É um sirventês moral,
integrado na poesia satírica medieval, de Pêro Mafaldo, trovador
galego da corte de Afonso X, avô de Afonso Henriques. Justifica os desmandos da
altura já pela falta de honra da nossa longa tradição de hipocrisia e
falsidade, justificativa também da desistência posterior de Camões, no seu
excurso à musa, por conta de uma pátria mergulhada no “gosto da cobiça e na
rudeza duma austera, apagada e vil tristeza”. Também o fado do nosso
folclore disso dá conta, mais as baladas coimbrãs da nossa fúria politicamente
mais esclarecida, com os “Meninos do Bairro Negro” à cabeça, superando
as mazelas de dor e ciúmes da nossa insistência lacrimejante do anterior fado
lisboeta.
Vem a referência a propósito
dos textos de Editorial do PÚBLICO, “Já
chega de confiar na sorte”, de
e “A desigualdade” de AMÍLCAR
CORREIA, e seus comentadores - o primeiro texto sobre a nossa incúria
e inércia sem travões, que promete manter e não mantém, as infra-estruturas em
mau estado de conservação, em permanente risco de desastre, os nossos
professores, como exemplo, reivindicativos de melhoria salarial, não de espaços
de trabalho menos empenados; o segundo texto sobre os desníveis salariais que
reduzem o nosso país a uma nação definitivamente pobre, algumas novas
profissões de remuneração débil, arrancadas ultimamente em função de um aumento
de turismo ocasional inseguro.
Reclamação necessária,
certamente, mas o estado de penúria e de desnivelamento social tem a ver com o
mal constante da corrupção, apontada já no sirventês medieval, a que uma
educação mais rigorosa e mais generalizada, também no domínio da ética, desde
os tempos remotos, poderia e deveria ter posto freio.
Eis o sirventês de Pêro Mafaldo, com promessa,
seguida pela maioria de nós, dado o estado de falência material e moral a que
chegámos, de uma integração pessoal no esquema-padrão: «mentirei ao amigo e ao senhor, e poiará meu prez e meu valor con mentira, pois con verdade dece».
Vej'eu as gentes andar revolvendo,
e mudando aginha os corações
do que põen antre si as nações;
e ja m'eu aquesto vou aprendendo
e ora cedo mais aprenderei:
a quen poser preito, mentir-lho-ei,
e assí irei melhor guarecendo.
Ca vej'eu ir melhor ao mentireiro
c’ao que diz verdade ao seu amigo;
e por aquesto o jur'e o digo
que jamais nunca seja verdadeiro;
mais mentirei e firmarei log'al:
a quen quer'hoje ben, querrei-lhe mal,
e assí guarrei come cavaleiro.
Pois que meu prez nen mia honra non crece,
porque me quigi teer á verdade,
vede-lo que farei, par caridade,
pois que vej'o que m'assí acaece:
mentirei ao amigo e ao senhor,
e poiará meu prez e meu valor
con mentira, pois con verdade dece.
e mudando aginha os corações
do que põen antre si as nações;
e ja m'eu aquesto vou aprendendo
e ora cedo mais aprenderei:
a quen poser preito, mentir-lho-ei,
e assí irei melhor guarecendo.
Ca vej'eu ir melhor ao mentireiro
c’ao que diz verdade ao seu amigo;
e por aquesto o jur'e o digo
que jamais nunca seja verdadeiro;
mais mentirei e firmarei log'al:
a quen quer'hoje ben, querrei-lhe mal,
e assí guarrei come cavaleiro.
Pois que meu prez nen mia honra non crece,
porque me quigi teer á verdade,
vede-lo que farei, par caridade,
pois que vej'o que m'assí acaece:
mentirei ao amigo e ao senhor,
e poiará meu prez e meu valor
con mentira, pois con verdade dece.
