segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Bagão Félix, um escritor frontal - II


Uma autêntica avalanche de horrores esta da manipulação da funcionalidade humana pelas empresas de trabalho britânicas sobre os seus trabalhadores. Aquilo que Charlie Chaplin satiriza em Tempos Modernos, através das cenas poderosas de humor desempenhadas pelo mágico actor crítico, transformado o homem em escravo da máquina, perde em dimensão ante a monstruosidade do que conta Bagão Félix no primeiro texto, sobre o controle da rentabilidade humana pelos senhores do capital, sobre um trabalho de absoluta escravização e controle, de desrespeito pelos valores de responsabilização ensinados em tempos idos como valores dignificantes do Homem. Sim, é preciso ser-se cumpridor, mas em liberdade de consciência. Nós, por cá, talvez não o sejamos muito, e nem sequer sabemos reconhecer competências, a menos que estas sejam industriadas na subserviência às chefias, proporcionadoras da tal progressão nas carreiras, por que se aspira. Seremos desleixados, mas a disciplina imposta da forma por que o descreve Bagão Félix, de resto, como bem acentua, já preconizada, no livro de George Orwell, 1984, sátira aos governos totalitários que o olhar sinistro de um big brother simboliza, na realidade torna os homens mais escravos ainda, não tanto das máquinas produtoras de trabalho, mas das máquinas de controlo humano, medidoras hediondas de eficiência, a cargo dos donos das empresas, forma totalmente vil de rebaixar o ser humano à categoria de ovelha de rebanho. Um artigo arrepiante o de Bagão Félix, sobre uma tal monstruosidade possível neste século XXI, que se deveria esperar de uma racionalidade mais apurada e, pelo contrário, revela um total desprezo pelo bicho homem, cada vez mais reduzido a um “Ninguém” inconsciente, apesar dos aparelhos sofisticados do seu bem-estar material, que os donos do capital possibilitam, em aparência de solidariedade respeitadora do bem-estar.
Quanto ao segundo texto de Bagão Félix, olhar atento aos desmandos da política governativa, é mais uma prova de uma presença que ainda, neste país livre, se pode permitir revelar, acusando, não para castigar, mas para corrigir - se cair em alguma consciência corrigível - o que, dum modo geral, não é o caso, a ironia desmistificadora caindo, as mais das vezes,  em saco roto.

1º TEXTO: Economia humana? Onde está ela?
António Bagão Félix
27 de Novembro de 2017
Há tempos, vi num jornal britânico uma notícia acerca de novos instrumentos de controlo sobre o trabalho em empresas do Reino Unido. Eram dados exemplos de “people analytics”, através de sofisticados aparelhos e softwares de controlo ininterrupto. O objectivo não disfarçado é o de medir a produtividade, o empenho, a preparação, mas também coligir dados sobre contactos, emoções, descanso, vida pessoal.
Segundo a notícia, pelo menos quatro importantes empresas, incluindo um dos maiores bancos de retalho, estão a utilizar cartões colocados junto ao pescoço com um microfone para análise em tempo real da voz, sensores Bluetooth para escrutinar a proximidade de colegas e um medidor da actividade física e do tempo de conversa. “Através do tratamento destes dados pode ter-se uma informação detalhada de como as pessoas comunicam e a previsão de aspectos psicológicos e comportamentais”. Mede-se o tom, embora (ainda) não o conteúdo das conversas. Nas actividades de venda, é possível registar toda a linguagem corporal.
Outra empresa aplicou uma tecnologia para aferir o estado físico das pessoas quando se levantam, para medir a actividade cerebral e as emoções, a fadiga, o stress, a relação com o álcool e os padrões de sono. O próximo passo parecer ser o de “CV biométricos” que possibilitem um quadro exaustivo da adequação, qualificação e aptidão para o trabalho.
Surpreendente é que sendo estes registos (aparentemente) voluntários, a sua adesão ande perto dos 90%. Mas percebe-se porquê…
Este Big Brother de enésima geração vai avançando, pelos vistos, inexoravelmente. Com o silêncio dos atingidos, a omissão dos poderes regulatórios, o entusiasmo gestionário que olha para as pessoas como instrumentais, e a incapacidade das forças sindicais em se reposicionarem num mundo que pouco já tem a ver com a sociedade assalariada de outrora.
Distraída ou talvez não, a sociedade mergulha delirantemente nas novas tecnologias, correndo o risco de ficar algemada pela violação consentida ou forçada da sua privacidade e do seu direito à individualidade e à plena expressão dos direitos de personalidade.
As novas técnicas são sedutoras, mas a nossa autonomia exige que a sua aplicação seja acompanhada de responsabilidade moral no seu uso. O seu fascínio é ambivalente. Vale para nos libertar pelo progresso a elas associado, mas também para desumanizar as relações e encarcerar as consciências.
Outrora, o maior risco era a escravidão. Agora e numa espiral alucinante, robotizam-se atitudes e as pessoas correm o risco de ficar prisioneiras e vítimas das novas máquinas e softwares, com que muita gente se deixa envolver alegremente. Quando prevalece a absolutização da técnica, verifica-se uma confusão entre fins e meios. Corre-se o risco de não ser o homem a dominar a máquina, mas a ela se submeter, levantando-se insondáveis interrogações sobre a ligação entre técnica e ética. O trabalho tem um sentido ético e não apenas técnico. É que nem tudo se reconduz a mais ou a menos algoritmos impostos à natureza humana. As inteligências artificiais são isso mesmo: serão inteligências, mas também não deixarão de ser artificiais. Não sentem, não desejam, não vivem…
Ao mesmo tempo, os grandes operadores nestas áreas são glorificados acriticamente, na sua lógica capitalista predatória e na inovação de puro apelo consumista levado aos extremos. Passaram a mandar, de facto, no mundo global e a ameaçar os poderes democráticos. Fogem fácil e descaradamente aos impostos, mas são endeusados como símbolos da transparência (?) e da inovação. Hoje, a sigla FAAMG (Facebook, Amazon, Apple, Microsoft e Google) determina mais no mundo de que os chefes de Estado e de Governo.
Economia humana? Onde está ela?

