segunda-feira, 31 de julho de 2017

Complementares


Um artigo jovem, o de João Miguel Tavares, jovem bem formado, saudavelmente impaciente com o desastre de uma governação titubeante, de segredinhos e murmúrios entre dentes, de sorrisinhos convencionais apaziguantes, de repentinas notícias de sucessos mal justificados, para contrabalançar os insucessos inesperados, de apoio aparente à esquerda por conveniência própria, enquanto esperou os votos da sua combinação prévia que inicialmente a beneficiou, na realidade parecendo atraiçoar a esquerda quando, impante, julga poder singrar já sozinha, esquecidos os compromissos, porque responsável perante o país e o seu grupo parlamentar que lhe impõe juízo e mais reserva. Um artigo adulto, o de António Barreto, e sabiamente rigoroso e triste, como nos habituou. Dois artigos que se complementam, ao descrever-nos tantas anomalias recentes, nas facécias governamentais fugidias às responsabilidades, coisa do foro judicial, pelo descrédito e desvergonha, se mais exemplos prévios não preenchessem os nossos sucessos governativos, de tanta irregularidade digna de intervenção, esta, naturalmente, manietada, ao modo antigo. O Mosteiro da Batalha nos salva, na sua beleza etérea. Mas tinham que ser chamadas imperfeitas, as tais “capelas” tão perfeitas.
1º Texto: “Tudo esclarecido?” Só podem estar a gozar
Jamais me passaria pela cabeça que num país acima do Trópico de Câncer as autoridades andassem a brincar à contagem dos cadáveres.
João Miguel Tavares
25 de Julho de 2017
Até ao passado sábado, sempre considerei que a história dos supostos mortos de Pedrógão que as autoridades estariam a ocultar não passava de uma teoria da conspiração, e não das mais inspiradas. Os mortos-fantasma de Pedrógão Grande rivalizavam com “avistei Elvis Presley”, “Carlos Paião foi enterrado vivo” ou “o homem nunca foi à Lua”. Jamais me passaria pela cabeça que num país acima do Trópico de Câncer as autoridades andassem a brincar à contagem dos cadáveres, dedicando-se a fazer cuidadosas separações entre “mortes directas” (supostamente 64, falecidas por inalação de fumo ou por queimaduras) e “mortes indirectas” (pelo menos uma, que o Expresso detectou, mas que podem ser três, dez ou vinte, porque ninguém sabe ao certo).
E neste ponto, caros leitores, já não há sal de fruto que trave o profundo mal-estar que se apodera das pessoas decentes. Como se já não bastasse a dimensão da tragédia, eis que temos a Protecção Civil, o Ministério da Administração Interna, o Ministério da Justiça e o próprio primeiro-ministro a desvalorizarem os mortos e os vivos deste país, de uma forma absolutamente inqualificável, ao barrarem o acesso à mais elementar informação. Na sequência da notícia do Expresso dando conta de uma 65.ª vítima que morreu atropelada enquanto fugia de casa, e depois de uma suposta clarificação do tema por parte da Protecção Civil e do Ministério da Justiça, António Costa tratou de arrumar a questão com um displicente: “já está tudo esclarecido”. Como? Tudo esclarecido? Não, senhor primeiro-ministro. Na verdade, tudo continua por esclarecer, porque as supostas clarificações não clarificaram coisa alguma. O que a Protecção Civil fez foi veio reafirmar que havia 64 mortos em “consequência directa” do fogo, e que outros eventuais casos não se integravam nos critérios “definidos” como vítimas do incêndio. E o Ministério da Justiça, ao ser confrontado com o pedido para divulgar a lista dos mortos de Pedrógão, declarou não poder revelar tal informação por ela se encontrar em “segredo de justiça”. Juro. Segredo de justiça.
A gente esfrega os olhos e não acredita. Entre a declaração do primeiro-ministro e os comunicados da Protecção Civil e do Ministério da Justiça o coração balança – qual deles será o mais vergonhoso? António Costa não quer saber do número de mortos e recusa dar ao país esclarecimentos básicos. A Protecção Civil diz que para ela só conta quem morreu queimado, o que faz tanto sentido quanto dizer que na contabilidade de Entre-os-Rios só conta quem morreu afogado. O Ministério da Justiça invoca o segredo de justiça para negar o acesso ao nome das vítimas e à forma como morreram, como se o fogo fosse um malfeitor a monte e pudesse usar a informação para reincidir nas suas actividades criminosas. Às vezes, parece mesmo que as instituições do Estado se divertem a gozar com a nossa cara.
E nós, infelizmente, deixamos. Não podemos deixar. De uma vez por todas, digam-nos quantas pessoas morreram em Pedrógão no dia 17 de Junho de 2017, fosse por inalação de fumo, queimaduras, acidente de automóvel, atropelamento, afogamento ou paragem cardíaca; digam-nos quantas morreram de forma directa, de forma indirecta, ou de que forma for; digam-nos qual o número redondo e verdadeiro, e de caminho parem de desrespeitar as vítimas, as suas famílias e todos aqueles que ainda acreditam, porventura ingenuamente, viver num país civilizado. As pessoas sérias agradecem antecipadamente a atenção.
2º Texto: Sem emenda - Segredo de injustiça
Por António Barreto          D. N., 30.7.17
Como foi possível chegar aqui, a esta polémica obscena a propósito dos fogos, em que quase todas as opiniões sobre os desastres, as causas, as soluções e as responsabilidades são dominadas pela simpatia partidária? O governo e apoiantes tudo fazem para esconder o falhanço, dissolver responsabilidades, acusar os serviços e denunciar a oposição. A oposição vitupera e acusa, faz demagogia, aproveita e aproveita-se. Toda a gente sofre em directo e chora para as notícias das oito. Fala-se em nome dos mortos, poucos referem os vivos.
Percebem-se os incêndios. Com o clima mediterrânico, as nossas matas, a desordem florestal, a insuficiência de bombeiros profissionais, a inércia dos governos fora da estação dos fogos, os criminosos mal castigados, as nomeações partidárias para os serviços de prevenção, a aquisição de um sistema de comunicações pelo ministro de então que é o Primeiro-ministro de hoje, as misteriosas compras de equipamento pesado, os estranhos contratos de aluguer de meios de combate, a corrupção imposta por alguns bancos e umas tantas empresas de serviços, com tudo isto, percebe-se que haja incêndios, que não haja prevenção adequada, que a luta contra os fogos acabe por ser descoordenada e ineficaz, que se coloquem em perigo de vida os bombeiros, os polícias, os enfermeiros e os guardas, para já não falar dos cidadãos, dos lavradores e dos velhotes.
Mas há algo que não se percebe. Como foi possível que um conjunto de instituições, prestigiadas umas, outras menos, considere que um desastre esteja em “segredo de Justiça” e que este se aplique a uma lista de mortos… Segredo de justiça? Para acidentes deste género? É simplesmente absurdo! Como é possível admitir que um governo invoque o segredo de justiça e se reclame da separação de poderes para não publicar a lista de mortos desde o primeiro minuto? Como foi possível chegar a esta hipocrisia canhestra que tenta esconder-se atrás de argumentos jurídicos que nada têm a ver com o assunto? Uma lista de mortos a enterrar é um segredo? De quem? Para quem? Os governos, as direcções gerais, as empresas de seguros, os bombeiros e os autarcas não têm obrigações perante os cidadãos? O que estava realmente em segredo? Os nomes? As circunstâncias? O sitio da morte? Ou as responsabilidades do governo?
Como é possível que se tenha estabelecido um blackout informativo tentando impedir que autarcas, bombeiros, comandantes de guardas e polícias, responsáveis pela prevenção e pela saúde informem o público? E que se acuse de oportunismo e demagogia quem quer que faça perguntas sobre o que se passou? E que os partidos que apoiam o governo sejam incapazes de uma exigência de informação? Desde quando é demagógico fazer perguntas? Por que razão não se pode ou não se deve discutir o que realmente fez a diferença, isto é, a falha de previsão, a ausência de prontidão, a falta de coordenação e a carência de autoridade? Quem assim reage, como reagirá em todos os outros casos?
Como foi possível desnaturar de tal modo a democracia e os costumes para se chegar a este ponto? Como foi possível deixar que esta democracia se parecesse com a ditadura aquando das inundações de Lisboa e de outros desastres, para já não falar dos feridos e mortos da guerra do Ultramar com os quais o governo tentava também fazer selecção e tratamento? Como deixaram os deputados, os magistrados, os militares, os médicos, os autarcas e os comandantes dos bombeiros e das polícias que se chegasse a este ponto?
Que é feito dos homens livres do meu país? Estão assim tão dependentes da simpatia partidária, dos empregos públicos, das notícias administradas gota a gota, dos financiamentos, dos subsídios, das bolsas de estudo e das autorizações que preferem calar-se? Que é feito dos autarcas livres do meu país? Onde estarão eles no dia e na hora do desastre? Talvez à porta do partido quando as populações pedirem socorro e conforto.
DN, 30 de Julho de 2017
AS minhas fotografias

Varanda renascentista das Capelas Imperfeitas no Mosteiro da Batalha – Não é facilmente visível. Para a encontrar, tem de se saber o que se procura. É uma extraordinária varanda construída numa fase adiantada das Capelas que virão a ficar “Imperfeitas”. Os seus autores serão Miguel Arruda e João Castilho, arquitectos do Mosteiro nos anos 1530 e 1540. A varanda (tribuna ou janela), recheada de imagens e símbolos de difícil interpretação, fica ofuscada pelo portal manuelino sobre o qual se encontra. A distância que nos separa dela ajuda a passar desapercebida. Mas é uma obra inesquecível. Além das personagens cimeiras, quimeras e seres híbridos, temos, na base das três colunas, o rei D João III ladeado por um Africano e um Índio! As esculturas, de autor desconhecido, terão sido feitas a partir de modelo, o que era raro e, no caso do rei, inédito até essa altura. Na verdade, são retratos. Aquelas duas personagens no mesmo nível e com quase a mesma dignidade do rei deixam-nos a meditar na nossa história.

domingo, 30 de julho de 2017

O genérico


Creio que João Miguel Tavares joga à defesa, ao escrever o título do texto que segue, ultimamente arrogando-se do poder de se constituir vedeta em pequenos episódios sem relevância que tomou infantilmente como matéria de opinião. Não é o caso do texto que segue, mas não gostei da sua superioridade de formiguinha defendendo em aparência o velho rei Leão, na realidade, em servilismo febril perante as outras formigas do seu reino, a quem deseja revelar o seu modernismo ideológico, de democrata que tudo respeita em termos de opiniões, mas não deixa de as definir negativamente – e atrevidamente - como “palermices”, mesmo vindas de um rei leão. É pena este exemplo que a fábula contempla, num jovem que me habituei a ler com prazer, no anterior acerto modesto de opiniões que pareciam não deslizar no genérico das modas do consenso revolucionário.
 Quanto à defesa de Gentil Martins, outras opiniões transcrevo, suficientemente aptas, como resposta à arrogância pretensiosa dos falsos pregoeiros das novas moralidades – as do abandalhamento dos costumes, tal como um genérico na botica – mais barato e acessível.
I Texto:  Deixem as pessoas dizer palermices!
O respeito pela homossexualidade é importante, com certeza. Tal como o respeito pela velhice e pela liberdade de expressão.
João Miguel Tavares
António Gentil Martins, um médico de 87 anos que ainda se deve lembrar do dia em que Adolf Hitler invadiu a Polónia e que já era trintão quando participou nos Jogos Olímpicos de 1960 (tiro com pistola a 25 metros), resolveu declarar numa entrevista ao Expresso que a homossexualidade é uma “anomalia”. Note-se que a homossexualidade foi efectivamente considerada uma “anomalia” até 1982, altura em que a sua prática deixou de ser criminalmente punida em Portugal, tinha então Gentil Martins 52 anos. Infelizmente, nas últimas três décadas e meia, Gentil Martins ainda não teve tempo para se habituar à ideia. É pena? Com certeza que é. Tratou-se de uma afirmação estúpida? Com certeza que se tratou. Como foi estúpido chamar “estupor” a Cristiano Ronaldo, classificar D. Dolores como uma mãe incapaz, ou embirrar com o sadomasoquismo. Só que Ronaldo e D. Dolores têm mais que fazer e os sadomasoquistas estão deficientemente organizados.
Vai daí, ficámos limitados às queixas do costume: os muito compreensíveis protestos públicos contra as declarações homofóbicas do senhor e os muito pouco compreensíveis gestos para o calar através de acções disciplinares. Parece que duas médicas (pelo menos) já requereram a intervenção da Ordem, exigindo um processo contra Gentil Martins. Subitamente, a coisa está a ficar bastante parecida com um caso de Novembro do ano passado, envolvendo a psicóloga Maria José Vilaça. Lembram-se? Vilaça começou por comparar a homossexualidade à toxicodependência, dizendo que se tivesse um filho homossexual iria amá-lo, mas que não era uma coisa natural. Eu argumentei na altura que a senhora deveria ter a liberdade de defender publicamente aquilo em que a sua fé católica lhe mandava acreditar. Contudo, logo a seguir surgiu na net um vídeo antigo onde Vilaça se propunha “curar” homossexuais no seu consultório. Quando esse vídeo apareceu, muita gente argumentou que uma psicóloga não pode propor a cura de homossexuais, porque a homossexualidade não é uma doença. Esse é um argumento que faz todo o sentido: Vilaça deveria ser investigada não por ter aquela opinião, mas por estar a impingi-la na sua prática clínica.
Comentário de Elord Sigo     19.07.2017
Uma verdadeira palermice foi o que acabei de ler, e eu até costumo gostar dos seus artigos. Então este homem como tem 87 anos não tem credibilidade? Não se deve dar importância ao que diz, e deve ser desvalorizado? Mas que valores são estes que andamos a pregar afinal? É isto que queremos ensinar aos nossos filhos? Olhem, meus caros, o Dr.Gentil Martins para além de Médico cirurgião plástico, é um senhor de uma extrema cultura em vários âmbitos. O que vocês fazem, não é defender a homossexualidade, é tomar uma posição política perante a homossexualidade, nada tem de científico, e é a posição que qualquer ignorante toma por facilidade, pois. Eu subscrevo totalmente as afirmações de Gentil Martins, palavras fortes, mas de alguém que sabe, que leu, estudou, viu, enfim, que viveu, e vive.
II Texto: Fernando Assis Pacheco, António Gentil Martins e a porcaria dos novos inquisidores
No último sábado li Walt, a noveleta do Fernando Assis Pacheco publicada em 1978. Nela são recorrentes expressões utilizadas pelo narrador-alferes -- um alter ego do próprio FAP --, como paneleirices ou fufas. Estou em crer que tivesse o FAP meditado escrever algo semelhante por este ano de 2017, se autosupliciaria, se autocensuraria, pois, ao usar, num registo realista, palavras do nosso léxico como paneleirice ou fufa, pensaria três ou quatro vezes se estaria na disposição de aturar o fogo de artilharia pesada dos censores do costume, mais os patetas acoplados. E, extremamente fodido, provavelmente renunciaria a.
Parece que no último sábado o Expresso publicou uma entrevista a António Gentil Martins, cujos ecos só agora me chegaram. Tenho um familiar próximo cuja vida, ainda com meses, foi salva por ele. E assim com milhares de crianças. Não é por isso que deixarei de estar distante do médico, desde logo a começar pela religião. Deus sabe o quão ateu sou. Nasce-se homossexual, não se escolhe sê-lo. (Quem disser o contrário, não passa dum aldrabão.) Estando fora da norma, não deixa de ser um fenómeno natural (e não contranatura, como defendem os seus perseguidores) e, por isso, deve ser encarada com naturalidade nas sociedades civilizadas e evoluídas.
Ora, este senhor de 87 anos terá tido uma expressão bastante infeliz, qualquer coisa como "sou completamente contra os homossexuais". Talvez tivesse querido dizer que era contra a promoção da homossexualidade, e, aí, estaria bastante melhor, do meu ponto de vista.
Recuo um sábado: estava em Évora, entro numa tabacaria para comprar o jornal e dou de caras com a capa duma revista com o nome duma parola que esganiça por essas bardatelevisões além, dois marmanjos em ósculo envolvente -  o triunfo do kitsch em todo o seu horrorO cúmulo da miséria moral é que certamente não existe, em quem empreende a folha de couve, a mínima intenção cívica e pedagógica de promoção da tolerância, mas tão-só o propósito de arrebanhar mais uns cobres. O mercenarismo de mãos dadas com o merceeirismo.
Mas isto é a minha sensibilidade, o meu gosto, a minha educação, a minha mundividência essencialmente conservadores e tradicionais a falar. Nunca me passaria pela cabeça escrever sobre o assunto, por duas razões: a homossexualidade pertence à esfera íntima de cada um; a exteriorização feérica dela, embora seja um dos avatares do mau gosto em que estamos imersos, não é suficientemente importante para que me dê ao trabalho. Há coisas muito mais sérias, graves e urgentes. Faço-o agora, só para dizer -- porque me apetece e por ser conflituoso --, que a homossexualidade, enquanto desvio do padrão, enquanto prática minoritária, está, objectivamente, fora da norma, é portanto, nesse sentido, uma anomalia -- como o ser-se albino ou, dizem, ter os olhos azuis. 
É provável que Gentil Martins não esteja a ser apenas um técnico -- altamente qualificado, sublinhe-se, daqueles que são (deveriam ser) orgulho de uma comunidade --, e a sua afirmação esteja contaminada pelo vírus religioso. É uma maçada, mas é a sua opinião, não só legítima, como expressa no seio de uma sociedade liberal, incompatível, pois com atitudes de bufo, de reles denunciantes que foram apresentar queixa à Ordem dos Médicos, que por sua vez vai abrir um inquérito ou palhaçada semelhante.
Gentil Martins esteve também mal ao pessoalizar a questão das barrigas de aluguer. Podia referir-se-lhe sem trazer à colação o Cristiano Ronaldo, e da forma como o fez. Nunca me debrucei sobre o assunto, não tenho grande opinião, salvo uma rejeição instintiva, embora possa estar aberto a aceitar a prática em situações extremas, com as quais, felizmente, nunca fui confrontado. Mas há uma coisa que eu sei: uma criança não é uma coisa que se compre como quem vai à loja dos animais à procura dum bicho de estimação.
Tudo isto é controverso, e é natural que assim seja. O que não pode ser tolerado é a perseguição, fanática e pidesca, a quem exprime as suas opiniões, conservadoras, tradicionalistas e confessionais -- e com todo o direito a fazê-lo. 
PUBLICADA POR RICARDO ANTÓNIO ALVES 


