Uma autêntica avalanche de horrores esta da manipulação da funcionalidade
humana pelas empresas de trabalho britânicas sobre os seus trabalhadores.
Aquilo que Charlie Chaplin satiriza em Tempos Modernos, através das
cenas poderosas de humor desempenhadas pelo mágico actor crítico, transformado o
homem em escravo da máquina, perde em dimensão ante a monstruosidade do que
conta Bagão Félix no primeiro texto, sobre o controle da rentabilidade humana
pelos senhores do capital, sobre um trabalho de absoluta escravização e
controle, de desrespeito pelos valores de responsabilização ensinados em tempos
idos como valores dignificantes do Homem. Sim, é preciso ser-se cumpridor, mas
em liberdade de consciência. Nós, por cá, talvez não o sejamos muito, e nem
sequer sabemos reconhecer competências, a menos que estas sejam industriadas na
subserviência às chefias, proporcionadoras da tal progressão nas carreiras, por
que se aspira. Seremos desleixados, mas a disciplina imposta da forma por que o
descreve Bagão Félix, de resto, como bem acentua, já preconizada, no livro de
George Orwell, 1984, sátira aos
governos totalitários que o olhar sinistro
de um big brother simboliza, na realidade torna os homens mais escravos ainda,
não tanto das máquinas produtoras de trabalho, mas das máquinas de controlo
humano, medidoras hediondas de eficiência, a cargo dos donos das empresas, forma totalmente
vil de rebaixar o ser humano à categoria de ovelha de rebanho. Um artigo
arrepiante o de Bagão Félix, sobre uma tal monstruosidade possível neste século
XXI, que se deveria esperar de uma racionalidade mais apurada e, pelo contrário,
revela um total desprezo pelo bicho homem, cada vez mais reduzido a um “Ninguém”
inconsciente, apesar dos aparelhos sofisticados do seu bem-estar material, que os donos do capital possibilitam, em aparência de solidariedade respeitadora
do bem-estar.
Quanto ao segundo texto de Bagão Félix, olhar atento aos desmandos da
política governativa, é mais uma prova de uma presença que ainda, neste país livre,
se pode permitir revelar, acusando, não para castigar, mas para corrigir - se
cair em alguma consciência corrigível - o que, dum modo geral, não é o caso, a
ironia desmistificadora caindo, as mais das vezes, em saco roto.
1º TEXTO: Economia humana? Onde está ela?
António Bagão Félix
27
de Novembro de 2017
Há tempos, vi num jornal britânico uma notícia acerca de
novos instrumentos de controlo sobre o trabalho em empresas do Reino Unido. Eram dados exemplos de “people
analytics”, através de sofisticados
aparelhos e softwares de
controlo ininterrupto. O objectivo
não disfarçado é o de medir a produtividade, o empenho, a preparação, mas
também coligir dados sobre contactos, emoções, descanso, vida pessoal.
Segundo
a notícia, pelo menos quatro importantes empresas, incluindo um dos maiores
bancos de retalho, estão a utilizar cartões colocados junto ao pescoço com um
microfone para análise em tempo real da voz, sensores Bluetooth para
escrutinar a proximidade de colegas e um medidor da actividade física e do
tempo de conversa. “Através do tratamento destes dados
pode ter-se uma informação detalhada de como as pessoas comunicam e a previsão
de aspectos psicológicos e comportamentais”. Mede-se o tom, embora (ainda) não o conteúdo das
conversas. Nas actividades de venda, é possível registar toda a linguagem
corporal.
Outra
empresa aplicou uma tecnologia para aferir o estado físico das pessoas quando
se levantam, para medir a actividade cerebral e as emoções, a fadiga, o stress, a relação
com o álcool e os padrões de sono. O próximo passo parecer ser o de “CV
biométricos” que possibilitem um quadro exaustivo da adequação, qualificação e
aptidão para o trabalho.
Surpreendente
é que sendo estes registos (aparentemente) voluntários, a sua adesão ande perto
dos 90%. Mas percebe-se porquê…
Este Big Brother de
enésima geração vai avançando, pelos vistos, inexoravelmente. Com o silêncio
dos atingidos, a omissão dos poderes regulatórios, o entusiasmo gestionário que
olha para as pessoas como instrumentais, e a incapacidade das forças sindicais
em se reposicionarem num mundo que pouco já tem a ver com a sociedade
assalariada de outrora.
Distraída
ou talvez não, a sociedade mergulha delirantemente nas novas tecnologias,
correndo o risco de ficar algemada pela violação consentida ou forçada da sua
privacidade e do seu direito à individualidade e à plena expressão dos direitos
de personalidade.
As
novas técnicas são sedutoras, mas a nossa autonomia exige que a sua aplicação
seja acompanhada de responsabilidade moral no seu uso. O seu fascínio é
ambivalente. Vale para nos libertar pelo progresso a elas associado, mas também
para desumanizar as relações e encarcerar as consciências.
