Um probo artigo de OPINIÃO de João Miguel Tavares, estranhamente só
merecedor de enxovalhos verbais daqueles que, não fora a circunstância de Pedro
Passos Coelho ser o homem beneficiado no retrato positivo do seu comentador
(isento, porque não raro o critica também, embora lhe reconheça o mérito da sua
indiferença corajosa ante a opinião alheia quando ciente da sua verdade), igualmente
atacariam o visado, Ricardo Salgado, do libelo acusatório de JMT.
É de facto um estranho público este dos comentadores portugueses, que, salvo
honrosas mas raras excepções, usam o seu protagonismo comentarista não em
contra-ataque de ideias mas em floreados de retórica oca, pedante e ofensiva, perfeitamente
gratuita, embora desmascaradora da nossa pobreza mental.
Eu concordo com
Ricardo Salgado
Só mesmo
Passos se atreveria a deixar cair o GES com tamanho estrondo – e esse é bem
capaz de ser o maior legado dos seus quatro anos à frente do país.
João Miguel Tavares
Público, 27 de Julho de 2017
Da
boca de Ricardo Salgado Pedro Passos Coelho recebeu o maior dos elogios: “Qualquer
outro governo com o mínimo de responsabilidade e sem intuitos populistas teria
evitado a resolução de um banco com a dimensão do BES.” Isto disse Salgado
numa entrevista ao suplemento económico Dinheiro Vivo. Esqueçam o “mínimo
de responsabilidade” e os “intuitos populistas”. O que interessa é isto: “Qualquer
outro governo teria evitado a resolução de um banco com a dimensão do BES.”
Como é óbvio, Salgado está cheiinho de razão. Aliás, eu próprio já o afirmei
várias vezes nesta página, pelo que me resta agradecer a Ricardo Salgado a
amabilidade de confirmar essa minha convicção. Seja porque Passos Coelho
é teimoso, desligado do mundo, apreciador de férias em Manta Rota ou
ligeiramente autista, só mesmo ele se atreveria a deixar cair o grupo Espírito
Santo com tamanho estrondo – e esse é bem capaz de ser o maior legado dos seus
quatro anos à frente do país.
Dizer
isto não é isentar de erros Carlos Costa, Cavaco Silva, Maria Luís Albuquerque
ou o próprio Passos Coelho. Uma resolução como a do BES é de tal forma
complexa, e teve de ser executada com tal rapidez, que muitos erros terão sido
cometidos. Além disso, não restam hoje quaisquer dúvidas de que o Banco de
Portugal terá compactuado com Salgado durante demasiado tempo, apesar dos
inúmeros alertas e do obsceno recebimento de “liberalidades”. Contudo, é muito
fácil apontar alternativas depois dos factos consumados. Independentemente de
ser possível fazer melhor, o que me interessa sublinhar aqui é esse “não”
central, inédito e relevantíssimo ao Dono Disto Tudo, que conduziu à
destruição, nas suas próprias palavras, “do nome Espírito Santo”, apagando “das
fachadas dos prédios uma marca com mais de 140 anos”. A importância desse gesto não pode ser desvalorizada: a aparatosa queda
do BES é a destruição da impunidade mais desbragada e de uma certa forma de
fazer negócios que dominou o país durante pelo menos duas décadas.
Ver agora Salgado, numa evidente estratégia de auto-imbecilização, desresponsabilizar-se
sem pudor e diminuir voluntariamente o estatuto que construiu para si próprio
ao longo dos anos – “Nunca dei qualquer instrução para manipulação de contas e
desconhecia qualquer irregularidade das mesmas”, afirmou com a seriedade
própria de um Richelieu da Comporta –, mostra bem a mediocridade da personagem.
Mas há quatro anos ninguém se atreveria a tratá-lo com tal. Ele via, ouvia e
sabia tudo. Estava em todos os negócios relevantes e transformou o BES na
cantina financeira da oligarquia nacional.
Disse
ainda na entrevista: “Não houve até hoje na Europa nenhuma resolução de um
banco que tivesse 20% de quota de mercado, que representasse 27% das operações
com as PME, tinha 30% no financiamento do comércio internacional… e 2 milhões
de clientes.” Aquilo que Ricardo Salgado declarou é que ele acreditava
que o seu banco era too big to fail e que na hora em que o barco se
estivesse a afundar o Governo acabaria por, de alguma forma, lhe dar a mão –
nem que fosse só para manter o prestígio da família e o nome Espírito Santo na
fachada dos edifícios. A tudo isto Passos Coelho disse “não” – um dos
“nãos” mais limpos e decentes da democracia portuguesa. Claro que os problemas
na banca persistem. Mas o nível de impunidade caiu a pique e o crédito bancário
foi obrigado a assumir a seriedade que nunca teve desde 1974. Não é coisa pouca
– e merece ser reconhecido por toda gente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário