É como sinto, há muito, que somos, e que
artigos como os que seguem, vêm confirmar: o primeiro, de Rui Ramos - «O
erro dos críticos de Passos Coelho» - com a conquista do poder e as
torsões de cintura necessárias e criteriosamente seguidas pelo nosso PM para o
estabelecimento desse poder: virando à esquerda e cedendo nessas pequenas nobres
causas da sua luta - dela, esquerda - pelos trocos obtidos para o seu povo,
dantes humilde e agora de posse da sua nova consciência de direitos, propondo
cada vez mais a proximidade de todos os vencimentos, sem distinções de
preparação técnica ou científica, exigindo cada vez mais subidas para a
igualdade definitiva. Os homens são todos iguais nos direitos. Com tais
cedências, osso atirado ao cão, o nosso PM assegurou o seu lugar. Seguidamente,
torceu os rins em novo golpe, desta vez de mesura à banca europeia, tal como
fizera Passos, mas este decididamente num propósito de honesta satisfação de
saldar contas como nos competia. Costa teve que fazê-lo, a menos que quisesse
deitar tudo a perder, que Passos conquistara para nós. E fê-lo, igualzinho a
Passos, que nunca me pareceu subserviente como o acusavam, mas simplesmente
responsável. Costa, ao fazer o mesmo, mostra-se sorridente, sempre sorridente,
talvez de sorriso amarelo, imperceptível por fora, rilhando os dentes por
dentro. O certo é que a esquerda, apaziguada com o seu osso do primeiro golpe
de rins de Costa, agora se pôs descontente e voltou à carga grevista, por
descontentamento dos donos dos partidos, embora ainda não com o afinco com que
o faziam nos tempos de Passos. Rui Costa explica melhor estes assuntos,
eu apenas cito o meu ponto de vista, há muito experimentado. O artigo de Alexandre
Homem Cristo - “Dar-se ao respeito” - demonstra melhor ainda
a diferença entre nós e eles, os que prevaricam lá fora e os prevaricadores de
cá de dentro. Estes conservam o lugar, os outros demitem-se, naturalmente,
porque a sociedade os condenou. Cá por casa a sociedade é mais amorfa, calda
onde todos parecemos boiar, todos iguais, como nos compete, em doutrina mais
recente aqui.
O erro dos críticos de
Passos Coelho
OBSERVADOR, 30/5/2017
À
oligarquia, basta um governo que faça contas para Bruxelas ver. Ora, isso Costa
já provou que é possível com o PCP e o BE. Não precisa do PSD. Nem o de Passos
Coelho, nem o de quem quer que seja.
Para
os seus antecessores no PSD, Passos Coelho errou ao supor
que tudo ia correr mal o ano passado. Não sei se Passos supôs mesmo que a
maioria de António Costa não ia durar, ou que a anunciada “reversão da
austeridade” comprometeria os equilíbrios orçamentais. Mas se supôs, não esteve
sozinho. Inicialmente, a economia ressentiu o novo governo, o investimento
caiu, a Comissão Europeia agitou-se nas cadeiras. A explicação é simples: toda
a gente levou a sério o que as esquerdas tinham andado a dizer na oposição
entre 2011 e 2015.
Ainda
alguém se lembra? As esquerdas não desejavam apenas devolver num ano os
cortes de salários e pensões que Passos Coelho se propunha devolver em dois
anos. As esquerdas pretendiam desmanchar o ajustamento, repudiar a dívida,
contestar o euro, encontrar uma alternativa ao crescimento baseado em
exportações. Não lhes bastava que as coisas “corressem bem”. Rejeitavam a
Europa de Angela Merkel, a Europa dos baixos défices, a Europa da
flexibilização laboral. As actuais ideias de Emmanuel Macron seriam anátema
para Costa em 2015.
Tudo
isto, ainda por cima, parecia corresponder à “ideologia” das esquerdas. Por
isso, é natural que, ao princípio, muita gente tivesse admitido uma mudança de
rumo que, dados os constrangimentos financeiros do país, só poderia ser
acidentada. O que menos gente previu foi que os partidos da actual maioria,
para se manterem no poder, estivessem dispostos a deitar fora tudo o que tinham
andado a dizer, por exemplo, sobre a relevância fundamental do investimento
público.
Quase
todos subestimaram a extrema fraqueza de Costa e dos seus correntes parceiros.
Em 2015, precisavam do governo como de pão para a boca. Costa precisava de ser
primeiro-ministro para continuar a sua carreira política, o PS temia ser
ultrapassado por um Podemos português, o BE desesperava por não conseguir ser
esse Podemos, e o PCP estava arrepiado com a hemorragia da CGTP. Nenhum deles
podia correr o risco de continuar na oposição. E ao contrário das direitas,
tinham tirado a verdadeira lição da Grécia: que a Comissão Europeia
era indiferente à composição dos governos nacionais, desde que fingissem honrar
as metas do orçamento.
Agora,
o erro dos críticos de Passos no PSD é acreditarem que Costa só convive com os
velhos inimigos do PS no tempo do PREC porque Passos, com a sua “perspectiva
pessimista”, não suscita afectos no PS. Um líder do PSD despreocupado e
folião seria logo abraçado por Costa como um meio de se “libertar” do PCP e do
BE. É uma ilusão risível. Os críticos de Passos ainda não perceberam o que se
passou: Costa descobriu um novo “arco da governação”, que lhe permite fazer
o que é preciso para manter a correr o dinheiro do BCE, e ainda por cima com
“paz social”. O PSD e o CDS não fazem greves, não marcham nas ruas, não
inspiram bloqueios no Tribunal Constitucional, nem existem na televisão, a não
ser através daqueles “comentadores de direita” que, por acaso, até apoiam
Costa. Na medida em que não servem para criar “conflitos sociais”, o PSD e o
CDS também não servem para garantir “paz social”. Para que quereria Costa a sua
ajuda? Para fazer “reformas estruturais”? Mas quem precisa de reformas, quando
o BCE dá dinheiro e o turismo alegra as ruas?
