Ao
ler Maria Teresa Sousa, ficamos com a impressão de que desta vez é que
vai ser. Mas, nas cambalhotas a que temos assistido, de um mundo cada vez mais
ameaçador, com focos de violência disseminados, o próprio mundo árabe movendo
os cordéis da sua muita riqueza e ambição, apoiando os desordeiros das seitas
que desgraçam todos, Donald Trump jogando os cordéis da sua trapalhice
contínua, como se podem garantir tantas certezas, relativamente a Emmanuel
Macron e a nova entente no eixo Paris-Berlim, apesar do apoio de confiança do
povo francês no seu novo presidente e nas políticas que ele promete
estabelecer? A impressão que fica é a de que para Teresa Sousa o apoio aos
refugiados é fundamental para a harmonia europeia, e do mundo, e por isso é tão
optimista o seu discurso. Mas será que o cor de rosa da visão fraterna que o
pensamento “gauche” unilateral difunde piedosamente, indiferente - ou antes,
desprezador - dos que trabalham no sossego consciente das suas próprias
ambições a uma estabilidade a que se julgam com direito - até segundo os
parâmetros da Declaração Universal de 1948, dos Direitos Humanos - é a cor certa, será
que não estamos a romancear demasiado a respeito de um eixo protector do resto
do rebanho? Qu’en savons-nous?
Merkel
e Macron: a última oportunidade
O que há de novo nesta
tentativa de dar vida ao eixo Paris-Berlim são as circunstâncias. A eleição de
Trump e o Brexit voltaram a colocar a França e a Alemanha sozinhas
frente-a-frente.
Maria Teresa Sousa
Público, 11 de Junho de
2017
1. Emmanuel Macron operou uma verdadeira revolução
do sistema político francês em menos de um ano, que será confirmada hoje com
uma vasta maioria na Assembleia Nacional. Venceu, defendendo a Europa, a
abertura ao mundo e mais generosidade perante os refugiados. Foi uma inesperada
mas bem-vinda lufada de ar fresco numa Europa ainda manietada pelas divisões
internas e pela ascensão de forças populistas e nacionalistas que põem em causa
a própria integração. O seu maior desafio pode ser reformar a França. Não
apenas porque a economia francesa teima em comportar-se pior do que as suas
congéneres, mas porque disso dependerá também a sua segunda missão fundamental:
devolver a vida ao eixo Paris-Berlim.
Quando visitou a
chanceler no dia seguinte à tomada de posse, resumiu ao que vinha. “Cada um
de nós tem uma tarefa. Eu tenho que levar a cabo reformas que são necessárias
para a França e para restaurar a confiança entre a Alemanha e a França. A
chanceler tem de conseguir convencer a opinião pública e a classe política
alemãs”. De quê? De que é preciso completar a reforma da zona euro de
modo a prevenir novo desastre. Macron defende mais integração e maior
partilha de risco. Até agora, a Alemanha ignorou todas as propostas
nesse sentido, insistindo em que não quer uma “Europa de transferências”, ou
seja, nada que custe dinheiro aos contribuintes alemães. Merkel não
rejeitou as suas palavras. A sua visão sobre o futuro da Europa evoluiu
de forma assinalável desde que chegou ao poder, quando via o futuro da Alemanha
garantido pela força da sua economia. Aprendeu muito nos últimos anos, quando
teve de enfrentar a Rússia, o terrorismo, o Brexit ou a eleição de Donald
Trump, substituindo um Presidente com o qual estabeleceu uma forte relação de
confiança. O seu discurso já mudou alguma coisa. Insiste mais na ideia
de que a Europa é do interesse vital do seu país, que beneficia dela em todas
as suas dimensões. Há 15 dias, vinda das cimeiras da NATO e do G7, avisou os
alemães de que já não podem contar “completamente” com os Estados Unidos para
garantirem a sua segurança. Em Setembro, vai provavelmente ser eleita para o
seu quarto mandato. Como lhe disse Macron, tem de convencer a opinião pública
alemã de que é do seu interesse manter a Europa unida, mesmo que isso lhes
custe algum dinheiro. Talvez possa contar hoje com uma nova corrente de opinião
que defende que a chanceler tem de apoiar a França mesmo que isso implique
sacrifícios, porque está perante a última oportunidade de devolver à integração
europeia um dinamismo e uma liderança que muita gente já considerava
impossíveis. Quanto às eleições, diz à Reuters Claire Demesmay, do German
Council on Foreign Relations: “Na perspectiva de Macron, o ideal seria uma
grande coligação [CDU/CSU-SPD] sem Schäuble”.
2. Entretanto, o Presidente francês já conseguiu
devolver à França o seu lugar na Europa. Com uma assinalável
mestria e um sentido apurado da importância dos gestos na cena internacional.
Fê-lo na cimeira da NATO ou na resposta a Donald Trump, em inglês e perto da
meia-noite, quando este anunciou o abandono do Acordo de Paris. Recebeu Putin
em Versalhes, mas não cedeu nada quanto às sanções, enquanto o Presidente russo
não cumprir os acordos de Minsk. Neste capítulo, é fácil um entendimento
com Merkel. Ambos estão a trabalhar para dar à Europa uma política de segurança
e defesa devidamente apoiada por uma maior operacionalidade militar. São apenas
os primeiros passos. Nada poderá substituir os EUA (ambos não têm qualquer
ilusão sobre isso), mas há coisas que a Europa pode fazer sozinha e qualquer
reforço da sua capacidade militar traduzir-se-á no reforço da NATO. A
saída do Reino Unido é um golpe duro. Ontem, Macron fez a diferença na
forma como reagiu aos resultados das eleições. Telefonou a May, felicitou-a,
disse-lhe que continuava a contar com o seu país, convidou-a a ir visitá-lo
logo que possa. Apesar da eterna rivalidade, os dois países estão ligados pela
cooperação militar e pelo seu estatuto de potências nucleares.
3. Resta a pergunta óbvia: qual é a
diferença entre Macron e os seus dois antecessores, Sarkozy e Hollande? Ambos
iniciaram os seus mandatos com promessas de entendimento com a chanceler (que
está lá desde 2005). Ambos chegaram ao fim mantendo a aparência de um bom
entendimento. A Alemanha não abdicou um instante da oportunidade de refazer as
regras do euro de acordo com o seu interesse, ignorando as suas consequências
devastadoras. O que há de novo nesta tentativa de dar vida ao
eixo Paris-Berlim são as circunstâncias. A eleição de Trump e o
Brexit voltaram a colocar a França e a Alemanha sozinhas frente-a-frente.
O Reino Unido era o terceiro pilar desta relação, funcionando como uma
espécie de árbitro. Para Merkel, a ortodoxia financeira de Londres e a
sua defesa da liberdade de comércio ajudavam a conter a visão francesa, menos
austera e menos aberta à globalização. Para a França, a parceria militar com o
Reino Unido ajudava a lidar com uma Alemanha cada vez mais hegemónica.
Finalmente, Trump funcionou para Berlim como uma ameaça à solidez do segundo
pilar da sua relação com o mundo: a aliança com os EUA. O que está hoje
em causa para Berlim e para Paris é muito diferente do que poderia estar há um
ano atrás. Merkel tem a oportunidade que lhe dá um quarto mandato para
escrever o seu lugar na História: a chanceler que veio do Leste para salvar a
Europa ou para acabar com ela. Ambos têm pela frente uma oportunidade histórica
mas também irrepetível. É esta a grande diferença.
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