2º TEXTO: Sal sem remédio e perguntas sem sal
António Bagão Félix
Público, 30 de Novembro de 2017
Dias frenéticos na actual política portuguesa que espelham, a meu ver, o seu lado mais inconsequente e errático. Seleccionando apenas quatro situações, qual delas a mais patética:
1. Infarmed: eis, de súbito, uma avassaladora vontade de pretensa descentralização (em bom rigor de apenas desconcentração). De súbito, uma tão serôdia quanto improvisada transferência para o Porto. Já não de súbito, uma mentirola do PM numa recente entrevista, fingindo que o assunto estava há muito congeminado. O ministro da Saúde – fazendo fé nas palavras da presidente do Instituto em entrevista ao PÚBLICO – dizendo que, afinal, não se trata de uma decisão, mas tão-só de uma “intenção”, suponho que para diminuir a tensão. Entretanto, o presunçoso presidente da CM do Porto exultou e logo escreveu nas redes sociais (para depois apagar) que estava “a adorar o ressabiamento de alguns. Assim vale a pena!”, evidenciando, além do mais, uma enorme falta de respeito pela quase totalidade dos técnicos e funcionários do Infarmed. Por fim, o sempre escasso dinheiro não será problema (o que custa a mais e o que entra a menos…) para tão súbita prioridade. Em suma, um verdadeiro “jackpot” de asneiras, vacuidades, precipitações, demagogias e vaidades.
2.Taxa sobre produtos com excesso de sal: chumbada na AR por proposta do CDS (e viabilizada pela abstenção do PCP!), por entender que esta tributação não passa de uma medida para arrecadar mais receita e que não é pela via fiscal que se promove a adopção de hábitos alimentares mais saudáveis”. Não se lhes enxergou que esta medida (tecnicamente um imposto “intencionalmente distorcedor”) é uma forma de compensar a “externalidade negativa” para a sociedade do notório excesso de consumo de sal, com reflexos nas despesas públicas e familiares de saúde. Não se deram ao trabalho de constatar como a indústria alimentar se adaptou bem a um imposto semelhante antes lançado sobre produtos com alto teor de açúcar. E o PCP, numa improvável e espúria coligação momentânea, a achar que basta mais um romântico plano de prevenção sobre o sal. Vá lá a gente entender tudo isto…
3. Isenção de IMI para os imóveis que arderam nos fogos deste ano: PS, BE e PCP chumbaram esta isenção temporária (2017 e 2018). Disse o deputado A. Leitão Amaro (PSD) que “o Estado falhou, mas ainda quer que os contribuintes paguem impostos por património que já não existe ou que já não tem o mesmo valor. isto é inaceitável! “. Onde está a sensibilidade do Governo e dos partidos que o apoiam perante uma proposta tão óbvia e justa? É isto a esquerda?
4. Encenação de perguntas ao CM. Um exercício farsante e quase “chavista”. Perguntas recorrentes de catálogo e respostas tão banais, quanto abstractas. Não diria melhor que Dalai-Lima no seu blogdodalailima.blogspot.pt: “as perguntas originais não eram do conhecimento do Governo, e poderiam variar entre «Tem, V. Ex.ª, Sr. Primeiro-Ministro, a consciência de que o Executivo que V. Ex.ª tão brilhantemente chefia, é responsável por um surto de progressos sem precedentes na história democrática da Nação?» e «Perdoe-me a dúvida, Sr. Primeiro-Ministro, mas não lhe parece que a verba que V. Ex.ª reservou para a satisfação das justas reivindicações dos professores portugueses de contagem de tempo de serviço […] relativamente aos nove anos de intervenção nociva do Governo que antecedeu o seu, 650 milhões de euros, mais não é que uma medida da mais elementar justiça?»



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