sábado, 29 de julho de 2017

Farinha do mesmo saco


O artigo de Alberto Gonçalves sobre uma gente que se reúne nas festas do “Avante” e faz e debita credos de absurda visão e de absurda provocação que a pena curiosa e responsável do articulista não deixa escapar, na sua análise crítica, insere-se em idêntica linha de orientação do artigo de Frei Bento Domingues O.P., certamente que envergonhado pela estrutura tacanha e insana de um mito que virou em “festa” de almas, cada vez mais acirrada, ao abrangê-lo com a leitura das “Memórias” de Lúcia de Jesus.
Por esse motivo os associo, calculando o desespero de quem se ressente com tais características de pequenez e incultura neste povo e nesta mocidade que, impreparada e mandriona, se novos conceitos adquiriu, bem diversos, todavia, dos que moveram os pastores do milagre, os repete exaustivamente, acatando os que melhor servem ao seu mundo de inércia milagreira de mitos da carochinha, ameaçadores das almas – no caso das alminhas e das visões de Fátima – ameaçadores da ordem, no caso dos falsos profetas do humanitarismo parcial que marginaliza tudo o que aparente alguma superioridade de vivência ou visão.
Estamos no século XXI, também na aldeia onde vivi na infância havia umas alminhas aonde o povo ia em procissão no tempo das secas, pedir água, não ainda para apagar incêndios mas para regar as terras. Julgo que agora já não vai. No tempo de Lúcia a Igreja monopolizava mais as almas com as histórias de ameaças do Inferno, que todos conhecem, e que Frei Bento Domingues não diferencia das da sua infância. É, realmente, lamentável tudo isto que por cá se passa e que justifica também o fenómeno das praxes académicas, cada vez mais inseridas num mundo de perversidade descontrolada e impune.
Campismo selvagem
Alberto Gonçalves       OBSERVADOR, 29/7/17
1 - Ano após ano, por esta altura, há dois rituais infalíveis: um é o acampamento de Verão do Bloco de Esquerda, o outro é a minha crónica a pretexto. A rapaziada do BE não desiste. Eu não resisto. Tudo no “evento” é engraçado, a começar pelo nome. Não sei se por fina ironia ou grosso analfabetismo, o “evento” chama-se Liberdade, o que produz o delicioso efeito de um “workshop” do Ku Klux Klan subordinado ao tema Tolerância. E daqui para a frente é sempre a descer. Ou a subir, se atendermos exclusivamente ao potencial cómico da coisa e, sobretudo, se esquecermos que a coisa influencia o governo da nação.
Um artigo babado no “Público”, também recorrente a cada final de Julho, é naturalmente a melhor fonte de informação disponível. O título do artigo só não é todo um programa porque o programa do acampamento é assaz vasto, mas dá uma ideia bastante aproximada da toleima em jogo: “Os jovens do Bloco vão dançar contra o racismo e estudar ‘O Capital’”. Notaram a diferença? Jovens menos “conscientes” poderiam estudar o racismo e dançar contra “O Capital”. Ou estudar matemática e tocar clarinete a favor do pastel de nata. Ou simplesmente ir à praia e dormir o dia inteiro.
Não é o caso de Izaura Solipa, menina que pertence à organização e, suponho, usa pseudónimo (no ano passado, a cicerone do “Público” fora a militante Ana Rosa, “de voz serena mas segura, e uns olhos castanhos rasgados”). Para a Izaura, “um político que não pense verdadeiramente nas relações todas que existem, como lemos o mundo, como intervir no mundo, em todos os espaços e esferas que frequentamos, um político que não tenha essa reflexão vai ter sempre um lado insuficiente”. A Izaura, que pensa nas relações todas, lê o mundo todo e intervém em todos os espaços e esferas, não corre risco de insuficiência. Nem ela, nem os 150 felizardos que, a troco de meros 40 euros, acorrerão este fim-de-semana a Oliveira do Hospital. Para quê?
Ora essa. Para testemunhar “um concerto do rapper e activista Chullage”. Para frequentar festas “femininas e queer” (ignoro se mistas ou separadas). Para integrar um “debate” (os debates do BE distinguem-se dos demais por estarem decididos à partida) alusivo às drogas “duras e leves”, “dicotomia” que, de acordo com Izaura, “é preciso desconstruir” (eu não disse?). Para ouvir uma conversa em volta de “Saúde Mental e Capitalismo” (sumário provável: quem não aprecia o comunismo deve ser maluco). A catequese – e os sermões a convertidos – não se resume a isto. As beatas Mortágua explicarão “O que é o BE”. Marisa Matias “ajudará a uma reflexão sobre a importância da linguagem”. O deputado Jorge Costa dissertará a propósito da “geringonça”. Etc.
Parece divertido? De certeza que será. Porém, sem querer menosprezar ninguém, tenho os meus momentos favoritos, colhidos directamente do programa do acampamento. Um deles é o “Não Engolimos Sapos – Situação do Povo Romani”. Terá a sua piada observar a desenvoltura com que os participantes louvarão a riqueza cultural da etnia em causa e, de seguida, marcharão para os “espaços permanentes” feminista e queer, dois sectores bastante prezados pelo “povo romani”.
Um segundo momento consiste em perceber de que maneira se concilia tanto bailarico contra o racismo com a palestra “Queremos viver na nossa cidade”, a previsível xenofobia enquanto reacção ao turismo e ao lamentável enriquecimento dos cidadãos.
Um terceiro momento é o “debate” /conversa “Movimentos Anti-imperialistas na América Latina”, que provará em definitivo os sucessos estrondosos de Lula, Chávez e daquele estadista do Uruguai que, por renúncia à higiene burguesa, criava fungos nos dedos dos pés.
O apogeu prende-se, sem dúvida, com a homilia do Bispo Louçã “Revolução Russa e Luta Feminista”. É garantido que Sua Eminência falará do direito de voto concedido às mulheres, da legalização do aborto e, em suma, da igualdade de “género” que a URSS promoveu. Não é garantido que mencione a inutilidade do referido voto, a legalização do genocídio em geral e o respeito pela paridade que, à imagem dos cavalheiros, conduzia as senhoras ao Gulag em números apreciáveis. Suspeito igualmente que não mencionará a criminalização da homossexualidade, pormenor que talvez perturbasse a pândega “queer”. Ou, muito provavelmente, não perturbaria nada, circunstância normal num acampamento que se intitula Liberdade e se destina a proibir o que calha. A palavra a Izaura Solipa: “Não pode haver racismo, xenofobia, sexismo, ciganofobia…” Nem “ciganofobia”, Deus meu? O que sobra, então?
Sobra um processo de “educação” obviamente evocativo e caricatural do Komsomol leninista, da Gioventù Italiana ou da nossa Mocidade Portuguesa, consoante as preferências. Por mim, prefiro associar os acampamentos do BE ao Templo do Povo, o projecto de “socialismo apostólico” que convenceu um milhar de tontinhos a seguir um charlatão até à selva da Guiana e a fundar aí um enclave de demência. Em Jonestown, merecida homenagem ao charlatão, os tontinhos acreditaram nas patranhas de “Jim” Jones acerca dos perigos do “imperialismo” e das virtudes “revolucionárias”. Mal aquilo descambou, acreditaram quando ele os instigou ao suicídio por cianeto. Admito que, no acampamento do BE, não seja esse o assunto do “debate” “Direito a Morrer com Dignidade”. Ali, a ideia é viver sem dignidade nenhuma.
OPINIÃO
Infernos não faltam
Fátima dá uma imagem do catolicismo português que não corresponde à reforma desencadeada pelo Papa Francisco. Falta-lhe ser o centro da nossa evangelização.
Frei Bento Domingues OP
30 de Abril de 2017
1. Pesadelos do Inferno, evidências do Purgatório e tristezas do Limbo faziam parte da paisagem religiosa da minha infância. As Alminhas do Purgatório habitavam em dois nichos na minha aldeia. Suscitavam devoção e reciprocidade: “Vós, que ides passando, lembrai-vos de nós que estamos penando.” As pessoas lembravam-se e, para tudo o que precisavam, a elas recorriam, sabendo que aliviavam as suas penas. Em favor delas não podiam fazer nada, mas, quando invocadas com promessas cumpridas, eram uma fonte de graças para todas as ocasiões. Não desempregavam Santo António ou S. Bento da Porta Aberta, mas estavam mais à mão. As esmolas que recolhiam serviam para mandar dizer missas pelas mais abandonadas.
Eram Alminhas pintadas. Um dos nichos ficou muito estragado e foi pedido a um habilidoso de muitas artes, que periodicamente passava por lá, para o repintar. Perguntou: querem ver as Alminhas a irem para o céu ou a continuarem no Purgatório? É claro, a irem para o céu. Veio um Inverno rigoroso e a pintura desapareceu. O pintor não aceitou a queixa acerca da má qualidade das tintas. Tinham ido todas para o céu.
O Inferno era outra história. Por tudo e por nada, uma mãe zangada com os filhos (ou até com o gado), juntamente com um palavrão, exclamava: metes-me a alma no Inferno! Não era grave. Grave, muito grave, eram os sermões de preparação para o “confesso”: quem não confessasse, com todas as circunstâncias, os pecados mortais e morresse nessa situação, ia direitinho para o Inferno. A alma caía num lago de fogo, atiçado por uma multidão de diabos feios e maus e nunca mais de lá saía. O relógio infernal repetia “sempre, nunca”: aqui entraste, aqui ficas e daqui nunca sairás!
O Inferno era eterno, mais eterno que o infinito amor de Deus que nada podia fazer contra essa Instituição. O diabo tinha vencido o Anjo da Guarda e o próprio Deus.
Para as pessoas de bom senso, não havia lenha para tanta eternidade nem alma que aguentasse tanto fogo! Um bom caminho para a descrença: um deus que fabrica tais enormidades é inacreditável.
O Limbo, nem triste nem alegre, para onde iam as crianças que morriam sem baptismo, era o além mais povoado, não passava de um eterno aborrecimento. Bento XVI encerrou-o sem protestos.
2. Voltei a ler as Memórias da Lúcia de Jesus. O que diz acerca do Inferno não excede o que também eu ouvi em criança:Nossa Senhora mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados em esse fogo os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas saiam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas em os grandes incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros.” [1] Como sugestão para um filme de terror, não está nada mal. Diz a Lúcia que a Jacinta perguntava: “Porque é que Nossa Senhora não mostra o inferno aos pecadores? […]  Às vezes perguntava ainda. Que pecados são os que essa gente faz para ir para o inferno? Não sei, talvez o pecado de não ir à Missa ao Domingo, de roubar, de dizer palavras feias, rogar pragas, jurar. E só assim por uma palavra vão para o inferno? Pois! É pecado. Que lhes custava estar calados e ir à Missa? Que pena que eu tenho dos pecadores, se eu pudesse mostrar-lhes o inferno!” [2]
Passando da Terceira para a Quarta memória, há revelações curiosas. “Então Nossa Senhora disse-nos: não tenhais medo, eu não vos faço mal. De onde é vossemecê? Sou do Céu. E que é que vossemecê me quer?  lhe perguntei. Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13 a esta mesma hora, depois direi quem sou e o que quero. Depois voltarei aqui uma sétima vez. E eu, também vou para o Céu? Sim, vais. E a Jacinta? Também. E o Francisco? Também, mas tem que rezar muitos terços.
“Lembrei-me então de perguntar por duas raparigas que tinham morrido há pouco, eram minhas amigas e estavam em minha casa a aprender a tecedeiras com minha Irmã mais velha. A Maria das Neves já está no Céu? Sim, está. Parece-me que devia ter uns 16 anos. E a Amélia? Estará no Purgatório até ao fim do mundo. Parece-me que devia ter 18 a 20 anos. Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido, e de súplica pela conversão dos pecadores? Sim, queremos. Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.” [3]
3. Nossa Senhora mostrou que era uma pessoa muito organizada e pouco supersticiosa com o dia 13. Estou um bocado desapontado com a pouca originalidade das suas revelações e pedidos. Por tudo o que li, parece-me que os Pastorinhos levaram para os locais do seu pastoreio o que rezavam em família, o que aprendiam no catecismo e nas pregações. Deviam ser crianças bastante impressionáveis. A revelação mais extraordinária é, também, a mais incrível: não bastando à Amélia ter sido violada, vir de Nossa Senhora a afirmação de que ficaria no Purgatório “até ao fim do mundo”, é de mais. Isso não se faz!
A edição crítica das Memórias de Lúcia de Jesus, as investigações históricas já realizadas e em curso, vão oferecer um panorama da vida e religiosidade da freguesia de Fátima que irão atenuando os delírios acerca destes fenómenos nomeados como aparições ou como visões.
O que mais falta não é só a revisão crítica da pastoral católica da época. Muitas das suas concepções alojaram-se na história de Fátima. Desamparada, em Portugal, de uma prática crítica de reflexão teológica até ao Vaticano II, e até muito depois, Fátima dá uma imagem do catolicismo português que não corresponde à reforma desencadeada pelo Papa Francisco.
Falta-lhe ser o centro da nossa evangelização, como veremos.
[1] Lúcia de Jesus, Memórias, Edição crítica de Cristina Sobral, Fátima 2016, pp.186-187.    [2] Ib., pp. 188-189. [3] Ib., pp.230.


sexta-feira, 28 de julho de 2017

“Queria” ou “quer”?