À
oligarquia, basta um governo que faça contas para Bruxelas ver. Ora, isso Costa
já provou que é possível com o PCP e o BE. Não precisa do PSD. Nem o de Passos,
nem o de quem quer que seja. Quando muito, dá-lhe jeito um presidente da
república oriundo da direita, para não se imiscuir nas intrigas das esquerdas e
para atiçar as intrigas no PSD. Os problemas do PSD ou do CDS não se resolvem,
como parecem pensar os críticos de Passos, mudando de líder ou de “discurso”
como quem renova o guarda-roupa. Não, não perceberam ainda o que se está a
passar.
Dar-se ao respeito
29/5/2017,
É
arrasadora a indiferença dos partidos aos critérios éticos. Mas alguém se
importa? O facto de as recentes eleições de Ricardo Rodrigues e António
Gameiro mal terem sido notícia é esclarecedor.
A
qualidade de uma democracia republicana mede-se, entre outras vias, pelo
comportamento dos seus representantes, tanto governantes como parlamentares.
Isto porque os nossos regimes liberais não são apenas compostos de regras,
leis, instituições, freios e contrapesos. O cumprimento da lei não chega – de
nada servem as regras e as instituições se umas não forem cumpridas e outras
não forem respeitadas, mesmo quando assim a lei o permite. Os regimes liberais
distinguem-se, para além da forma de governo, pela sua dimensão moral. Estão
suportados em pilares éticos e são mantidos por quem acredita nos valores da
liberdade, igualdade, justiça, dignidade humana, diversidade, tolerância. E,
como tal, a credibilidade de um sistema político perante os cidadãos assenta,
também, no reconhecimento do respeito por esses valores por parte dos seus
representantes – e não, somente, do cumprimento da lei e das regras, pois algo
ser legal não significa que seja ético.
É
por isso que, em várias democracias maduras, os políticos abandonam as suas
funções quando se vêem envolvidos em casos que põem em causa a sua idoneidade
enquanto servidores públicos. Só no último ano, exemplos não
faltam. Bruno
Le Roux, ex-ministro do Interior em França, demitiu-se devido à
contratação das suas filhas para assistentes parlamentares. Aida
Hadzialic, ex-ministra da Educação na Suécia, demitiu-se por ter
sido apanhada a conduzir sob efeito de álcool (0,2 g/l). Keith
Vaz, ex-deputado inglês do Partido Trabalhista, demitiu-se por se
ver envolvido num caso de prostituição masculina. Ard van
der Steur, ex-ministro da Justiça da Holanda, renunciou ao cargo
face à acusação de que, em 2001, teria ocultado informações ao parlamento sobre
um caso de corrupção de justiça.
José Manuel Soria, ex-ministro espanhol da Indústria, demitiu-se
após ter sido conhecida a sua relação com empresas em paraísos fiscais. Sigmundur
Gunnlaugsson, ex-primeiro-ministro da Islândia, renunciou ao cargo
quando se viu envolvido no escândalo dos Panama Papers. E por aí fora.
Em
Portugal, resiste uma certa dificuldade em compreender esta lição elementar: o
regime tem de manter uma dignidade moral e quem ocupa cargos públicos tem de
estar acima de qualquer suspeita. Aliás, um dos debates deste tempo ilustra bem
o problema: não se precisa dos tribunais para afirmar que Sócrates, enquanto
agente político, é culpado – basta saber que, enquanto primeiro-ministro, viveu
às custas de transferências ocultas de um amigo com quem o Estado mantinha
negócios. Mas se Sócrates é um óbvio caso de polícia, a cena política
portuguesa está repleta de situações cuja inconsequência envergonha.
Carlos César (PS) tem toda a sua
família empregada em cargos públicos, incluindo posições de nomeação. Ricardo Rodrigues (PS), célebre
por ter sido condenado em tribunal pelo roubo de gravadores a jornalistas
durante uma entrevista, foi escolhido pelo PS e há semanas eleito pelo
parlamento para o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
António Gameiro (PS), conhecido por ter sido condenado em tribunal pela apropriação
indevida de 45 mil euros de uma cliente (e com pena agravada pelo Tribunal da
Relação), foi (novamente) eleito para o Conselho de Fiscalização do Sistema
Integrado de Informação Criminal. E, menos recente mas interessante de
comparar com o que sucedeu na Suécia, Glória Araújo (PS), à época
deputada (2013), foi apanhada pela polícia a conduzir sob efeito de álcool
(2,41 g/l) – e recusou renunciar.
Todos
os exemplos recentes são do PS? Sim, como seriam do PSD se estivesse no governo
– o poder permite aos partidos agir à sua conta e vontade. Eis a arrasadora
indiferença dos partidos aos critérios éticos, sobretudo quando integram a
maioria parlamentar. Ora, é fácil (e justo) apontar o dedo aos partidos. Mas
tudo isto apenas acontece porque se entrega aos políticos a decisão em
benefício próprio, sem ter contrapeso na sociedade civil – isto é quem proteja
o sistema político, denuncie e pressione os partidos a alterar comportamentos
que, sendo legais, não são éticos. Só que, no fim de contas, ninguém se importa
realmente. O facto de as recentes eleições em plenário da Assembleia da
República (Ricardo Rodrigues e António Gameiro) mal terem sido notícia é prova
suficiente. Depois não há surpresas: quem não se dá ao respeito não é
respeitado.
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