É expressão que ouvi há 62
anos num metro em Paris, em Agosto de 1955, a uma matrona francesa, que saiu porta
fora na sua estação, escandalizada com o espectáculo de um homem e uma mulher
esfregando-se, bem aconchegados, de pé, publicamente, ao longo do trajecto, sem
se importarem com os passageiros da carruagem não totalmente atulhada, e por
isso favorecendo uma visão abrangente do seu percurso de ardência sensual em
progressão fascinante – «coisas que terei pudor de contar seja a quem for», tal
como o reservado José Régio, disse ter, na sua “Toada de Portalegre”, sem explicar
quais fossem as suas. À vista, pois, dos espectadores democraticamente indiferentes,
manifestamente adeptos do "Homo sum, humani nihil a me alienum puto", sem
tabus - excepto as matronas francesas, ainda guardiãs dos bons costumes, tal como
eu, que também achava um horror, mas com fictícia indiferença, seguindo a norma
de adaptação, “em Roma sê romano” – segui o meu trajecto de surpresa
contida, nesses idos de 55, num Paris para todos os efeitos cidade das Luzes e
da bem-aventurança.
O nosso 25 de abril, ao
liberalizar o conceito terenciano, logo nos mostrou as nossas qualidades de seguidismo,
escarrando para cima do povo, não o quadro de um casal que expõe os seus
amores, indiferente a quem está, mas, quarenta e mais anos após, os quadros
toscos de gente tosca, como conta Alberto Gonçalves, de uma “gravidade
inominável”, como esse da criação de ”autocarros do amor”, a pretexto da
defesa das meninas contra os assédios sexuais nas ruas, e tudo isso lembrado
por jornalistas e políticas portuguesas, ou que assim se consideram, numa de
palhaçada despudorada, que Alberto Gonçalves aponta com o costumeiro dedo feroz,
denunciando a torpeza e a pobreza de escrita.
Uma torpeza que assenta no próprio governo,
aliado, por intuitos maioritários, a uma esquerda de gente de laracha, a quem
convém a desordem nos costumes. Já não há volta a dar-lhe, o povo aprendeu
depressa, Costa vai continuar a governar, com ou sem a sua aliança à esquerda,
justificativa das suas proezas de calibre soez. Seja!
Os autocarros do amor
OBSERVADOR, 30/9/2017
Felizmente, à revelia da
propaganda que tenta “vender” os transportes públicos a título de amigos do
ambiente ou da circulação urbana, há jornalistas sem medo de os denunciar como
os amigos do deboche.
Só
entravam nele passageiros, jovens bem bonitos e solteiros. Logo a seguir noutra paragem, entrou uma moça na viagem. Olhando
para todos perguntou, que carro é este em que eu vou?
É o autocarro do amor, logo respondeu o revisor O Autocarro do Amor (Os Taras e Montenegro, 1969)
É o autocarro do amor, logo respondeu o revisor O Autocarro do Amor (Os Taras e Montenegro, 1969)
Uma candidata à câmara de
Lisboa propôs a segregação de “géneros” no metro local e, sem cedência a falsos
pudores ou à hipocrisia, destapou um dos maiores dramas nacionais: o abuso
sexual das mulheres nos transportes públicos, pelo menos nos da capital.
Corajosa, Joana Amaral Dias não hesita em imitar métodos usados, para fins
raciais, na África do Sul do apartheid ou no Alabama de 1950. Democrata, Joana
Amaral Dias concede que a utilização dos lugares “protegidos” seja facultativa
– as senhoras sérias escolhem-nos; as galdérias, se assim quiserem, permanecem
na zona da pouca-vergonha.
Naturalmente, um assunto
desta gravidade não podia ficar por aqui, para cúmulo quando a gravidade raia o
inominável. A polémica, como é típico das polémicas, instalou-se. E, de
acordo ou em desacordo com a segregação, os testemunhos pungentes sucederam-se.
Nas “redes sociais”, uma arguta jornalista de investigação, célebre por ter
namorado com um trapaceiro sem suspeitar de nada, escreveu: “quero q (sic) as
miúdas (sic) d (sic) 11 possam andar na rua sem lhes pedirem broches. não (sic)
quero q (sic) andem em autocarros so (sic) p (sic) meninas. quero (sic) q (sic
– tenham paciência) a lei as proteja”. Em resposta a este apelo angustiado,
outra alegada jornalista, filha do presidente da Assembleia da República
(juro), acrescentou: “Quero que andem de autocarro sem receio de que um gajo
qualquer se encoste a elas para se vir entre uma paragem e outra.”
Embora não penetre (vade
retro) um autocarro desde 1989, não me passa pela cabeça duvidar de gente
séria. Parece-me evidente que alguma coisa medonha acontece na Carris e
similares, cujos veículos estão aparentemente repletos de exibicionistas
apreciadores de fellatio e ejaculadores precoces. Não me parece evidente a
maneira de as referidas jornalistas chegarem a informação tão detalhada. Sugiro
duas hipóteses. A primeira é o recurso a fontes qualificadas: as senhoras nunca
entram em autocarros, mas convivem diária e proximamente com depravados que o
fazem com propósitos sórdidos e, desculpem o jargão científico,
heterobadalhocos. A segunda hipótese é a observação directa: as senhoras
frequentam os ditos autocarros e são, elas próprias, alvo dos pervertidos agora
denunciados. Em qualquer dos casos, as senhoras deviam rever o rumo das
respectivas vidas. Em qualquer dos casos, os poderes políticos deviam actuar
com a pressa e o vigor adequados.
Falo, evidentemente, da
abolição dos transportes públicos. Mesmo sem a presença de maluquinhos
desejosos de repetir as proezas do filme erótico da CMTV da noite anterior,
viajar encostado a resmas de desconhecidos é actividade assaz desagradável e
avessa a uma existência sadia. Na presença dos maluquinhos, então, torna-se uma
aventura de alto risco, que urge erradicar. Por mim, sempre desconfiei que o
lóbi dos transportes públicos, que berra há décadas contra o bom e velho
automóvel, era coisa de tarados. Não imaginava que o fosse literalmente.
Perante isto, é ainda mais
assustadora a simpatia que o citado lóbi colhe junto de governos, autarquias,
energias “renováveis” e activistas “verdes” ou maduros. Se já deprimia o
empenho fiscal e legislativo e policial com que se tenta demover os cidadãos de
viajar na propriedade privada e na privacidade devida, é grotesco que
semelhante empenho esteja, afinal, ao serviço de líbidos desarranjadas.
Felizmente, à revelia da propaganda que procura “vender” os transportes
públicos a título de amigos do ambiente ou de amigos da circulação urbana, há
jornalistas sem medo de os denunciar como os amigos do deboche que de facto
são.
Convém mostrar-lhes que não
estão sozinhas. De hoje em diante, sentarmo-nos ao volante do nosso carro
deixará de ser um simples pormenor quotidiano. Será, sobretudo, um gesto de
solidariedade para com as mulheres assediadas e de resistência aos vastos
interesses do assédio, desses que se movem na sombra ou debaixo da gabardina.
No sossego do Audi ou do Fiat, os únicos tarados – ou, em prol da igualdade,
taradas – são aqueles que convidamos. E as únicas vítimas são as que pagam
impostos.
Notas de rodapé
1. Não me aborrece
viver num país cujos governantes abandonam entrevistas à primeira pergunta
“incómoda”, como agora aconteceu com o sr. Costa na Rádio Renascença. Mas é
triste viver num país cujos jornalistas ainda comparecem a entrevistas com
espécimes assim. Refiro-me, claro, aos jornalistas que mantêm uma réstia de
vergonha. Os restantes cumprem exacta e escrupulosamente o papel deles.
2. A propósito da “polémica” dos
livrinhos de exercícios “para o menino” e “para a menina”, recentemente aberta
por analfabetos funcionais, o gabinete de comunicação da Porto Editora
enviou-me um e-mail a esclarecer que os ditos livrinhos voltaram às livrarias,
“no quadro”, cito, “do exercício pleno da liberdade de expressão da autora e
das ilustradoras, bem como da liberdade de edição, respeitando estes valores
fundamentais numa sociedade livre e democrática”. Fica
a nota, o aplauso à Porto Editora e a suspeita de que a referência à sociedade
livre e democrática é força de expressão. Nem tudo está bem quando acaba bem,
sobretudo se começa demasiado mal.
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