EDITORIAL
Já chega de confiar na sorte
Sim, conversem todos, mas comecem por arranjar o que se tem perdido. Já
que o dinheiro nunca é muito, o melhor é começar pela base. Já basta de confiar
na sorte.
PÚBLICO, 13 de Março de 2018
Nos últimos quatro anos, Portugal registou 20 descarrilamentos de
comboios. Sempre em troços de caminhos-de-ferro que são considerados
problemáticos pela empresa que é responsável pela sua manutenção. Registe as
palavras, usadas no relatório que hoje Carlos Cipriano nos desvenda: estas
linhas são “medíocres” ou “más”. Estas, entre muitas outras, porque a
conclusão dos técnicos da Infra-Estruturas de Portugal é que quase 60% das
linhas do nosso país está neste estado.
Registe também
uma outra palavra que ele nos diz ser a mais usada, por estes tempos, dentro
daquela empresa: “Sorte.” Sorte de, nestes 20 descarrilamentos, só haver
registo de seis comboios de passageiros, “sorte” sobretudo de não haver registo
de qualquer morte nestes acidentes.
Agora junte a tudo isto a triste história da Ponte 25 de Abril, em que há um parecer alertando para a
necessidade de obras, o parecer anda de gaveta em gaveta durante anos — e só
salta de lá com o respectivo envelope financeiro quando se sabe que há uma
revista, a Visão, que vai fazer do tema capa.
Não, o problema não é o das cativações, porque a questão é bem mais
séria e transversal. A
discussão que se lançou por causa da Ponte 25 de Abril, e que agora terá de se
fazer também sobre as linhas férreas, é uma discussão que tem de se alargar a
outros sectores do nosso Estado. Deve fazer-se no Serviço Nacional de Saúde,
onde se discute mais a falta de profissionais do que os meios com que estes
trabalham; deve fazer-se nas escolas, onde também se fala muito dos
professores, mas pouco das condições em que eles ensinam os nossos filhos.
É este o estado do país e da discussão política. Hoje, por exemplo, os
sindicatos de professores iniciam uma greve, que se fará dia a dia, região a
região, porque não conseguem convencer o Governo a dar mil milhões de euros
para lhes garantir uma reposição salarial de acordo com as suas pretensões. No
dia em que reclamarem o mesmo, mas metade para eles e outra metade para que
tenham condições para ensinar, é provável que tenham o país todo com eles.
Se António Costa e Rui Rio decidiram começar a conversar sobre onde
aplicar os fundos europeus e que responsabilidades passar para as autarquias,
podiam bem começar por aqui: olhar, sector a sector, que partes do Estado
precisam de mais investimento, de reabilitação, ainda antes de nos lançarmos em
novas aventuras. Sim, conversem todos, mas comecem por arranjar o que se tem
perdido. Já que o dinheiro nunca é muito, o melhor é começar pela base. Já
basta de confiar na sorte.
Comentários:
4ª República República Bananeira da
Tugalândia
Já há imensos anos que digo
o mesmo. Vejo os professores, médicos e outros funcionários públicos a
queixarem-se das condições de trabalho, mas greves unicamente os vejo a fazer
por causa dos salários e de regalias exclusivas que são ofensivas para os
trabalhadores do privado que são quem produz a riqueza que lhes paga os
salários. Não me lembro de uma manifestação, greve ou luta organizada
exclusivamente pelas condições de trabalho, ou direito a formações e afins. Por
vezes referem um pouco esses argumentos no meio das reivindicações salariais
para disfarçar o objectivo que são apenas dois, rendimentos e regalias. Como
se a qualidade do serviço dependesse apenas do que ganham.
