Entre a sensação de vergonha que nos é fornecida pelo primeiro texto,
de Alberto Gonçalves, pela astúcia no roubo, sintomática da nossa
pobreza nacional de corpo e espírito, e a de raiva que nos acode com o
segundo texto, de Diana Soller, contra um ditador, certamente que idiota,
que se diverte a provocar uma situação de conflito mundial, na maior das
inconsciências. Parece não haver sanções – nem cá entre nós, contra o esbulho
fraudulento, tão usual é o hábito em que vivemos do esbulho e da fraude, nem lá
entre eles, os da Coreia do Norte, contra as diversões criminosas de um idiota
à solta, de um custo imprevisível.
Resta-nos ir vivendo em expectativa de mudança. Provavelmente mais fácil e
de solução a mais curto prazo, o caso coreano, já que se trata de um
protagonista singular. O nosso é um caso plural, de encardimento nos costumes, com
que nem a lei se mete.
Portugal para os portugueses
OBSERVADOR, 5/8/2017
Portugal é para os
portugueses, sobretudo portugueses da utilidade do sr. Xula e do dr. Medina.
Logo que o turismo acabe a aventura da nação valente (e imortal) não terá
limites, fora os da bancarrota.
Portugal já era
fortíssimo no turismo de tédio, no qual se contam rotundas, ou se passa horas
nas filas dos supermercados, ou simplesmente nos deitamos na praia a atribuir
formas reconhecíveis às nuvens (“Olha, aquela é igualzinha a um helicóptero
Kamov. E aquela parece mesmo o prof. Marcelo a posar para uma ‘selfie’ com a
selecção nacional de canoagem feminina”). Agora, o país aposta (como sucede
sempre que há hipótese de se ficar sem um tostão, somos peritos em “apostar”)
no turismo de aventura.
A Wikipedia associa o
turismo de aventura a “algo diferente, ao desafio, a certo risco capaz de
proporcionar a sensação de prazer, liberdade e superação pessoal, que varia de
acordo com a expectativa de cada pessoa e do nível de dificuldade de cada
atividade”. A Wikipedia não refere a valiosa contribuição nacional para o
sector. A vontade de oferecer emoções intensas aos forasteiros teve início há
muito, embora a uma escala modesta. Historicamente, o turismo de aventura limitava-se,
por exemplo, aos clientes dos taxistas que pediam 72 euros por uma viagem da
Portela ao Chiado. Na última ocasião em que estive de férias no Algarve, na
pouco saudosa Primavera de 1995, consegui descobrir um café que a cada manhã
aumentava o preço do café e do pastel de nata, numa vertigem inflacionária sem
rival desde a Alemanha de 1933 e a Venezuela de 2017. Hoje, o conceito
actualiza-se e, dado que beneficia de circunstâncias particularmente
favoráveis, alastra-se.
O que não faltam por cá
são indivíduos e entidades empenhados em submeter o turista a desafios únicos e
emocionantes, a começar pelas demoras na área de chegadas dos aeroportos. Esta
semana, o Observador e o site “New In Town” contaram a história do Made in
Correeiros, o restaurante lisboeta que cobra 50 euros por garrafa de Cartuxa,
120 por um bacalhau com natas e 250 por um “misto de marisco”. É “misto” porque
um quinto são frutos do mar e os quatro quintos restantes uma burla das
antigas. Ou, para sermos exactos, das modernas. O Observador acrescenta que o
proprietário da casa é um carteirista reformado e se chama, obviamente, Xula.
Das duas grandes teses
vigentes acerca do turismo de massas, a primeira envolve a tal ideia de
aventura e consiste justamente no que os académicos credenciados designam por
“xulanço” (os puristas optam pelo “ch”). Resumindo para leigos, implica
apanhar o “camone” desprevenido e sacar-lhe a maior quantidade de euros
possível no menor período possível. É uma actividade reservada a instituições
particulares como o sr. Xula ou públicas como a dona Câmara de Lisboa, que
diariamente fabrica novas taxas e taxinhas que estimulam a adrenalina do
turista e garantem que, a não ser nos casos de masoquismo terminal, o infeliz
não regressa a semelhante choldra.
É aqui que a primeira
tese sobre o turismo se encontra, num radioso caldo de portugalidade, com a
segunda principal corrente de pensamento na matéria. Uma enxota o visitante
porque o quer roubar. A outra quer enxotá-lo de qualquer maneira. Esta, o
“movimento” de “defesa” do comércio “tradicional”, dos bairros “típicos” e dos
sonhos da irmã de Paulo Portas, é representada pelo tipo de gente que entra em
pânico mal vê alguém cometer a heresia de ganhar uns trocos que não sejam
atribuídos pelo Estado. É o momento de introduzir um parêntesis e uma homenagem
à Catalunha.
Em Barcelona, uma
espécie de laboratório de inúmeras demências contemporâneas, tornou-se pelos
vistos costume atirar pedras a autocarros de turistas, em protesto contra o
excesso destes e, cito o “Expresso”, a “ameaça” à “qualidade de vida”. Os
autóctones furiosos deviam erguer-me uma estátua: por motivos diversos, nunca
me ocorreu maçá-los com a minha presença e, salvo um azar enorme, palpita-me
que tal afronta jamais acontecerá. Na minha lista de paraísos a visitar,
Barcelona situa-se ainda abaixo de Cabul, da Eritreia e do Chapitô. O pormenor
não impede que as maluquices locais inspirem cidades distantes: no início do
mês, a autarquia de Lisboa proibiu a circulação de autocarros turísticos na
dita “zona histórica”.
