O sofrimento é o mesmo, o sofrimento é real, quer seja no riso feroz,
quer no ataque frontal, quer na agonia
psíquica, que em Pessanha se traduz em versos e plasticidade de simbolismo e de luz, e em A.G. e J.
M. T. mais não são que discursos de opinião, de um desejo irreprimível que
assim não fosse entre nós. Mas assim é e temos pena, pecha antiga que nos
deslustra, na prosa bem informada da sátira sem devaneios do primeiro, da ira
sem rodeios do segundo.
Lavemos a alma com o grito de alma do poema de Camilo
Pessanha.
Aos Césares o que é
dos Césares
0BSERVADOR,
17/6/2017
Por azar, o
cepticismo de alguns acha a dádiva uma exibição de “cunhas” e descaramento, e
coloca os parentes de Carlos literalmente na lama.
O país não cessa de
arranjar novos motivos de orgulho. Há dias, houve a atribuição do Camões a
Manuel Alegre, apenas o 13º compatriota distinguido pelo importante prémio.
Ontem, houve a saída oficial do PDE, triunfo inegável de Passos Coe…, perdão,
António Costa. Pelo meio, aprendemos que uma sobrinha de Carlos César foi
contratada pela câmara de Lisboa.
Inês César, 25 anos,
socióloga, é a mais recente aquisição da empresa municipal Gebalis, que a
contratou à junta de freguesia de Alcântara, onde a jovem dera nas vistas na
temporada 2016/17. O facto de ambas as instituições serem socialistas apenas
prova a atenção que o PS dedica à formação e ao desenvolvimento de valores
emergentes. O parentesco da dra. Inês com o presidente do partido apenas prova
que o contributo dos Césares para o progresso nacional está longe de se
esgotar.
Luísa, mulher de
Carlos e reformada da coordenação dos Palácios da Presidência (uma coisa
relevantíssima lá dos Açores, suponho), dispôs-se – sem concurso público que a
senhora não é de perder tempo – a abdicar do sossego para coordenar a
“estrutura de missão” para a criação da Casa da Autonomia (outra coisa lá dos
Açores, nascida por proposta da coordenação dos Palácios da Presidência).
Francisco César, filho de Carlos e de Luísa, é deputado regional, eleito pela
primeira vez em lista encabeçada pelo pai, que lhe elogia, naturalmente babado,
a “militância cívica” e a “sensibilidade”. Rafaela, mulher de Francisco e nora
de Carlos e de Luísa, é chefe de gabinete da secretária regional adjunta para
os Assuntos da Presidência, posto cuja enganadora insignificância não a impede
de auferir justíssimos três mil e setecentos euros mensais. Horácio, irmão de
Carlos, cunhado de Luísa e tio de Francisco, também saiu da reforma, após
carreira incansável ao serviço da comunidade, para ser adjunto no falecido
gabinete de João Soares. Patrocínia, mulher de Horácio e cunhada de Carlos e de
Luísa, é assessora do Grupo Parlamentar do PS e brilha em simultâneo na junta
de freguesia do Lumiar. E agora é Inês, sobrinha de Carlos, filha de Horácio e
de Patrocínia e prima de Francisco, a despontar para o espírito missionário que
abençoou aqueles genes. Antes, já existira o avô de Carlos (e bisavô de
Francisco, etc.), que este confessou à “Sábado” ter sido presidente de junta,
além do bisavô e do tio-bisavô de Carlos, dirigentes do Partido Socialista de
Antero de Quental. Isto que se saiba, dado que a modéstia dos virtuosos (ou a
falta de espaço) é capaz de obstar à divulgação de todos os casos.
Quantas famílias
obedecem a tão rígidos padrões? Na minha, por exemplo, cada um fez pela vida
onde calhou. É possível que o meu tio-bisavô fosse padeiro e eu, Deus me valha,
detesto bolo-rei. Por falar em rei, é admirável que um clã assim insuflado de
ética republicana apresente práticas parecidíssimas com as monárquicas. E é
evidente que um clã assim predestinado constitui uma dádiva para qualquer
nação. Por azar, o cepticismo de alguns acha a dádiva uma exibição de “cunhas”
e descaramento, e coloca os parentes de Carlos literalmente na lama. Se
dependesse de gente dessa, alimentada em exclusivo pela inveja, Portugal não
iria a lado nenhum, ao contrário dos lados a que vai com gente do gabarito dos
Césares.
Como não quero
acusações de parcialidade, concedo um exercício. Imagine-se, por absurdo, que
os familiares de Carlos não eram profissionais altamente competentes, vultos
ímpares do municipalismo ou referências no mundo das coordenações regionais.
Imagine-se, em suma, que não seriam os melhores nas funções que em boa hora
acederam a desempenhar. Mesmo essa hipótese (absurda, repito) não roubaria um
pingo de legitimidade às nomeações em causa e ao papel de Carlos nelas.
Explico porquê. Quem
acompanha com zelo a evolução do pensamento filosófico de Carlos, encontra três
preocupações centrais. Em Maio de 2008, ainda nas ilhas, Carlos negava o
aumento local do desemprego. Em Maio de 2012, celebrava a contenção do
desemprego que afinal aumentara nos anos anteriores. Em Agosto de 2015, já
transladado para o “continente”, chorava os 250 mil empregos que o país perdera
em quatro anos de “neoliberalismo”. Em Fevereiro de 2017, festejava a
diminuição diária de 250 desempregados por obra e graça do governo de esquerda.