Outrora, o maior risco era a escravidão. Agora e numa
espiral alucinante, robotizam-se
atitudes e as pessoas
correm o risco de ficar prisioneiras e vítimas das novas máquinas e softwares, com que muita gente se deixa envolver alegremente. Quando prevalece a absolutização da técnica,
verifica-se uma confusão entre fins e meios. Corre-se o risco de não ser o
homem a dominar a máquina, mas a ela se submeter, levantando-se insondáveis
interrogações sobre a ligação entre técnica e ética. O trabalho tem um sentido
ético e não apenas técnico. É que nem tudo se reconduz a mais ou a menos
algoritmos impostos à natureza humana. As inteligências artificiais são isso
mesmo: serão inteligências, mas também não deixarão de ser artificiais. Não
sentem, não desejam, não vivem…
Ao
mesmo tempo, os grandes operadores nestas áreas são glorificados acriticamente,
na sua lógica capitalista predatória e na inovação de puro apelo consumista
levado aos extremos. Passaram a mandar, de facto, no mundo global e a ameaçar
os poderes democráticos. Fogem fácil e descaradamente aos impostos, mas são
endeusados como símbolos da transparência (?) e da inovação. Hoje, a sigla
FAAMG (Facebook, Amazon, Apple, Microsoft e Google) determina mais no mundo de
que os chefes de Estado e de Governo.
Economia
humana? Onde está ela?
2º TEXTO: Sal sem remédio e perguntas sem sal
António Bagão Félix
Público,
30 de Novembro de 2017
Dias frenéticos na actual política portuguesa que
espelham, a meu ver, o seu lado mais inconsequente e errático. Seleccionando
apenas quatro situações, qual delas a mais patética:
1. Infarmed: eis, de súbito, uma avassaladora vontade de pretensa descentralização
(em bom rigor de apenas desconcentração).
De súbito, uma tão serôdia quanto improvisada transferência para o Porto. Já
não de súbito, uma mentirola do PM numa recente entrevista, fingindo que o
assunto estava há muito congeminado. O ministro da Saúde – fazendo fé nas
palavras da presidente do Instituto em entrevista ao PÚBLICO – dizendo que,
afinal, não se trata de uma decisão, mas tão-só de uma “intenção”,
suponho que para diminuir a tensão.
Entretanto, o presunçoso presidente da CM do Porto exultou e logo escreveu
nas redes sociais (para depois apagar) que estava “a adorar o ressabiamento de alguns. Assim vale a pena!”, evidenciando, além do mais, uma enorme falta de
respeito pela quase totalidade dos técnicos e funcionários do Infarmed. Por fim, o sempre escasso dinheiro não será problema
(o que custa a mais e o que entra a menos…) para tão súbita prioridade. Em
suma, um verdadeiro “jackpot” de asneiras, vacuidades, precipitações,
demagogias e vaidades.
2.Taxa sobre produtos
com excesso de sal: chumbada na AR por proposta do CDS (e viabilizada pela
abstenção do PCP!), por entender que esta tributação “não passa de uma medida para arrecadar mais receita e que
não é pela via fiscal que se promove a adopção de hábitos alimentares mais
saudáveis”. Não se lhes enxergou que esta medida (tecnicamente um
imposto “intencionalmente distorcedor”) é uma forma de compensar a
“externalidade negativa” para a sociedade do notório excesso de consumo de sal,
com reflexos nas despesas públicas e familiares de saúde. Não se deram ao
trabalho de constatar como a indústria alimentar se adaptou bem a um imposto
semelhante antes lançado sobre produtos com alto teor de açúcar. E o PCP, numa
improvável e espúria coligação momentânea, a achar que basta mais um romântico
plano de prevenção sobre o sal. Vá lá a gente entender tudo isto…
3. Isenção de IMI
para os imóveis que arderam nos fogos deste ano: PS, BE e PCP
chumbaram esta isenção temporária (2017 e 2018). Disse o deputado A. Leitão
Amaro (PSD) que “o Estado falhou, mas ainda quer
que os contribuintes paguem impostos por património que já não existe ou que já
não tem o mesmo valor. isto é inaceitável! “. Onde está a sensibilidade do Governo e dos
partidos que o apoiam perante uma proposta tão óbvia e justa? É isto a
esquerda?
4. Encenação de perguntas ao CM. Um exercício farsante e quase “chavista”.
Perguntas recorrentes de catálogo e respostas tão banais, quanto abstractas.
Não diria melhor que Dalai-Lima no seu blogdodalailima.blogspot.pt: “as perguntas originais não eram do conhecimento do
Governo, e poderiam variar entre «Tem,
V. Ex.ª, Sr. Primeiro-Ministro, a consciência de que o Executivo que V. Ex.ª
tão brilhantemente chefia, é responsável por um surto de progressos sem
precedentes na história democrática da Nação?»
e «Perdoe-me a dúvida, Sr. Primeiro-Ministro, mas não lhe parece que a verba
que V. Ex.ª reservou para a satisfação das justas reivindicações dos
professores portugueses de contagem de tempo de serviço […] relativamente aos
nove anos de intervenção nociva do Governo que antecedeu o seu, 650 milhões de
euros, mais não é que uma medida da mais elementar justiça?»
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