O primeiro, sobre a anulação
do Brexit, o que não será possível, numa nação orgulhosa que, segundo Maria
João Avillez, meteu a pata na poça. Deus de Ourique, faz que acabe o Brexit,
que o Reino Unido não abandone os do Continente, que mantenha a aura do seu
poderio e superioridade, que não se exclua dos irmãos da ala de cá da Mancha.
Até a si próprio favoreceria internamente, se apagasse o Brexit, mesmo que
descendo da sua majestade, pedindo desculpa.
O outro milagre, referido por António
Buscardini, é bem nacional, e trata de um milagre de têxteis - A bem
sucedida reindustrialização têxtil num país de marinheiros – que sucedeu lá pelo Norte, e nos enche de gratidão e
de orgulho nacional. Vale a pena reler, e distrairmo-nos a seguir com as
fofocas casamenteiras lá pelo Reino Unido, no relato de Maria João Avillez, que
nos mostram que o mundo continua a rolar, apesar dos Trumps.
Dois desastres e
um casamento
OBSERVADOR, 2/12/17
Michel Banier, o negociador-chefe da UE para o Brexit, parece
de vez em quando pôr veneno no diálogo com Londres. Mas esta responde por vezes
com um grau de amadorismo ou impreparação estarrecedores.
1. Não
basta saber é preciso vir. Vir para crer na amplitude do desastre. Visto
daqui de Londres e apesar da capital não traduzir a Grã-Bretanha, o
Brexit é simultaneamente um erro, um desastre e um calvário. E mesmo que
hoje ainda se invoque a argumentação política de Cameron quando então optou
(eleitoralisticamente) por convocar um referendo, o gesto, como era
arquiprevisível, revelou-se temerário. Revendo hoje o “ontem”
político-partidário de David Cameron, a sua avaliação foi de estagiário: o erro
não tem perdão, o calvário está em curso e o desastre devidamente anunciado.
Avança-se às arrecuas, dançam-se valsas-hesitações,
fazem-se e desfazem-se contas, há gaffes e atrasos inexplicáveis e
uma tensão desconfiada nas negociações entre a UE e o Reino Unido. Por
vezes parece até que Michel Barnier — o negociador-chefe da União Europeia para
o Brexit — põe veneno no seu diálogo com Londres. Mas Londres, mesmo
estando possivelmente a fazer essa quota parte de bluff que as mais
duras negociações políticas sempre pressupõem e reclamam, responde por vezes
com um grau de amadorismo ou impreparação estarrecedores. A
dúvida quase surge como legitima: os ingleses estão a tratar do Brexit como uma
emergência nacional ou como um vulgar ponto mais na agenda política face ao
qual se possam dar ao luxo de hesitar ou se dividir? E sabem o que querem? É
duvidoso, pois as próprias circunstâncias políticas de Theresa May são o melhor
espelho do imbróglio: 1) a primeira-ministra britânica rege um governo partido
ao meio, metade dos seus ministros são visceralmente contra o Brexit e a segunda
metade, que é veementemente brexitiana, ainda não perdoou à primeira não o ser
também, ou seja, há desunião feroz dentro de casa; 2) a coligação dos
conservadores de May com o DUP (partido unionista da Irlanda do Norte) tem
condicionado largamente – ou impossivelmente? — as negociações com a UE por
causa da situação específica da Irlanda do Norte. O tema é tão delicado que à
hora a que escrevo o processo encalhou: à mesa das negociações está a fatal
reposição de uma fronteira na ilha da Irlanda, que ninguém quer.
A tudo isto que não é pouco devem ser acrescentados os
brutais custos deste processo. Recursos inimagináveis em dinheiro e pessoas que
deveriam estar a ser usados para resolver questões cruciais do Reino Unido
Reino. Quais? As que se prendem intimamente com o quotidiano dos britânicos,
afectando- lhes vidas, empregos e futuro: a desigualdade (inequality)
resultante do pós-crise 2008 e a “insustentabilidade” dos gastos com os
serviços públicos, especialmente pensões (pensions time-bomb).
Por tudo isto que é muitíssimo, o desnorte e a incerteza
que se vivem no número 10 de Downing Street, vive-se com igual fidelidade e
constância, cá fora : opiniões convictamente opostas e editoriais
igualmente opostos a favor e contra o Brexit enchem dia a dia os media, e noite
após noite ,os écrans levam dúvidas e sarcasmos a plateias de ingleses tão
aturdidos quanto divididos.
Dizer divididos é pouco: enquanto arduamente prosseguem as
trocas de dossiers com a União Europeia, milhões de “remainers” — e não apenas
cabeças de cartaz como Tony Blair – não desistiram: alimentam e acalentam a
ilusão de fazer regredir asneira, pondo a esperança ao lume a ver se ela sobe
até outro referendo. É suposto haver hoje no Reino Unido mais adeptos do
“ficar” e menos do “ sair” , como se ainda fosse possível um “milagre”. Aos
olhos da Europa e do mundo as coisas parecem porém seladas mesmo não o estando
ainda: a saída da Grã-Bretanha da UE é percepcionada como sendo já de sentido
único.
