Um moralista, Sá de Miranda,
um homem culto, responsável pela introdução do Renascimento, em Portugal, tendo
viajado para Itália, onde colheu os apetrechos necessários para iniciar uma
nova expressão formal, ao modo clássico, traduzida em éclogas, odes, cartas
(epístolas), comédia; ao modo italiano, o soneto, o verso
decassílabo, a oitava rima, embora tenha mantido também o verso de
redondilha, típico do lirismo palaciano anterior. A acrescentar aos aspectos
formais, o sentido humanista das suas mensagens, que o tornaram figura cimeira
na época, como mentor de tantos que compuseram o Renascimento no nosso país.
É em quintilhas em redondilha
maior que escreve a seu irmão Mem de Sá, aconselhando-o a moderar as
suas ambições, e em que sobressai o dinamismo das imagens a par da anotação
psicológica, verdadeira em todos os tempos, da voracidade que move os homens,
sempre mais visível e incontinente:
Enquanto de uma esperança
Em outra esperança andais
Fazer-vos quero lembrança
Como é leve e não se
alcança,
Que sempre adiante é mais.
Cuidais que sois já com
ela;
Quando vo-lo mais parece
E quereis lançar mão dela,
Mete remos, mete vela,
Vai rindo e desaparece. (…)
É nesse propósito que na sua
carta inclui a fábula dos dois ratos, seres que, pela sua condição de roedores,
apelam à equiparação com o homem voraz, no aliciante e poeticamente contundente
dessa transfiguração paralelística. Um estilo sintético e pleno de vivacidade,
em que o sincretismo das imagens joga, pois, com uma dinâmica significativa de
maior complexidade e alcance, que valoriza os signos linguísticos. É o caso do
verso final, único que cito, entre tantos que percorrem a saborosa fábula - «Deus
me torne à minha fome» - com o seu sentido de retorno à modéstia
do viver anterior, expressiva de tranquilidade e paz, sem a turbulência e
ansiedade próprias da ambição excessiva. A defesa, pois, da “aurea mediocritas”
em que se empenharam os escritores clássicos, já não possível hoje, com a
tecnologia e o progresso tornando o homem cada vez mais insaciável, mas
descuidado dos valores morais que esses clássicos defenderam:
«Um rato duma cidade /
tomou-o a noite por fora; / quem foge à necessidade? / Lembrou-lhe a velha
amizade / doutro que i no campo mora.
«” - Saiu-me a conta
errada; / muitas vezes acontece: / cresceu-me minha jornada” - / diz,
entrando na pousada; / logo cidadão parece.
«O pobre, assi salteado /
dum tamanho cidadão, / em busca dalgum bocado / vai e vem muito apressado / que
não punha os pés no chão.
«Ordena sua mezinha / (inda
tinha algum legume, / inda algum pó de farinha); / pôs-lhe i tudo quanto tinha,
/ pede perdão por costume.
«Diz: “Quem tal
adevinhara / (contra o cidadão severo) / tanto revolvera e andara, / que
alguma cousa buscara / a quem tanto devo e quero”.
«Cumpre muito àquela mesa /
mais da fome que da gula; / tem a fogueirinha acesa, / faz rosto ledo à
despesa, / co trabalho dissimula.
«Diz o cidadão consigo: / “Que
gente há d’antre penedos, / que vai de Pedro a Rodrigo! / Bem disse o bom sengo
antigo / que não são iguais os dedos”.
«Depois do fraco comer, /
estando detrás o lar, / começa o rico a dizer: / “- Dous dias que hás-de
viver, / aqui os queres passar?
«Na aspereza do deserto,
/ que não sei quem o suporte, /d’urzes e tojos coberto, /sendo todo tão
coberto, / e tão certa só a morte?
«Vive, amigo, a teu
sabor; / mais é que cousa perdida / quem por si toma o peor; / vai-te comigo
onde eu for, / lá verás que cousa é vida.
«Quando as ambas
provares, / (que eu d’outrem não adevinho) / quando te enganado achares, / aí
ficam teus manjares, / aí tens também o caminho.”
«Assi disse. Eis o vilão /
em alvoroço e balança; / ia e vinha o coração, / ora si, e ora não; / venceu,
porém, esperança.
«E que pode i al fazer?: / vive com tanto cansaço, / inda não pode
viver, / não pode o ano vencer / que lhe assi corre d’espaço!
«E diz: “- Quem não se
aventura / Não ganha, quem é que o negue?” Escolhem hora segura; / era pela
noite escura: / guia o rico, o outro segue.
«Entram por paços dourados,
/ cheirosos inda da cea: / fiquem os casais colmados / por sempre do sol
torrados, / fique a faminta da aldea!
«Vou-me por meu conto
avante: / amostra o cidadão tudo, / que traz no bucho um Ifante, / quem quereis
que não s’espante / Anda o vilãozinho mudo…
«Que tão somente em provar
/ das cousas que mais lhe aprazem / começam já d’enjeitar, / começam a bocejar…
/ Em finos tapetes jazem.
«Ora o despenseiro chega /
(que estes bens não duram tanto) / sente-os, mas a pressa o cega / um tiro e
dous mal emprega, / segue-os de canto em canto.
«Os cães à volta correram,
/ ladram, que é alto serão; / as casas estremeceram, / uns e outros i correram,
/ quis Deus que os gatos não.
«Sabia o de casa a manha, /
sabia os passos, fugiu; / o ratinho da montanha, / aos pés, em pressa tamanha,
/ o coração lhe caiu.
«Mas, espaçado o perigo /
da morte que ante si vira, / o coitado assi consigo / pelo seu repouso antigo,
/ que mal deixara, suspira.
« ”- Minha segura
pobreza / Se chegarei a ver, quando / a ti torne, e esta riqueza, / mal que
todo o mundo preza, / fuja, se puder, voando?
«Mal tomadas esperanças, / a paga aqui não me tome; /
traças, que não abastanças, / assaz vi das vossas danças: / Deus me torne à minha fome. »
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