É uma alternativa subtil
aos apedrejamentos. É também uma medida de protecção de referida “qualidade de
vida”, para que a capital e o país retornem à época em que vivíamos confortável
e exclusivamente do produto do nosso labor, sem o dinheiro sujo e a balbúrdia
que os estrangeiros largam por aí. Os estrangeiros são uma praga, que urge
controlar na teoria e erradicar na prática. Xenofobia? Xenofobia é, sei lá,
contestar muçulmanos que fogem do islão e desejam, assaz legitimamente,
reproduzir o islão entre nós. Escorraçar espanhóis, alemães, americanos,
coreanos e ingleses interessados em comprar-nos bens e serviços, de preferência
após assaltá-los à mão desarmada, é mero civismo. Portugal
é para os portugueses, sobretudo portugueses da utilidade do sr. Xula e do dr.
Medina. Logo que o turismo acabe, a aventura da nação valente (e imortal) não
terá limites, excepto os da bancarrota.
De mãos e
pés atados
OBSERVADOR, 6/7/2017
Os Estados Unidos, a Coreia do Sul, a
China e o Japão estão de mãos e pés atados perante as provocações de Pyongyang:
um conflito armado está fora de questão devido ao risco de retaliação nuclear.
Há acontecimentos que desafiam o
conceito de racionalidade. Nos primeiros dias das aulas de teoria das relações
internacionais, ensinamos que as principais escolas consideram que os
estados são atores racionais, e é raro o ano em que um aluno não ponha o dedo
no ar e pergunte como é que podemos considerar que este ou aquele líder da
história foi ou é racional. Segue-se um longo debate sobre o conceito, em que
tentamos explicar que a racionalidade de cada líder está associada aos seus
valores e objetivos. O que nos pode parecer uma loucura, tantas vezes suicida,
quase sempre corresponde a uma lógica racional que nos escapa, de tão diferente
a forma de ver o mundo. Afinal, a racionalidade é um conceito plástico que se
adequa a quase todas as posições e ideologias.
Perguntam pelos homens que se se
habituaram a ver como loucos ou paranoicos (o que pode ser verdade, mas não
apaga a ideia de uma lógica racional particular). E ultimamente, na galeria
dos racionais incompreendidos está Kim Jong-un, o jovem líder da Coreia do
Norte que, seguindo o exemplo do seu pai, priva o seu povo do essencial para
desenvolver armas nucleares e meios para as projetar. Se já era difícil
explicar, a escalada das provocações militares tornou tudo mais difícil.
Principalmente agora que a Coreia do Norte lançou com sucesso um míssil
balístico intercontinental capaz de atingir o Alasca, no 4 de julho, o dia em
que os Americanos saem às ruas engalanadas em azul e encarnado, com bandeiras
nas mãos, para celebrar o aniversário da independência. E Kim disse que era um
presente para os American bastards. À primeira vista, parece que está a pedir
uma guerra. Mas talvez não.
É importante lembrar que ainda não
temos a certeza de que o míssil tenha capacidade para transportar ogivas
nucleares. Mas os acontecimentos dizem-nos muito sobre a lógica e o choque de
racionalidades com a comunidade internacional. A Coreia do Norte desenvolveu
armamento nuclear, pagando o preço de sanções continuadas e isolamento
diplomático para garantir a sobrevivência do estado e do regime. Do estado,
porque sem guerra fria e sem armas nucleares, muito provavelmente já tinha sido
engolido pela Coreia do Sul, com aplausos da comunidade internacional. Do
regime, porque é inaceitável uma ditadura deste tipo. Assim, a guerra da
Coreia, em 1950, permitiu a criação de uma narrativa em que os Estados Unidos
são o grande inimigo, que deseja a destruição do comunismo coreano, que a usa
para legitimar qualquer ação defensiva ou ofensiva, mesmo à custa do bem-estar
da população. E que legitima a dinastia Kim no poder acima do paralelo 38. As
armas nucleares protegem o regime do exterior; a narrativa antiamericana
protege o regime das dissidências internas.
Aqui está mesmo o busílis da questão.
Os Estados Unidos, a Coreia do Sul (o mais que provável alvo de um ataque
nuclear, se alguma vez chegasse a acontecer), a China e o Japão estão de mãos e
pés atados. Na racionalidade internacional, um conflito armado está
praticamente fora de questão devido ao risco de retaliação nuclear (aliás Pequim
e Moscovo já expressaram a sua recusa deste cenário). Ainda ontem, houve
exercícios militares conjuntos dos Estados Unidos e da Coreia do Sul. Houve uma
reunião de emergência na ONU em que a representante americana, Nikki Haley,
disse que os EUA querem evitar um conflito e que a China terá que respeitar as
sanções (Trump já tinha usado o Twitter para dizer o mesmo). Mas não vai
adiantar nada. Já se aprovaram um sem número de resoluções a condenar o regime
norte coreano; já se lançaram pacotes e pacotes de sansões; já se criaram
concertos para negociar contrapartidas. Já se ameaçou o uso da força contra
alvos cirúrgicos. Nada resultou. Aliás, o progresso tecnológico de Pyongyang
parece imparável e a humilhação das potências cada vez maior.
As boas notícias, são que se esta tese
estiver certa, e a racionalidade esteja na sobrevivência do regime, nada mudará
substancialmente. As más notícias são que as crises na política internacional
quase nunca permitem mais do que escolher o mal menor, e em casos como este só
permitem mesmo uma política de paciência, ou seja, esperar por uma oportunidade
que permita um acordo consistente. Um encontro de racionalidades. E este
momento ainda não chegou.
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