Eis o primeiro desastre que tudo desaconselhava. (O que
mostra como a crise é larga, feia e profunda.)
2. É
certo que Theresa May não é Thatcher, nem sequer é a Theresa May que se dizia
que Theresa May era. Foi o que se arranjou, tempos incertos. Talvez não
fosse “a” indicada ou mais prosaicamente não estivesse “pronta” para tão alto
voo político. Em vez de ditar o rumo ao abalado Partido
Conservador saído da aventura Cameron, pareceu sempre ela própria perdida na
escolha do caminho. Capturada por uma espécie de tibieza que sendo porventura
ditada pela complexidade da situação e a divisão dos seus pares, mais que por
defeito ou incapacidade políticas, tem sido incapaz de exibir autoridade e
norte.
Daqui ao segundo desastre foi um passo e o segundo
desastre — igualmente dispensável — foi a convocação de eleições pela
própria Theresa May. Uma esforçada amadora não faria melhor. Das urnas
saiu um enfraquecido e fragmentado lote conservador e o que parecia um facto
político improvável há um ano – a perda de pé dos Tories face a um
envelhecido partido trabalhista, sem votos nem agenda — transformou-se numa
probabilidade: os trabalhistas podem estar de regresso ao palco da política
governativa. A desigualdade” acima referida — cada vez mais acentuada,
aliás — pode bem ser o motor de arranque para a corrida de regresso á cena.
Além de que Jeremy Corbyn fala bem, interpela bem e tem com ele
uma muito apreciável fatia de jovens da classe média e média-baixa. Soltou-se
como peixe na água na política e galopa nas sondagens. Não é violento, tem
postura cordata mas é teimosamente dotado e não desdenha do modelo venezuelano.
O seu programa aterroriza o empresariado, a banca, o dinheiro, os
criadores de riqueza. Na City diz-se sem tropeçar nas palavras que “muito pior
que o Brexit seria a vitória de Corbyn”. Eles sabem: os mandamentos
radicais do radical Corbyn quanto ao controle sobre os bancos – por exemplo –
teriam naturalmente o condão de asfixiar a primeira ou segunda maior praça
financeira do mundo. Conhecem-se de cor as consequências, elas não são de todo
imprevisíveis. Tal como de resto não o eram no Brexit. (Mas seria preciso, não
é verdade? que a natureza humana nascesse outra vez.)
3. Subitamente
eis os desastres varridos do ar do tempo por um furacão amoroso. Os
ingleses que perdem literalmente a cabeça com a monarquia, estão numa nuvem cor
de rosa: Harry, o príncipe ruivo e meio vadio, pinga amor, preguiçoso,
soldado destemido e supostamente pouco amante da monarquia, vai casar com uma
“mixed-race, divorced and american actress” (Financial Times dixit) ,
chamada Meghan Markle. Eis em todo o seu esplendor de clichés e itens, o
cardápio do politicamente correcto, gloriosamente travestido de conto de fadas.
Mas a Inglaterra parou. Exit Brexit, adeus chatices. As
televisões pareciam que tinham corda, imprimiu-se mais papel, estamparam-se de
imediato fotos, reportagens, entrevistas, caricaturas amáveis. E uma
torrente de perguntas (“as cunhadas Kate e Meghan dar-se-ão bem ou serão
rivais”?); vaticínios esperançosos (“Meghan pode ser a nova Diana!”); apostas
(“o vestido de noiva, será resolutamente actual”); apreciações (“Meghan está
muito à vontade no mundo de hoje”); convicções (“o casal poderá finalizar o que
a Princesa Diana começou, adaptando a monarquia aos requisitos da época”); água
de rosas (“quando começará a contagem decrescente para a chegada do primeiro
bebé?).
As revistas “sociais” rejubilaram e venderam. Mas o tom de
editores e articulistas de jornais como o Daily
Telegraph, Times, Guardian, Financial Times, não oscilava na
análise e até nalguma quota parte da felicidade. Se bem percebi trata-se da “monarquia
moderna”. O casamento trará fôlego à antiga e com isso alentará a
própria instituição monárquica, livrando-a, por agora, do temível risco do
esmorecimento. Na monarquia “moderna”, os noivos são gente independente que faz
pela vida e Meghan até já avisou que “não quis ser uma lady que
almoça mas uma mulher que trabalha”. (Pelo sim pelo não, fechou o seu
blogue e desistiu da sua obscura carreira.)
Como a monarquia é “moderna” os noivos são simples
(sub-entendido: iguais a “nós”) e estão próximos do povo. São aliás tão
“descontraídos” que anunciaram o seu noivado aos media como se estivessem “on
a casual data at Pizza Express”.
