sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Uma sigla de todo o tamanho para inglês ver


Um artigo de muito interesse na nossa distracção, que de vez em quando acorda para estes temas que já fizeram a nossa estranheza, sobretudo pela acutilância das práticas sexuais no grande matagal em que se tornou o habitat social, de revelações à vista, tais como os animais da mata, ou mesmo os domésticos, por alturas do cio, sem pruridos de decência, e a quem chamamos de irracionais. Fez bem João Miguel Tavares, em se informar e nos informar, nesta sua caricatura de uma sigla sucessivamente acrescida de novas maiúsculas, ainda por pruridos de atavismo provinciano, mas, simultaneamente de orgulhosa provocação da prática progressista da nossa visibilidade elementar. Fico grata a J. M. T. por estes ensinamentos preciosos.

Breve história da comunidade LGBTQQIAAP
Foi algures na passagem do LGBT para o LGBTI que muita gente, como eu, começou a ter dificuldade em acompanhar a subtileza de certas reivindicações.
João Miguel Tavares
Público, 8 de agosto de 2017
O momento fundador daquilo a que se pode chamar uma comunidade gayportuguesa ocorreu a 13 de Maio de 1974, na última página do Diário de Lisboa, com a publicação do manifesto “Liberdade para as minorias sexuais”. O texto foi escrito pelo recém-formado Movimento de Acção Homossexual Revolucionária (MAHR), que reivindicava o direito à “livre prática homossexual” e garantia orgulhosamente ser ela a “força mais destrutiva” da “moral sexual burguesa”.
O MAHR reclamava para si “mais de 1000 militantes no Porto e em Lisboa” (o manifesto especificava que dias antes, no 1.º de Maio do Porto, tinha surgido um primeiro cartaz a pedir “liberdade para os homossexuais”), mas os seus líderes optavam prudentemente pelo anonimato, “até um reconhecimento mínimo da nossa integridade física e social”. O manifesto concluía com um entusiástico “viva a Homossexualidade, viva a Revolução” — mas a revolução não estava pelos ajustes. Diz a lenda que Galvão de Melo terá afirmado na RTP, em nome da Junta de Salvação Nacional, que não tinha sido para isso que se fizera o 25 de Abril.
Estava enganado, felizmente: também foi para isso que se fez o 25 de Abril. Mas os direitos dos homossexuais tiveram de esperar, e muito. A descriminalização da homossexualidade ocorreu apenas oito anos depois, em 1982, década em que o advento da sida marca tragicamente a comunidade gay, mas também lhe oferece a visibilidade que nunca havia tido até então. A discriminação estava à frente de todos. No início dos anos 90, enquanto o filme Filadélfia comovia o planeta e Tom Hanks levava o Óscar para casa, o PSR constituía o Grupo de Trabalho Homossexual.
Foi a década em que tudo realmente começou a mudar na luta pelos direitos dos gaysportugueses: fundação da ILGA (1996) e de outras organizações homossexuais, primeiro Arraial Pride, que evoluiria depois para a Marcha do Orgulho Gay, aprovação da lei das uniões de facto, contemplando casais homossexuais (1999). Parece que foi há uma vida, mas passaram-se apenas 20 anos. Desde então, foi aprovado o casamento gay (2010), a adopção por casais homossexuais (2016), a revisão das regras da doação de sangue.
Simplesmente, à medida que estas conquistas iam sendo alcançadas, as reivindicações foram-se tornando cada vez mais específicas — já não se tratava apenas de comportamentos, mas de vigiar obsessivamente a linguagem. As próprias questões de género tornaram-se tão absurdas que a designação da comunidade evoluiu de gay para LGB, de LGB para LGBT, de LGBT para LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais), e daí para coisas tão delirantes quanto LGBTQQIAAP (em inglês: Lesbian, Gay, Bisexual, Transgendered, Queer, Questioning, Intersex, Asexual, Allies, Pansexual). No site da ILGA encontrei o LGBTI+, sendo que o “+” está ali para significar “etc.”, ou seja, todos os géneros que as pessoas sintam não estarem devidamente contemplados nas descrições anteriores.

Foi algures na passagem do LGBT para o LGBTI que muita gente, como eu, começou a ter dificuldade em acompanhar a subtileza de certas reivindicações. Tristemente, a recusa da explosão alfabética e do policiamento das palavras passou a ser razão mais do que suficiente para se ser classificado como homofóbico. Após uma história dura, mas feliz, de luta por direitos justíssimos, os membros mais activos da comunidade LGBTI+, e seus simpatizantes, foram-se transformando em burocratas da indignação. No próximo texto tentarei explicar porquê.

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