Este artigo de Bagão Félix fez-me lembrar a sensaboria de alguns vendedores – de carne, sobretudo, passou-se mais nos talhos, gente forte, que vende bem, e por isso pode arrogar-se o direito de corrigir o freguês, talvez por brincadeira, talvez por superioridade - concedida pelo poder nutritivo e suculento que a boa carne fornece ao que a vende, que assim nutre sem reservas o corpo e a alma, que é como quem diz, a bolsa, pelo lucro que fornece. Por delicadeza, pois, em vez do “quero” assertivo e autoritário, uso, ao pedir, nos talhos, o imperfeito “Queria” e já várias vezes sou emendada: “Queria ou quer?” corrige o homem que me vai partir os bifes.
Por isso achei curioso este artigo de Bagão Félix sobre as anomalias verbais hodiernas, que repudiam o modo conjuntivo e outros tempos verbais, talvez por incúria, talvez por anulação da personalidade, nesta época democrática onde não há lugar para a opinião pessoal, ao que parece, é tudo corta a direito, tudo assertivo, sem o talvez da dúvida a exigir o conjuntivo inseguro.
Custa-me a crer que seja assim tão drástico. Não só porque a democracia permite que o talhante, orientado pelos ditames da morena Grândola, me corrija o imperfeito, delicado mas indiscutivelmente inseguro, mas porque ela ainda tem de reserva muitos exemplos comportamentais hodiernos de autoridade e mesmo de inflexibilidade exigentes do conjuntivo com os “quero que”, os “para que” dos objectivos ou os “ainda que” sobranceiros ou por vezes cínicos, além de que nas escolas ainda se continua a estudar as diversas formas verbais na sua variação múltipla, embora a ausência do estudo do latim lhes dificulte bastante o sentido.
Em todo o caso, o texto de Bagão Félix é extremamente enriquecedor, segundo uma orientação simultaneamente  graciosa e esclarecedora, que põe em confronto a dificuldade da nossa língua não despegada das suas origens, com a facilidade despretensiosa da conjugação verbal do inglês, o que a tornou língua universal por excelência, constantemente a enriquecer-se e a alastrar pelo mundo.

Tempos e silêncios
Público, 1 de Junho de 2017
António Bagão Félix
Há uns tempos, tive a oportunidade de ler um interessante texto de um editorialista italiano do “Corriere della Sera”, Beppe Severgnini sobre a crise – que eu diria estrutural – do modo verbal conjuntivo. Escreveu ele que o conjuntivo está moribundo. Não se trata, porém, de nenhum assassinato linguístico, de um suicídio premeditado ou induzido, ou de uma eutanásia idiomática. Trata-se, sobretudo, da desconsideração das ideias de dúvida, de incerteza ou de humildade (ou de todas em conjunto). Construir uma frase ou declaração com o verbo no modo conjuntivo precedido de “julgo que”, “penso que”, “creio que”, “talvez” e outras da mesma natureza cautelar está a cair em desuso. Hoje, fala-se categoricamente com a factualidade indicativa que não deixa margens para dúvidas. “Talvez ele faça bem aquele trabalho” é quase estigmático dando lugar ao “ele faz bem aquele trabalho”.
Há aqui também algo de preguiça. E de um modo facilitista de expressão. Muita gente pensará para quê fazer tanto esforço com o antipático do modo conjuntivo quando os outros o entendem em versão indicativa e redutora!
Por outro lado, a tendência para a supressão de modos e tempos verbais resulta do “contágio” do inglês, língua universal, bem mais simplificada neste âmbito e sem a nossa sofisticação.
Aliás, em português, há um tempo que quase se sumiu, a não ser por escrito e reportado a factos históricos. Refiro-me ao pretérito-mais-que-perfeito para traduzir um facto passado antes de um outro facto também passado (“quando cheguei à igreja, a missa acabara”).  Outra tendência irreversível (e, na minha opinião, empobrecedora) é a sistemática troca do futuro condicional pelo pretérito imperfeito do indicativo. Por que razão usar só um tempo verbal para dois modos de tempo? Pretérito ainda que imperfeito (“eu escrevia”) não é o mesmo que futuro ainda que condicional (“eu escreveria”)! O condicional exprime uma possibilidade dependente de uma condição, de uma dúvida ou de uma incerteza, ou, ainda, de uma gentileza (“poderia fazer o favor de me ajudar?”). Curiosas são frases que por vezes se lêem ou ouvem, com o pretérito imperfeito do indicativo, logo seguido do modo condicional (“ele era o Rei e ela seria a Rainha” ou “matava-o e morreria”).
Estamos vivendo uma avalanche de pseudo hegemonia dos factos (mesmo que não o sejam…). É a primazia crescente sobre a filosofia, a hermenêutica e sobre a necessidade de compreender as coisas. Mas é, de igual modo, uma expressão deste tempo onde quase tudo é efémero, virtual, rápido, descartável, ligeiro, superficial, inútil, supérfluo.
Pouca gente julga, considera, crê ou pensa. Muita gente sabe, transmite, comunica, tem a certeza. Como um amigo me dizia há tempos, a propósito de alguém que estava há longo tempo a tentar explicar uma situação, quando interpelado sobre se percebia o que estava a explicar, disse com sinceridade: “não, não percebo. Se tivesse percebido, não te explicava, dizia-te…”
Hoje quem se arrisca a usar o conjuntivo ou o condicional, corre o sério risco de ser visto como uma pessoa insegura. “Creio que seja deste modo”, “quem seria aquela pessoa?” cansam os mais convencidos que retorquirão “oh homem, deixa-te de creio e parece. As coisas são ou não são, ponto final”.
De certo modo ligado a esta questão verbal está o odiado silêncio, ainda que possa ser um modo inteligente ou humilde de alguém se exprimir. Numa qualquer reunião, quem não fala, simplesmente porque nada tem a acrescentar, comete o pecado da mudez pessoal ou profissional. É desqualificado, passa por ignorante ou incompetente.
Desconsideração do modo conjuntivo, do modo condicional, do modo de silêncio, afinal três vértices de um dos triângulos da vida hodierna.