E por aí fora. Constata-se, pois, que o desemprego é a primeira preocupação de
Carlos. A segunda é combatê-lo. A terceira é iniciar o combate junto dos seus.
Se a consciência
social e o amor à família configuram nepotismo, vou ali e não volto. Não quero
viver numa sociedade subjugada à má-fé, que, ao invés de agradecer a
oportunidade, se irrita por patrocinar uma família notável. O que vale é que os
noticiários ligaram pouco ao assunto e preferiram concentrar-se nos – alerta
para chavão – verdadeiros problemas dos portugueses. Os quais, a acreditar nos
noticiários, não são nenhuns.
Nota de rodapé:
Um eurodeputado do PS
chamou “cigana” a uma deputada do PS que, embora eleita pelo Porto, votou por
Lisboa na história da Agência Europeia do Medicamento (EMA). Num ápice, o
partido em peso caiu sobre o homem, a quem, com típica tolerância, acusam de
insultos intoleráveis. Não se percebe se o insulto passa por comparar a sra.
deputada aos ciganos ou se por comparar os ciganos à sra. deputada. Percebe-se
que a questão da EMA e o mito da “descentralização” morreram aqui. Como se pretendia,
aliás.
OPINIÃO
O assalto do Estado aos fundos europeus
É uma chico-espertice que dura há décadas, e que
subverte totalmente o espírito dos fundos comunitários.
João Miguel Tavares
Público, 30
de Maio de 2017
No último sábado,
o Expresso fez o seguinte exercício: averiguar os 20 projectos que
até ao momento receberam mais dinheiro ao abrigo do Portugal 2020, o badalado
programa que tem como tarefa distribuir 25 mil milhões de euros em fundos
europeus até 2020. Dão-se alvíssaras a quem acertar nas actividades que têm
sido mais generosamente contempladas com o dinheiro da União Europeia. Terá
sido a plantação de oliveiras na zona do Alqueva? O desenvolvimento da cultura
do caracol em Torres Vedras? A introdução de impressoras 3D no fabrico de
alpargatas? Nada disso. O Portugal 2020 tem sobretudo ajudado a Direcção-Geral
do Ensino Superior (DGES) a atribuir bolsas a alunos carenciados, o Instituto
de Emprego e Formação Profissional (IEFP) a pagar estágios a jovens, e a
Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) a patrocinar doutorados.
A estratégia é
magnífica: o Estado pergunta ao Estado se pode concorrer a apoios estatais, e o
Estado permite ao Estado engordar um pouco mais. É uma chico-espertice que dura
há décadas, e que subverte totalmente o espírito dos fundos comunitários.
Enquanto Pedro Marques e António Costa anunciam debaixo dos holofotes que desta
vez é que os fundos vão ser espectacularmente aplicados no desenvolvimento do
país, no escurinho dos corredores lá está outra vez o Ministério da Educação a
bater à porta do Ministério do Planeamento a pedir umas centenas de milhões
para bolsas, que não precisam sequer de constar do seu orçamento. Desta forma,
o Governo aproveita o maná europeu para pagar os apoios sociais e desorçamentar
despesa, ao mesmo tempo que se pode gabar das magníficas taxas de execução do
programa. Todos ganham. Todos, claro, menos o sector privado.
Escreve o Expresso:
no Portugal 2020, “19 dos 20 maiores projectos são para pagar despesa do
Estado”. Não, não é gralha. No top 20 dos projectos mais subsidiados há um
único privado, e num distante 13º lugar – o apoio a um novo complexo industrial
no distrito de Aveiro da empresa de papel The Navigator Company. Tudo o resto é
dinheiro para o Terreiro do Paço distribuir em gastos correntes. A DGES recebe
77 milhões de euros para estudantes do ensino superior, mais 90 milhões para
alunos carenciados. O IEFP recebe quase 100 milhões para estágios “Emprego
Jovem”, quase 90 milhões para estágios para jovens (que não “Emprego Jovem”),
mais 37 milhões para a contratação de adultos. E por aí fora. Antigamente, os
agricultores estouravam os fundos da Europa a comprar jipes. Actualmente, o
Estado estoura os fundos da Europa a pagar a sua própria despesa.
Dir-me-ão: antes gastar
o dinheiro dos contribuintes alemães em bolsas para estudantes portugueses do
que numa frota de Nissans Patrol. Certo. Mas então poupem-nos à hipocrisia de
andar a vender o Portugal 2020 como uma magnífica oportunidade para estimular a
“produção de bens e serviços transacionáveis” e promover a “internacionalização
da economia”. Ainda não foi inventado o economista que explique como tal coisa
possa ser conciliável com uma lista de projectos que inclui ainda a
“compensação de despesas no transporte inter-ilhas” (40 milhões para os Açores)
ou a “via rápida de Câmara de Lobos” (45 milhões para a Madeira). A única coisa
que se vê neste Portugal 2020 é o velho Estado Saca-Saca, travestido de
poupança à portuguesa: transferem-se 700 milhões da coluna “gastos do Estado”
para a coluna “subsídios de Bruxelas” e chama-se a isso um corte na despesa.
Finalmente… Camilo Pessanha:
Quem poluiu, quem
rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou ao caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, - tábua tosca, de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.
Onde esperei morrer, - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou ao caminho?
Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, - tábua tosca, de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...
Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.
Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.
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