São histórias de partir a loiça, a de Andrew
Jackson e a de Trump, que ao que parece o quer imitar, ainda sem
tempo de escolher a mascote, mas julgo que ele não vai contentar-se com o
burro. A gravata vermelha aponta mais as suas cóleras para preferências
taurinas, só que ainda se está no princípio, até pode ser que se fique também pelo
burro, que para todos os efeitos é um bichinho meigo e simpático, para mais em
vias de extinção, que conviria devolver ao nosso espaço, enterrado que ficou no
anedotário de fabulistas convencionais. Jackson parece que teve origens mais
humildes mas foi lutador e estudioso, fez cursos e negócios, cheio de espírito
de competição e de raiva contra os aristocratas. As raivas de Trump são mais
mediáticas, agora é tudo muito visível, por isso ele tem os seus pruridos
contra os jornalistas mexeriqueiros e nisso até lhe dou razão. Jackson não teve
dessas intrusões na sua vida, foi um combatente apenas, que soube conquistar o
poder, coisa apetecível para toda a gente, nós por cá até temos o Tino de Rans
que também se candidatou, mesmo sem burro, de que não precisou, sempre rodeado
de fans. Quanto à gravata vermelha, também me lembro de a ver no nosso primeiro
ministro, que se equipara aos grandes conquistadores na coragem do desafio, sem
olhar a meios, donde concluo que grandes homens há por toda a parte, mesmo cá.
Mas é tempo de rever os magníficos textos que
seguem, de Jorge Almeida Fernandes e de Diogo Queirós de Andrade,
sobre o homem que ainda não escolheu mascote e já vai dando tanto que falar, conquanto
tudo seja tão fugaz, que um dia ninguém se lembrará dele, como aconteceu com Jackson. Embora Trump se lembre.
Uma estória: Trump, Jackson e o burro
A ascensão do populismo jacksoniano foi vivida como a
invasão de Roma pelosbárbaros.
Jorge Almeida Fernandes
Público, 21 de Janeiro
de 2017 - Ponto de vista
Andrew
Jackson (1767-1845) foi o primeiro Presidente populista dos Estados Unidos.
A sua tradição ainda hoje pesa consideravelmente na cultura política americana.
Um dos seus estudiosos, Walter Russell Mead, faz um paralelo entre ele e
Donald Trump. “A abordagem de Trump na política externa é
fundamentalmente jacksoniana: os Estados Unidos não devem celebrar grandes
acordos comerciais, nem tentar difundir a democracia no mundo e menos ainda
acreditar nos aliados. Devem manter um forte exército que lhes permita não
depender de ninguém e perseguir o seu próprio interesse nacional.” Igualmente
marcante é a sua influência na política interna. Para isso devemos fazer
um resumo da presidência e dos princípios que guiaram Jackson, o primeiro “plebeu”
a ocupar a Casa Branca contra a “aristocracia” política da Nova Inglaterra e da
Virgínia. Nascido no Tennessee, filho de imigrantes miseráveis do
Ulster, foi agricultor, negociante de terras, cavalos e índios, e depois
advogado. Em 1801, é eleito chefe da milícia do Tennessee com a patente de
coronel e, no ano seguinte, promovido a general. Torna-se “herói” na batalha de
Nova Orleães na guerra de 1812 contra a Inglaterra. Passa a ser um ídolo
popular.
Eleito
para a Câmara dos Representante e depois senador, candidatou-se à presidência
em 1824, contra “notáveis” como John Quincy Adams ou Henry Clay. Ficou em
primeiro lugar mas sem maioria absoluta no Colégio Eleitoral, o que passou a
decisão para a Câmara dos Representantes. Um acordo político com Clay, que ficaria
com o Departamento de Estado, permitiu a Adams ser eleito. Jackson teve quatro
anos para denunciar esta “negociata corrupta”, para reorganizar o Partido
Democrático e preparar a revanche.
A “invasão dos
bárbaros”
Os whigs (futuros
republicanos) tratavam por burros (jackasses) os
“ignorantes” adeptos de Jackson. Este teve uma ideia genial: fez do burro o
símbolo dos democratas — um animal trabalhador, nobre e teimoso, capaz de dar
coices mortais nos decadentes “leões” da oligarquia. Jackson assinava e devorava
os jornais populares. Conhecia melhor do que a elite os sentimentos que
cresciam na opinião pública. Nas eleições de 1828 esmagou Adams e os
outros adversários. Foi um sismo político. A sua investidura, a 4 de Março de
1829, foi “histórica” e descrita pelos contemporâneos como a “invasão de Roma
pelos bárbaros”. Em lugar de jurar dentro do Congresso, exigiu fazê-lo
no exterior do edifício perante um “mar agitado” de 10 ou 20 mil pessoas
electrizadas. Algumas viajaram 800 km em carroças para assistir ao momento
histórico. As pessoas não o idolatravam pelo seu programa mas por aquilo que
ele encarnava: era um deles e sempre se manteve próximo do povo.
Havia
a seguir a recepção na Casa Branca. Jackson montou o seu cavalo branco e
partiu, rodeado pela multidão. Seguiu-se o caos. A massa entrou na Casa Branca.
