Tenho-o deixado de lado, na floresta de bons cronistas e na premência de
artigos que os ventos da história vão fazendo abanar, largando folhagem em
breve dispersa e perseguida por outra e outra, no frenesim dos acontecimentos
sem tréguas que a irrequietude dos homens transpõe ao tempo.
E, no entanto, Bagão Félix é um
escritor que prezo, e que me faz recuar aos seus comentários clarividentes. São
já antigos os dois que seguem, mas a justeza de observação e a qualidade da sua
imagística, na natural repulsa pelo espectáculo degradante que refere – o
primeiro, sobre os comentadores futebolísticos açambarcando os canais
televisivos, escarrando sobre os lorpas que os escutam a imundície da sua
desenvoltura em toda a pujança de um à-vontade e de uma má criação ilimitada e
sem controle, que a televisão surpreendentemente acata, imune a uma função
formativa que deveria ser seu apanágio; o segundo, sobre as coisas do OE e do governo
de cedências e de arrogantes ficções de fortaleza, que uma forte hipocrisia
conduz, na ânsia de o não perder…
A miséria do nosso futebol
António Bagão Félix
Público, 4 de Novembro de 2014
Sempre me interessei
pelo futebol. Sou entusiasticamente adepto de um clube. Vibro com os seus
sucessos e padeço com os seus desaires. Um sentimento naturalmente tão
autêntico, como não isento. É esta aparente contradição que faz do jogo jogado
simultaneamente uma delícia e um risco. Reconheço que nem sempre a
racionalidade fica à frente da emoção. Como adepto, evidentemente.
Acontece que a
atmosfera em redor do nosso futebol está a atingir tais níveis de inquinamento
e poluição que, crescentemente, sinto necessidade de me voltar para dentro e
ignorar o que quase sempre me aprazeu.
Chegou-se ao nível
zero? Não, antes a um nível abaixo de zero. É como, com alguma indulgência,
poderemos qualificar o estado a que chegou o ambiente no panorama futebolístico
nacional. Jamais houve uma tal degradação, ainda que paradoxalmente num tempo
em que até somos vitoriosos campeões europeus de selecções.
Estamos diante de um ar irrespirável. Tudo vale porque nada parece valer. Como na tourada, há
todos as personagens e todas as cortesias. Os peões de brega que, mandatados na
penumbra do submundo de ordenantes, fazem a figurinha (travestida de “anjo”) de
mestres de graçolas, instigadores de veneno e geradores de ódios. Às vezes, até
são pessoas com curricula respeitáveis que, todavia, se deixam
envolver por afrodisíacos momentos de efémeros protagonismos. Depois, há os
picadores que habitam em certos fora (não todos, diga-se em abono da
justiça) e que têm sempre uma lógica fosforeira nos seus momentos de vã glória.
Há os cavaleiros que, do alto dos seus animais, usam a táctica do toca e foge,
lançando farpas e espalhando sangue e lama em jeito de ventoinha. Há os
forcados (alguns até com c cedilhado) que, laboriosamente, tecem teias em troca
de favores, prebendas e outras mordomias, sempre com um ar independente a
fingir pegar pelos cornos do bicho. Há os toureiros, uns mais exuberantes no
manejo da muleta, outros mais silenciosos e escondidos. Por fim, há o
inteligente. Que sempre se considera moralmente acima dos outros, que sempre é
o único e inimitável, que sempre se proclama peregrino da revolução ética que
urge fazer.
Como no Titanic, todos
cantam e bailam ao som da música, contribuindo para afundar o que ainda está
emerso. Que lhes importa isso? Actuam na aparência de “salvadores da pátria”,
quais redentores ungidos pela providência. Nem sequer querem saber que o
desastre de uns é o desastre de todos. Falam como detentores de uma verdade que
se esfarela no virar de um fim-de-semana seguinte. Agem como predadores sem se
aperceberem que se estão a auto-mutilar. Desrespeitam-se uns aos outros com uma
frequência tão regular, como institucionalmente letal. Não enxergam que, no dia
seguinte, a água que os afunda lhes entra pelos poros da boçalidade e pelos
pulmões da imbecilidade. Julgam-se imunes a todas as contingências e isentos de
todas as formas respeitáveis de relação. Alimentados freneticamente por alguns
modos ínvios de comunicação social, uns são verdadeiros vampiros à busca de
sangue e raiva, outros há imperadores da má-criação, da barbárie ética, da
vilanagem, da mentira, do boato, do anonimato ou da cobardia.