OldVic recomenda a música do dia: "Vinte e
três" (Noiserv) 13.03.2018
“Hoje, por exemplo, os sindicatos de
professores iniciam uma greve, que se fará dia a dia, região a região, porque
não conseguem convencer o Governo a dar mil milhões de euros para lhes garantir
uma reposição salarial de acordo com as suas pretensões. No dia em que
reclamarem o mesmo, mas metade para eles e outra metade para que tenham
condições para ensinar, é provável que tenham o país todo com eles”: mas, caro
autor, eles borrifam-se para o país. Há séculos que Portugal é uma colecção de
corporações cuja única preocupação é assegurar o seu acesso à riqueza criada
por outros, e neste momento essas corporações têm no poder um governo refém.
Quando houver mais uma tragédia, vamos ouvi-los a censurar o “aproveitamento
político” para desviar atenções da sua incompetência.
EDITORIAL
A desigualdade
Combater as desigualdades, sejam elas quais forem, é função da política;
é função de um Estado. E essa terá de ser sempre a primeira opção.
AMÍLCAR CORREIA
PÚBLICO, 12 de Março de 2018
A investigação do ISCTE sobre a trajectória de um grupo de pessoas em
situação de pobreza, em Lisboa, desde 2011, é lapidar: não é por trabalharem
que as pessoas acompanhadas deixaram de ser pobres. A actual transformação de
Lisboa, e o mesmo tem acontecido no Porto, com os processos de gentrificação
e de especulação imobiliária, traduz-se em novos empregos, mas de baixa
remuneração, e em dificuldades acrescidas de arrendamento a preços comportáveis.
Daí que essa transformação não possa ser reduzida a uma rápida
reabilitação urbana e a uma economia mais pujante: este processo afasta para a periferia quem
não consegue acompanhar a escalada dos preços das rendas e destrói as redes de
vizinhança que ainda sobrevivem. Pior: as pensões que fecham e que reabrem como hostels retiram
à Segurança Social a possibilidade de responder às necessidades de quem procura
abrigo, como se tem verificado no Porto, onde estes casos se tornaram mais
visíveis. A acumulação de riqueza num grupo mais pequeno distribui a pobreza
por um grupo maior.
A pobreza sempre foi encarada em Portugal como uma espécie de
fatalidade, à qual se respondia com comiseração e misericórdia, para
culpabilização do próprio pobre. A evolução do país nestas quatro décadas de democracia, com a criação
de novas políticas de combate à pobreza, não foi ainda suficiente para diminuir
de forma considerável os seus índices. As prestações sociais do Estado,
sejam elas pensões ou rendimentos de inserção para os casos mais extremos,
também são insuficientes para fazer com que os idosos ou desempregados de longa
duração deixem de fazer parte dos 18,3% de portugueses em situação de carência.
Como diz Sérgio Aires, do Observatório de Luta contra a Pobreza na Cidade de
Lisboa, as políticas públicas são positivas e surtem efeito até um certo ponto.
Mas quem é pobre não consegue sair desse patamar aonde chegou, como se conclui
da análise daquele grupo ao longo dos últimos sete anos. Estudos deste tipo,
que nos traçam o percurso de um conjunto de pessoas, permitem perceber os solavancos
da oferta de trabalho e a articulação, ou a falta dela, entre os serviços
públicos do emprego e da Segurança Social. E uma das ilações possíveis é a de
termos de ponderar novos tipos de respostas sociais, se quisermos deixar este
patamar.
Combater as desigualdades, sejam elas quais forem, é função da política;
é função de um Estado. E essa terá de ser sempre a primeira opção.
Comentário
Joaquim Sá
Braga
A “nossa” pobreza é bastante “mais pobre” do que a
pobreza da maioria dos países da UE28 ou da Zona Euro. E a dimensão da pobreza
é agravada face a outros países pelo factor interno de desigualdade de
rendimentos. Em 2015 há na EU 9 países com menor rendimento per capita do que
Portugal para 7 países mais desiguais; em 2016 existem 10 países com menor
rendimento per capita para 6 países mais desiguais. Isso significa que se o
índice de desigualdades tivesse a mesma posição relativa que o rendimento per
capita teríamos provavelmente menor pobreza entre nós.
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