O Presidente teve de ser protegido para não ser esmagado. Adeptos de botas
ferradas subiam para cima de móveis e poltronas de cetim para o verem. Houve um
assalto à comida e às bebidas. Partia-se porcelana chinesa e manchavam-se
tapetes com pedaços das centenas de libras de queijo trazidas para oferecer a
Jackson. Um funcionário teve a ideia brilhante de levar para o exterior os
barris de punch e cerveja. A elite teve de se adaptar aos
“bárbaros”. O sufrágio universal masculino foi generalizado. Nas eleições
de 1824 votaram 356 mil pessoas; em 1836, 1,5 milhões; em 1849, 2,4 milhões. Jackson
conseguiu uma aliança poderosa: reunir o apoio dos “pioneiros” do Oeste aos
operários da nascente indústria da Costa Leste e do Centro, cuja protecção
assumiu. Prometeu e conseguiu encerrar o Second American Bank, antecessor da
Reserva Federal, não por ser mal gerido mas por ter excessivo poder. Para
isso, teve de demitir dois secretários do Tesouro e vetar sucessivas decisões
do Congresso.
O
legado de Jackson tem lados mais escuros. Foi inimigo dos índios, cuja
deportação em massa acelerou para dar terras ao homem branco. No Oeste, intensificaram-se
os linchamentos. A herança da sua política económica de laissez faire,
laissez passer abriu as portas ao capitalismo selvagem do fim do século.
O apelo jacksoniano
“O
credo político de Jackson pode resumir-se em poucas frases”, escrevem os
historiadores Allan Nevis e Henry S. Commanger: “Confiança nas capacidades
do homem comum, crença na igualdade política, crença na igualdade das
oportunidades, ódio aos monopólios, aos privilégios e à selva da finança
capitalista.”Jackson não deixou uma ideologia, mas sobretudo uma
“tradição”. Russell Mead aponta um “código de honra” fundado em três
grandes princípios: autoconfiança, igualitarismo, individualismo. Define-se
melhor pelo que combate: as elites e as oligarquias. As elites
queriam o primado da competência no acesso aos cargos públicos; os “burros”
preferiam a lei da maioria, pois qualquer homem razoável é susceptível de
participar na governação. “Os jacksonianos nunca tiveram grande
respeito pelos mais educados e credenciados”, conclui Russell Mead. É
fácil compreender a sedução jacksoniana — presente nos dois grandes partidos —
entre os operários e nas classes médias brancas que se sentem em declínio, real
ou imaginário, desde há duas gerações. Trump entendeu-o. O inimigo
continua a ser a elite. E a “tirania da banca” passou a ser a “tirania da
globalização que rouba os nossos empregos”. Os jacksonianos são “radicalmente
igualitaristas, radicalmente pró-classe média, radicalmente patriotas e
radicalmente pró-segurança social”, escreveu Russell Mead durante a campanha.
“Hoje, Donald Trump é uma espécie de ecrã em branco em que os jacksonianos
projectam as suas esperanças. (...) O apelo jacksoniano de Trump criou uma
grande desorientação no Partido Republicano, demonstrando o abismo entre a
ideologia conservadora republicana e o nacionalismo jacksoniano.”Ao contrário
de Jackson, o discurso de inauguração de Trump não electrizou os adeptos. E
também os Estados Unidos de hoje não são os do tempo de Jackson. O populismo
nacionalista que partilham tem um alcance radicalmente diferente. Hoje, o
populismo nacionalista diz respeito a todo o planeta.
O populismo no Capitólio
A América até pode voltar a ser tão grande como o novo
Presidente deseja, mas o custo vai ser alto.
Público, 21 de Janeiro de 2017 - Editorial
Donald
Trump não quer estado de graça. Entrou ao ataque e fez um primeiro
discurso sem tons de cinzento, mostrando que o mundo até é fácil de entender
desde que as vistas sejam curtas e não se olhe para lá das fronteiras.
Populista,
nacionalista e a agitar o fantasma do racismo, o líder da América ainda começou
por dar a entender uma aproximação à união da América, mas não resistiu ao
discurso divisivo de quem não sabe ganhar. Elencou promessas que prometem
restaurar a grandeza económica e garantiu que vai erradicar o terrorismo
islâmico, para gáudio das multidões que encheram o Capitólio.
Com
a mão na bíblia e a cabeça no Twitter, o novo Presidente fez um discurso em que
misturou tiradas de livros de auto-ajuda, invocações de poderes divinos e
apelos ao ódio. Tudo embrulhado numa densidade discursiva digna apenas de uma
campanha eleitoral. Frases curtas, que se esgotam em si mesmas, seguidas de
outras no mesmo tom, com a cadência dada pelas palmas nas pausas para respirar.
O
efeito é o mesmo do conseguido em campanha: moralizar o povo para ganhar
força na luta contra a elite e o poder instalado de que ele, paradoxalmente, é
o máximo representante. Trump sabe que ganhou com este discurso e sabe que é
ele que o pode suster nas próximas lutas. Não vão ser quatro anos fáceis: O
Presidente vai lutar contra o Congresso republicano, contra a justiça, a
imprensa e os próprios serviços de inteligência. E em todos os embates vai usar
a lógica do “nós contra eles” – receita infalível, dogmática e fácil
de apreender pela turba ululante que compra os bonés de basebol.
Com
isto, os americanos abandonaram a lógica bipartidária. Não basta dizer muitas
vezes América para fazer um conservador, não chega repetir a crença no povo
para defender a democracia. O conservadorismo sai de cena, não pelo
extremismo do Tea Party mas pelo populismo com tiques autoritários de Donald
Trump. Nesse sentido, os Estados Unidos são mais uma peça no dominó populista
que tem varrido as democracias ocidentais e que pode ter os próximos
desenvolvimentos na Holanda e em França.
A
partir de hoje, os EUA escolheram estar contra a globalização e a favor de um
mundo com fronteiras. Um mundo contra a diferença, contra o clima, contra o
comércio livre e contra a estabilidade. A América até pode voltar a ser tão
grande como o novo Presidente deseja, mas o custo vai ser alto.