioria dos países da UE28 ou da Zona Euro. E a dimensão da pobreza é agravada face a outros países pelo factor interno de desigualdade de rendimentos. Em 2015 há na EU 9 países com menor rendimento per capita do que Portugal para 7 países mais desiguais; em 2016 existem 10 países com menor rendimento per capita para 6 países mais desiguais. Isso significa que se o índice de desigualdades tivesse a mesma posição relativa que o rendimento per capita teríamos provavelmente menor pobreza entre nós.

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