quinta-feira, 27 de julho de 2017

Não deixou escola


Os articulistas vão analisando o estado de uma nação que se pauta por uma habitual postura de ataque mútuo, naturalmente mais exacerbada após as catástrofes recentes aqui vividas. A violência instalou-se no Parlamento, o poder judicial, ao invés de prosseguir isento e eficiente, como parte de um todo governativo de superior relevância, desce à liça reivindicativa, o que significa que ele próprio se deixou contaminar pela febre desordeira, não em função de uma Justiça nacional de equilíbrio e imparcialidade, mas em função dos seus próprios interesses.
E no meio disto, um homem que parece ser um exemplo no país, um curto texto sobre ele na mesma página do texto de Rangel. Houvesse outros como ele, a fazer escola…
Américo Amorim: «Já se disse tudo sobre o carisma, o génio, a vontade indomável do empresário. Despretensioso e ligado à família. Pouco se disse do “tudo” que se aprendia e do “mundo” que se abria numa só conversa.»
 I Texto: Estado de esquizofrenia política
Vicente Jorge Silva
Público, 16/7/17
A questão suplementar – e decisiva – é saber se o cruzamento destes estados patológicos não tornará inevitável uma deriva que o país tem sabido evitar até agora: o populismo.
Diz o dicionário (Lello) sobre a palavra esquizofrenia: "Doença mental caracterizada pela incoerência mental e pela ruptura de contacto com o mundo exterior". Ora, o debate parlamentar sobre o Estado da nação foi um exemplo instrutivo de como essa doença ameaça contaminar os comportamentos políticos.
A incoerência mental revelou-se comum quer ao Governo e os seus aliados da esquerda, quer à oposição da direita. Não é decerto uma novidade, mas o facto de se ter manifestado na sequência de duas situações graves – Pedrógão e Tancos – e da demissão de três secretários de Estado, investigados pela Justiça devido à aceitação de convites da Galp para assistirem ao Europeu de futebol, criou um ambiente propício à esquizofrenia política.
Para além das duras acusações contra a falta de liderança revelada pelo Governo nas últimas semanas, a oposição continua refém de uma obsessão recorrente de que não consegue libertar-se: o saldo positivo das contas nacionais e os índices socioeconómicos que favorecem a actual gestão governativa. Ou seja: segundo o PSD e o CDS, esse balanço deve-se às políticas seguidas pela anterior maioria de direita, à "austeridade dissimulada" do Governo socialista e aos seus estratagemas orçamentais (as famosas cativações), mas nunca, jamais, em tempo algum, ao facto de ter ocorrido uma mudança de sentido e de rumo, com a reversão de medidas impostas pela governação precedente. Se o país está eventualmente melhor, isso deve-se ao Governo anterior, ainda que os factos indiquem o contrário – e de as previsões catastrofistas de anteriores governantes, como Passos Coelho e Assunção Cristas, se terem revelado infundadas. Eis um reflexo típico da "ruptura de contacto com o mundo exterior" – começando, desde logo, pela recusa em enfrentar a popularidade do Governo socialista.
Em contrapartida, o Governo insiste em cavalgar essa onda, desvalorizando – ou iludindo – aquilo que os acontecimentos de Pedrógão, Tancos ou as demissões dos secretários de Estado puseram em evidência: as graves disfunções da máquina administrativa, a falta de uma visão estratégica para o país em áreas cruciais para o seu desenvolvimento e segurança, ou ainda a ligeireza insustentável de sentido ético revelada pelos secretários de Estado demissionários (independentemente da discutível natureza criminal dos seus comportamentos). São outros sinais de "ruptura de contacto com o mundo exterior".
II Texto:  O Bullying velado ao poder jurisdicional
Inquieta-me a facilidade com que, em Portugal, se procura lançar a dúvida, a suspeita ou suspeição sobre a imparcialidade e a independência das magistraturas.
Público, 19 de Julho de 2017
1. As demissões dos três secretários de Estado por causa de um alegado recebimento indevido de vantagem, traduzido em viagens a jogos do Campeonato Europeu de Futebol de 2016, serviram mais uma vez para levantar fantasmas. Foram algumas, e bem audíveis, as vozes que se indignaram com o Ministério Público e com o seu zelo perseguidor de políticos. A que se soma mais um adiamento na apresentação da acusação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, que também relevaria de uma gestão acrítica do poder jurisdicional. Finalmente, tudo seria coroado pelo anúncio da greve dos juízes, supremo gravame corporativo, agora aprazado para os inícios de Outubro, precisamente para interferir com o apuramento do resultado das eleições autárquicas. Magistrados do Ministério Público e juízes estariam agora concertados para irritar e perturbar o poder político. No caso das viagens, corria-se mesmo o risco, a acreditar em alguma prosa destilada na última semana, de nos estarmos a aproximar do “governo dos juízes”.
2. A prosa e a prosápia que lhe vai associada mantiveram para já um tom baixo e lateral, mas vão fazendo o seu curso e cavando o seu sulco. A voz mais forte e desafinada foi, porém, a do Presidente da Assembleia da República que, inusitadamente e contra o dever de recato e de respeito pela função jurisdicional a que está constitucional e institucionalmente adstrito, resolveu comentar o acerto jurídico da actuação do Ministério Público. Algo que é especialmente bizarro, se não fosse grave. Em que outra democracia e Estado de Direito, com os quais nos gostemos de comparar, ocorre ao Presidente do Parlamento dar palpites sobre o bem ou o mal fundado de despachos de constituição de arguidos? Que, lembre-se, não implicam sequer qualquer acusação e que, no caso, até foram solicitados pelos próprios. É patente que o actual Presidente da Assembleia não soube honrar a tradição de rigorosa imparcialidade dos seus antecessores. São muitas as ocasiões em que deixa transparecer a sua preferência partidária e ideológica e em que conduz os trabalhos com evidente acrimónia para com os deputados que não apoiam a actual solução governativa. E nisso, destoa e destoa abissalmente dos seus antecessores. Mas enquanto está na pura gestão do múnus parlamentar, está ainda dentro de uma esfera em que se submete à publicidade crítica e a uma possibilidade (ainda que limitada) de contraditório. Agora, quando decide passar para a relação com os demais poderes do Estado, tudo se torna mais sério, mais denso e mais complexo
3. De há muito que escrevo sobre o poder jurisdicional, o estatuto dos magistrados e a função que jurisdição e magistraturas desempenham e vão desempenhar nas democracias do século XXI (e, em especial, se as pensarmos como democracias “poliárquicas” e “não territoriais”). Nos últimos anos, verdade seja dita, neste preciso espaço, não tenho tratado o tema, apesar de em diferentes colóquios e seminários, ter regressado a ele recorrentemente. Seja como for, inquieta-me a facilidade com que, em Portugal, por mera conveniência de partido e de conjuntura, se procura lançar a dúvida, a suspeita ou suspeição sobre a imparcialidade e a independência das magistraturas. E mais me inquieta ainda quando ela vem quase sempre dos mesmos sectores (e actores), que depois rasgam as vestes com as transformações da judicatura na Turquia e na Polónia ou até na Hungria.
4. A primeira palavra para a greve dos juízes. Não preciso aqui de mostrar pergaminhos: julgo ter sido dos primeiros, já em 2001, a considerar a greve uma contradição nos termos. A única coisa que poderia ser admissível – e só num quadro de risco para o regular funcionamento das instituições democráticas – seria uma acção destinada a defender a independência jurisdicional. Os juízes não são funcionários públicos, são titulares de órgãos de soberania. Por isso mesmo, questionei também sempre a possibilidade de “sindicalização” ou de constituição de uma “associação sindical”. Em todo o caso, e desde que passei por esta área no Governo, nos idos de 2004-2005, reconheço alto interesse prático, mesmo que teoricamente contestável, na existência destas organizações sindicais. Na verdade, a cristalização de alguns assuntos na esfera sindical permite que os Conselhos Superiores respectivos não sejam tomados por esse tipo de preocupações e assuntos, criando uma salutar divisão de esferas. Concedo, por isso, desde então, no papel útil e meritório das plataformas sindicais de magistrados, embora não possa em caso nenhum aceder ao reconhecimento de um direito à greve.
5. Dito isto, que não é pouco, choca-me de sobremaneira a tentativa de condicionamento e de acantonamento do poder jurisdicional. Ao contrário do que muitos pensam e escrevem, nas sociedades poliárquicas do século XXI, o papel do poder judicial vai crescer e aumentar. A grande questão, portanto, não é a de limitar e constranger o poder judicial, como procuram fazer a todo o transe os adeptos das democracias iliberais. A grande questão é compreender qual o seu papel e função em sociedades democráticas em que o poder político se “desterritorializa”. Com efeito, nestas sociedades a garantia da esfera liberal de direitos – os direitos mais ligados à pessoa, aí compreendidas as dimensões sociais – dependem mais da protecção judicial do que do voto. E, por isso, é fundamental compreender que a sobrevivência dos direitos fundamentais no novo espaço político está intimamente dependente de um fortalecimento do poder jurisdicional em sede de legitimidade e de responsabilidade.
6. A maioria dos comentadores, mesmo os ilustrados, continuam a viver sob o paradigma do velho Estado. Desconhecem as tensões multisseculares do judicial com o político, a origem teórica e histórica do governo dos juízes ou até um módico dos sobressaltos que viveu a Itália dos anos 90. Falam sem saber. Só porque dá jeito. Para defender os secretários de ocasião e quejandos.


quarta-feira, 26 de julho de 2017

Evolução


Com a evolução da ciência e a descoberta progressiva de meios para a fazer evoluir, um dia descobrirão que esse de há 300 mil anos não será ainda o mais antigo espécime de homo sapiens que praticou o fogo para se servir e hoje o usa para se destruir. O texto – já antigo de mês e meio, no Público, que guardei religiosamente para o transcrever no meu blog, tão curioso que é, acordou em mim ecos de tristeza, bem ao jeito de um dos espécimes de crânio bem assente – Cesário Verde – “Assim que pela História ele se aventura e alarga”, já no seu tempo. A par da dor e da revolta, tão suas, talvez surgisse hoje nele uma enorme raiva artística, neste estranho mundo de afogados a fugir da morte e de assados por conta de incendiários que ninguém pune. Recordemos, pois, a “sinfonia poética” “O Sentimento de um Ocidental”, no seu segundo andamento, como corolário enaltecedor de uma descoberta tão valiosa, que, como tudo o que passa, se perderá no pó dos tempos.