E claro, a noiva, trinta e cinco anos que já terão conhecido
maior frescura, será um óbvio e muito bem vindo factor de negócio: cada peça da
elegante indumentária que usou agora no primeiro acto oficial foi de tal forma
cobiçada que logo esgotou nas firmas e marcas de onde provinha. E ainda a
procissão não entrou na igreja.
Em 2010 mais de metade dos britânicos (52%) “pensava” que a
monarquia “seria abolida em 2050”. Segundo a empresa YouGov, o ano passado o
número desceu para 16% mas dada a excitação vigente e omnipresente que varre
por estes dias a Grã-Bretanha, interrogo-me, olhando a media nas bancas, se a
percentagem não terá descido vertiginosamente mais uns por cento.
Como perguntava o mesmo FT: “a única questão agora é saber
que actriz representará a actriz Meghan Markle neste novo filme de Hollywood?”
Deve ser isto que se chama de monarquia moderna.
A bem sucedida
reindustrialização têxtil num país de marinheiros
OBSERVADOR, 6/12/17
São muitos os sinais que
comprovam o sucesso da extraordinária capacidade de sobrevivência e adaptação à
mudança da indústria têxtil portuguesa - que os mais crentes não hesitam em
apelidar de milagre
No virar do século, o pensamento europeu dominante olhava
a China como a fábrica do mundo e sonhava com o Velho Continente a viver
confortavelmente à custa dos serviços, num ambiente clean, finalmente
livre da poluição e ruído que a indústria tradicionalmente fazia.
Mas algures no Norte de Portugal, um grupo irredutível de
industriais têxteis resolveu resistir, fazendo orelhas moucas a este canto das
sereias de Bruxelas e Lisboa, e teimosamente lutou por manter as suas fábricas
a laborar.
Não foi fácil continuar a navegar no mar tempestuoso que
se seguiu ao desmantelamento do acordo Multifibras e à adesão dos países
asiáticos à OMC. Foram muitas as empresas que não se aguentarem ao balanço e
naufragaram.
No entanto, contra ventos e marés, o essencial da esquadra
têxtil portuguesa ultrapassou o verdadeiro cabo das Tormentas que foi a
primeira dúzia de anos do século XXI, transformando-o no cabo da Boa Esperança
e logrou, finalmente, chegar a um bom porto – com todas as estatísticas
(produção, exportação, emprego e valor acrescentado) a registarem uma clara e
consistente trajetória ascendente nos últimos cinco anos.
Bem vistas as coisas, talvez não fosse de esperar outra
coisa, até porque Portugal sempre foi um pais de marinheiros .
A viagem foi dura e a sobrevivência passou pela
reconversão completa do modelo de negócio, feita em andamento por uma indústria
que estava habituada a usar o preço como trunfo e que para manter a cabeça fora
de água teve de rapidamente se reequipar e reinventar, subindo na cadeia de
valor — e passar a ser atractiva pela qualidade, know how secular,
tecnicidade, inovação, proximidade, flexibilidade e capacidade de resposta.
É certo que na parte final da viagem, o mar começou a
acalmar e os fortes ventos contrários não só amainaram com até se começou a
sentir um ligeira brisa a soprar a favor — o ritmo da moda começou a acelerar
de tal maneira que a capacidade de produzir séries pequenas em prazos
incrivelmente curtos tornou a industria têxtil portuguesa ainda mais sexy aos
olhos dos compradores das grandes marcas mundiais.
São inúmeros os sinais que comprovam o sucesso da
extraordinária capacidade de sobrevivência e adaptação à mudança da indústria
têxtil portuguesa — que os mais crentes não hesitam em apelidar de milagre.
Os números são sempre uma boa prova dos nove. Em 2016, as
exportações têxteis portuguesas ultrapassaram a barreira dos cinco mil milhões
de euros, batendo um recorde que durava desde 2001, quando o setor tinha o
dobro das empresas e do emprego. Um recorde que vai voltar a ser quebrado este
ano, com uma progressão de 4%, bem acima dos 2,5% estimados para o crescimento
do PIB nacional.
E como as vozes de fora são sempre um bom barómetro, vale
a pena citar um artigo de página do francês Journal du Textile,
intitulado “Le Portugal a réussi sa réindustrialisation”, em que se noticia o investimento
de mil milhões de euros em formação bruta de capital fixo feito nos últimos
quatro ano pelas têxteis portuguesas, elogia “o vigor reencontrado pela
industria têxtil portuguesa, graças a um novo modelo económico baseado na
inovação”, se garante que “o Made in Portugal rima agora com qualidade,
resposta rápida e facilidade” – , explicando este último atributo (a
facilidade) pelo facto de 85% da industria estar geograficamente localizada a
um máximo de 60 quilómetros do Porto.
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