Os poderes públicos –
com a honrosa, ainda que impotente, excepção da FPF – assobiam para o lado, ou
prestam parvas vassalagens e distribuem honrarias, ou, ainda, dizem umas pias
palavrinhas sem qualquer resultado. Isto já não vai lá assim. Legislem de
modo a não beneficiar os infractores, actuem de maneira a não favorecer os
incendiários. Todos agradeceremos, mas principalmente os futuros adultos que,
hoje, enquanto crianças, só conhecem o lado mau deste entusiástico desporto.
O supermercado orçamental
Público,
7 de Novembro de 2017,
António
Bagão Félix
O
itinerário orçamental
para 2018 revelou, de um modo indisfarçável, a lógica de sustentação de um
governo minoritário através de uma maioria parlamentar ad hoc que,
sem ter a responsabilidade de governar, é capaz de condicionar o Executivo,
senão mesmo de o acorrentar.
O governo não tem uma estratégia minimamente consistente. Navega ao sabor do cardápio da reversão
austeritária, procura satisfazer as clientelas eleitorais pensando
obsessivamente nas próximas eleições, dança alternadamente com o PCP e o BE em
função dos assuntos, manipula as expectativas de um modo ilusório, põe de lado
qualquer laivo de reformas de fundo, aliás incompatíveis com o seu tacticismo
calculista.
Nunca
é responsável por nada que corra mal. Nos últimos tempos, a tragédia dos fogos
foi culpa do acaso, Tancos uma historieta, a Legionella num hospital público um
acidente inimputável, a candidatura para a Agência Europeia do
Medicamento uma vitória moral. Por sua vez, a “Web Summit” foi um pretexto
para ver o poder português em permanente genuflexão bajulante perante uns
“rapazes do futuro”. Nem vale a pena falar dessa “panteãominice” em que a
lógica de Pilatos passou, como um furacão, pelo Primeiro-ministro e outros
responsáveis públicos. Ou da mudança demagógica do Infarmed para consolar o
Porto (paixão serôdia e oportunista do governo) e, no fim, aumentar a despesa.
A
discussão na especialidade do OE para 2018 é a expressão do carácter errático
da política nacional. É o tempo de o PCP e o BE abrirem o supermercado das
medidas das suas clientelas e de o grupo parlamentar do PS as acompanhar
“assim, assim” num exercício de trapezismo e contorcionismo para fingir que
ganhou seja qual for o resultado final. O Governo promete hoje uma coisa em
abstracto (usando a linguagem do PM), amanhã diz que, em concreto, não há
condições ou que, talvez sim, em pseudo concreto a partir de 2019… Honra seja
feita ao ministro das Finanças que é o único que verdadeiramente sente quão
nefasta é esta lógica e procura limitar os danos.
O
caso dos professores é paradigmático.
Independentemente da razão (parcial) que cada uma das partes tem, eis novamente
o Estado a pôr e a dispor dos impostos para alimentar as pretensões do seu
aparelho. Os sindicatos até terão razão em dizer que tempo de carreira
congelado não é o mesmo que tempo de carreira eliminado. Mas são os mesmos
sindicatos que sempre se têm oposto a uma avaliação efectiva (e não meramente
formal ou procedimental) dos professores. Entretanto, com o
ministro-sindicalista ausente, houve apenas horas e horas de negociação e
fingimento de acordo, com jogos de palavras entre recomposição, reconstrução e
recuperação no “quadro das especificidades desta carreira unicategorial”
(mais um palavrão criado).
E
já se perfilam outras categorias da Administração com a mesma pretensão dos
professores. É no que dá o estilo ambíguo, pouco frontal e pretensamente
“abrangente” do governo.
Há,
ainda, dois pontos que merecem ser referidos. Um tem a ver com a obsessiva
lógica dos sindicatos afectos à função pública sempre a invocar injustiças face
à actividade privada, excepto quando não lhes convém (foi o caso das 35 horas
de trabalho semanal). Neste caso, porque é que o dinheiro dos impostos
deve ir inteirinho para os descongelamentos públicos e não também, directa ou
indirectamente, ser afecto aos trabalhadores não públicos? É que foi nestes que
o desemprego atingiu valores socialmente insuportáveis e houve congelamentos de
toda a espécie, sem possibilidade de recuperação do tempo perdido.
Por
fim e sempre, a lógica sindical só olha para os activos. Por que razão não se
fala dos professores aposentados no período de congelamento das suas carreiras
que viram inexoravelmente a sua pensão ficar mais reduzida? Será porque não
podem fazer greves?
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