A nossa espécie é cem mil anos mais antiga
Os traços do rosto seriam parecidos com qualquer pessoa que hoje se cruza connosco na rua. O crânio tinha uma forma mais alongada. Caçava sobretudo gazelas e zebras. Viveu há cerca de 300 mil anos em África, mais precisamente no Norte de África. Os cientistas dizem que é o primeiro da nossa espécie.
Público, 7 de Junho de 2017
Fósseis descobertos em Jebel Irhoud, em Marrocos, estão a reescrever a história sobre o início da nossa espécie revelando uma nova primeira fase da evolução do Homo sapiens. A descoberta de ossos e ferramentas de pedra que terão entre 300 mil e 350 mil anos fez recuar cem mil anos o ponto de partida do calendário do homem moderno. É a mais antiga “raiz da nossa espécie” alguma vez descoberta em África e em qualquer parte do mundo, dizem os cientistas.
 O primeiro da nossa espécie” é o título do comunicado do Instituto Max Planck para Antropologia Evolutiva, na Alemanha, sobre a descoberta dos mais antigos fósseis de Homo sapiens, em Jebel Irhoud, Marrocos, feita por investigadores desta instituição. Na verdade, é um novo primeiro da nossa espécie. Até agora, esse lugar na história evolutiva era ocupado por uma população que viveu na África Oriental há cerca de 200 mil anos. O estudo publicado esta quinta-feira na revista Nature, além de esclarecer o nosso passado, reescreve esta história.
Pensávamos que o berço do homem moderno estava na África Oriental há 200 mil anos, mas os nossos dados revelam que o Homo sapiens se espalhou por todo continente africano há cerca de 300 mil anos. Muito antes de uma dispersão do Homo sapiens para fora de África, houve uma dispersão em África”, diz o paleoantropólogo Jean-Jacques Hublin, investigador do Max Planck que assina o artigo na Nature. O cientista liderou com Abdelouahed Ben-Ncer, do Instituto Nacional de Arqueologia e Património marroquino, em Rabat, a investigação feita por uma equipa internacional de cientistas.
Os novos dados não significam que existe um novo berço do homem, defende Jean-Jacques Hublin, que acredita que África foi uma espécie de berçário com várias formas de Homo sapiens, vários berços dispersos pelo continente. E se até agora existiu um consenso sobre as origens africanas da nossa espécie que levou alguns especialistas a concluir que o Jardim do Éden estava situado na África Oriental e subsariana, o investigador do instituto Max Planck corrige: “Se existe um Jardim do Éden é do tamanho de África inteira.”
A reviravolta na história da evolução humana aconteceu em Marrocos, num sítio arqueológico chamado Jebel Irhoud (perto de Sidi Moktar, a cerca de 100 quilómetros de Marraquexe), que é conhecido desde os anos 60. Ali, onde há muito, muito tempo existiu uma gruta, foram encontrados fósseis humanos e animais (de gazelas e zebras) e também vários artefactos da chamada “Idade Média da Pedra” africana .Foto
Jebel Irhoud fica perto de Sidi Moktar, a cerca de 100 quilómetros de Marraquexe SHANNON MCPHERRON (INSTITUTO MAX PLANCK)
Os mineiros e o crânio
O reconhecimento da importância do lugar que esteve ocupado por uma exploração de extracção mineira não foi imediato. Os primeiros vestígios foram encontrados por mineiros que, durante os trabalhos, atingiram uma parte do solo e entre os sedimentos identificaram artefactos e ossos, lembrou Jean-Jacques Hublin, durante a conferência de imprensa organizada pela Nature sobre este trabalho. Entre estes “destroços” estava um crânio que os mineiros entregaram ao médico da exploração. Reza a história que, depois de o guardar durante algum tempo, o médico terá finalmente decidido levar este crânio até um professor universitário conhecido. Só mais tarde a descoberta e a sua importância foi (re)conhecida. No compasso de espera, os trabalhos de extracção mineira continuaram,  possivelmente,  destruindo muito do que poderia estar ali enterrado, lamenta hoje o paleoantropólogo.
Sempre existiu algum debate e incerteza sobre a idade geológica das ossadas encontradas na gruta de Jebel Irhoud. Além dos ossos, havia também ferramentas de pedra semelhantes a achados feitos em lugares associados à chamada “cultura mousteriana” (associada aos Neandertais). Assim, os fósseis encontrados no local foram originalmente datados como tendo cerca de 40 mil anos, sugerindo-se que deveriam pertencer a uma versão de Neandertal africano. Isto quando ainda se acreditava que os humanos modernos eram o resultado da evolução de antepassados dos Neandertais. Uma hipótese que já caiu por terra sabendo-se hoje que, num momento da história, as linhagens de Homo sapiens e Neandertais (que chegaram a coexistir na Europa e no Médio Oriente) se separaram. Os Neandertais extinguiram-se há quase 30 mil anos e o Homo sapiens evoluiu progressivamente até ao que somos hoje.
Desde cedo se percebeu que os resultados dos exames que iam sendo feitos a estes vestígios não coincidiam com um antepassado africano do Neandertal. Já em 1970, por exemplo, um estudo sobre o crânio encontrado em Jebel Irhoud revelou que a estrutura facial do fóssil era bastante diferente dos Neandertais mostrando características semelhantes às do Homo sapiens. Mas, apesar destas pistas, os investigadores da altura não consideraram que este fóssil fosse um Homo sapiens arcaico. Isso só aconteceu agora.
Um novo projecto de escavações em Jebel Irhoud, que começou em 2004, aumentou a descoberta de fósseis de Homo sapiens de seis para 22 e ajudou a esclarecer as dúvidas. Este trabalho com mais de uma década culminou agora no artigo publicado na Nature. Entre os novos achados estão duas peças importantes: um crânio quase completo e uma mandíbula inferior com a dentição completa. “Tivemos muita sorte”, constata Jean-Jacques Hublin, feliz com a qualidade e preservação dos fósseis encontrados. Também há outros ossos humanos e animais e ferramentas. Mas, apesar do bom estado de todas as amostras, o tempo acabou por varrer qualquer hipótese de obter um resultado com análises de ADN, esclarecem os cientistas, confessando alguma frustração.
Jean-Jacques Hublin coordenou os trabalhos de análises dos fósseis que serviram para identificar inúmeras características, incluindo morfologia facial, mandibular e dentária, que parecem aproximar estes vestígios dos humanos modernos. Os rostos destes indivíduos seriam bastante parecidos com os nossos. O trabalho de reconstituição feito com centenas de medições em 3D no computador, estatísticas e imagens de tomografias mostram que “a forma facial dos fósseis de Jebel Irhoud é quase impossível de distinguir dos homens modernos que vivem hoje”, refere o comunicado do Instituto Max Planck.
É a forma da caixa craniana que revela o lado arcaico destes fósseis. Ao contrário da forma arredondada das nossas cabeças, estes indivíduos possuíam um crânio mais alongado. “A forma interior da caixa craniana reflecte a forma do cérebro”, diz Philipp Gunz, outro dos autores do artigo. Ou seja, o cérebro seria diferente também na sua organização. Jean-Jacques Hublin adianta, por exemplo, que se pode perceber que estas pessoas tinham o cerebelo mais pequeno do que nós, mas um pouco maior do que o dos Neandertais. Na nossa linhagem, perdeu-se a forma alongada e desenvolveu-se o cerebelo. Talvez o desenvolvimento do cerebelo tenha empurrado para fora os lados parietais e, assim, arredondado o crânio”, sugere o paleoantropólogo. Os hominíneos de Jebel Irhoud representam então uma primeira fase evolutiva de Homo sapiens, defendem os cientistas. “Não seriam propriamente humanos modernos [como nós agora] mas são Homo sapiens”, diz Jean-Jacques Hublin.
A nova análise de todos os fósseis recuperados também permitiu concluir que pertencem, pelo menos, a cinco indivíduos. Na conferência de imprensa, Jean-Jacques Hublin precisou que se tratava de três adultos (que terão morrido jovens), um adolescente e uma criança com “sete ou oito anos”. Na ausência de peças como a pélvis ou outra parte do esqueleto que possam ajudar a esclarecer se eram homens ou mulheres, o cientista arrisca apenas afirmar que entre os três crânios de adultos há um com traços mais marcados que poderão sugerir que se trata de um homem e outro com “características mais delicadas” que poderá pertencer a uma mulher.
As ferramentas e o fogo
Faltam peças neste puzzle mas os sinais e outros vestígios encontrados são suficientes para alguma especulação. Tudo leva a crer que há cerca de 300 mil anos Jebel Irhoud tinha uma gruta e servia de abrigo a caçadores que se deslocavam em África. Para este exercício de reconstituição, é preciso imaginar África como um lugar muito diferente do que é hoje. Houve uma altura, acreditam os cientistas, em que a região hoje ocupada pelo deserto do Sara era fácil de transpor, permitindo migrações dos humanos. Acredita-se que estes indivíduos o tenham feito e assim alcançado o Norte de África. Em Jebel Irhoud, descansavam e passavam uma ou duas noites. E ali faziam fogo, uma actividade que deixou marcas que foram decisivas para a revelação feita agora pelos cientistas.

O Sentimento dum Ocidental - Noite Fechada (II parte), de Cesário Verde

Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de dom!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.


terça-feira, 25 de julho de 2017

Democracia também significa tirania


12
Um artigo moralista, natural em quem se preocupa com o status quo e se aflige com um mundo de desconcerto, resultante de ambições, egoísmos e más políticas governativas. Serve para meditar, abrangente que é e profuso nos considerandos. Não resisti a transcrever um comentário – de Gualter Cabral Cabral - que ele mereceu, o qual, ao exemplificar, desce do domínio da abstracção para o do concreto, facilitador do entendimento.
Também por cá se fala em «lei da rolha», por certo outro bom exemplo de tirania subentendida

Tirania
António Barreto
DN, 23/7/17 – SEM EMENDA
Onde nasce a tirania? Antiga pergunta a que muitos tentaram dar resposta. Umas vezes com cultura e isenção, outras com fanatismo e crença. Mas há décadas ou séculos que a pergunta se repete e que as respostas se sucedem. Há poucos meses, mais um ensaio sobre o tema foi publicado por Timothy Snyder. Recomenda-se. É quase um manual de vida prática sobre o que fazer para evitar a tirania. Em tempos difíceis, como os de hoje e dos últimos anos, a interrogação volta sempre.
Onde nasce a tirania? A pergunta é actual. Não porque em Portugal o governo ou a oposição nos ameacem. Nem porque haja sinais evidentes de que a besta espreite. Mas simplesmente porque é sempre actual e porque no mundo, dos Estados Unidos à Rússia, passando pelo Islão e pela Europa, há gente de sobra que a aprecie. A tirania é sempre do Estado ou através do Estado. Difícil é saber onde começa.
Como se sabe e é verdade, a tirania pode nascer da família, da terra, do capital e da espada. Mas também do voto, da assembleia, do sindicato e do partido. Do poder dos fortes, dos deuses e dos sacerdotes. Mas também do poder dos homens sobre as mulheres e dos mestres sobre os alunos. Do poder dos brancos, dos pretos e dos amarelos sobre qualquer uma das outras cores e do poder dos militares sobre os civis.
A tirania nasce de todos os poderes excessivos, mesmo legítimos, mesmo legais e mesmo maioritários. Nasce quando o poder é de um grupo ou uma entidade, um país, uma classe, uma igreja, um sindicato, uma etnia, uma profissão ou um banco. Nasce quando num país se recorre ao nacionalismo para afirmar a autonomia ou a independência. Nasce quando o singular se sobrepõe ao plural e quando a uniformidade leva a melhor sobre a diversidade. Nasce com o catecismo, o livro de citações, a cartilha, o livro único e o manifesto. Nasce quando o grupo se sobrepõe e domina o indivíduo ou quando este se submete e resigna.
A tirania nasce onde fraqueja a razão, o recurso, a liberdade e a oposição. Surge onde faltam a liberdade do artista, a palavra do escritor e a livre iniciativa. A tirania nasce na desigualdade de condição e na igualdade imposta. Nasce da extrema pobreza e da extrema riqueza. Mais ainda do que na desigualdade, a tirania nasce na injustiça.
A tirania nasce no rancor e no ressentimento dos derrotados a quem não é dada uma segunda oportunidade. E ainda no medo dos que já tiveram qualquer coisa e correm o risco de perder tudo. Mas também nasce na corrupção, na promiscuidade e na condescendência com a desonestidade. Como nasce na impunidade dos mais fortes e dos mais ricos, dos que têm mais votos ou mais sócios.
Nasce da fraqueza da sociedade civil, isto é, na fraqueza dos empresários, dos sindicatos, das associações, das igrejas e dos jornais. A tirania nasce no desenraizamento, na desordem cívica e no caos institucional. Nasce onde não há instituições, associações, igrejas e empresas ou onde todas estas dependem do Estado ou do partido. Onde o produto é mais importante do que o produtor e o consumo domina o consumidor.
Nasce quando o argumento é substituído pela proclamação. Quando o debate cede lugar ao insulto. Quando as opiniões são recitadas. Quando a força do dinheiro, da arma ou do voto exige a obediência.
Os inimigos da liberdade e as fontes da tirania estão longe e no exterior, mas também perto e no interior, dentro da democracia. A tirania nasce nas maiorias que não reconhecem as minorias, mas também nas minorias esclarecidas que têm a certeza de ter ideias para os outros e para todos. Nasce da multidão, tanto quanto da vanguarda.
A tirania nasce das ideias de perfeição, de pureza, de igualdade, de virtude, de utopia, de salvação e do homem novo. Nasce nas revoluções e alimenta-se do imprevisível.
A tirania nasce na ausência de justiça.



As minhas fotografias: O Terreiro do Paço, com a estátua de D. José, o Cais das Colunas e o cacilheiro no rio Tejo
A praça existiu durante quase três séculos, até ser destruída pelo terramoto. A versão que lhe sucedeu foi construída depois. O seu arquitecto foi Eugénio dos Santos. A estátua equestre é de Machado de Castro e foi fundida, em 1774, de um só jacto, o que, para aquelas dimensões, era raríssimo na altura. O rei morreria três anos depois, o que ditou o imediato afastamento do Marquês de Pombal, cujo poder exercia, durante mais de 25 anos, quase sem contrapeso ou moderação. Ainda hoje, a personalidade e a política deste "secretário de Estado do Reino", uma espécie de primeiro-ministro, são controversas. Esta bonita praça, que os ingleses chamaram, durante um século ou dois, "do Cavalo Preto", já teve comerciantes, mercadores, marinheiros, ministros, soldados, mendigos, árvores e automóveis. Agora tem turistas.


Quem nos rouba nunca dá.
Numa democracia os governos servem para cumprir a vontade dos cidadãos, pelo que é desconcertante verificar, a miúde, pessoas e instituições a pedir isto e aquilo. Em todos os "nossos governos democráticos" verificamos que estes mais se empenham em ficar do que a governar. Vêm-nos, depois com falinhas mansas, com " o dever de votar", mas em contrapartida não há a possibilidade de votar em pessoas com curriculos abertos (e nas listas deparamos com os sempre eternos ilegíveis), os lugares para amigos e boys estão garantidos, as mordomias à Lagardere continuam, assinam isto e aquilo - de interesse vital - sem que para o mesmo sejam mandatados por referendo. Os cidadãos não se insurgem por frouxidão, indolência, incúria e desconhecimento. São os agentes passivos da tirania.