domingo, 4 de junho de 2017

Pequeninos, dançarinos



É como sinto, há muito, que somos, e que artigos como os que seguem, vêm confirmar: o primeiro, de Rui Ramos - «O erro dos críticos de Passos Coelho» - com a conquista do poder e as torsões de cintura necessárias e criteriosamente seguidas pelo nosso PM para o estabelecimento desse poder: virando à esquerda e cedendo nessas pequenas nobres causas da sua luta - dela, esquerda - pelos trocos obtidos para o seu povo, dantes humilde e agora de posse da sua nova consciência de direitos, propondo cada vez mais a proximidade de todos os vencimentos, sem distinções de preparação técnica ou científica, exigindo cada vez mais subidas para a igualdade definitiva. Os homens são todos iguais nos direitos. Com tais cedências, osso atirado ao cão, o nosso PM assegurou o seu lugar. Seguidamente, torceu os rins em novo golpe, desta vez de mesura à banca europeia, tal como fizera Passos, mas este decididamente num propósito de honesta satisfação de saldar contas como nos competia. Costa teve que fazê-lo, a menos que quisesse deitar tudo a perder, que Passos conquistara para nós. E fê-lo, igualzinho a Passos, que nunca me pareceu subserviente como o acusavam, mas simplesmente responsável. Costa, ao fazer o mesmo, mostra-se sorridente, sempre sorridente, talvez de sorriso amarelo, imperceptível por fora, rilhando os dentes por dentro. O certo é que a esquerda, apaziguada com o seu osso do primeiro golpe de rins de Costa, agora se pôs descontente e voltou à carga grevista, por descontentamento dos donos dos partidos, embora ainda não com o afinco com que o faziam nos tempos de Passos. Rui Costa explica melhor estes assuntos, eu apenas cito o meu ponto de vista, há muito experimentado. O artigo de Alexandre Homem Cristo - “Dar-se ao respeito” - demonstra melhor ainda a diferença entre nós e eles, os que prevaricam lá fora e os prevaricadores de cá de dentro. Estes conservam o lugar, os outros demitem-se, naturalmente, porque a sociedade os condenou. Cá por casa a sociedade é mais amorfa, calda onde todos parecemos boiar, todos iguais, como nos compete, em doutrina mais recente aqui.

O erro dos críticos de Passos Coelho
OBSERVADOR, 30/5/2017
À oligarquia, basta um governo que faça contas para Bruxelas ver. Ora, isso Costa já provou que é possível com o PCP e o BE. Não precisa do PSD. Nem o de Passos Coelho, nem o de quem quer que seja.
Para os seus antecessores no PSD, Passos Coelho errou ao supor que tudo ia correr mal o ano passado. Não sei se Passos supôs mesmo que a maioria de António Costa não ia durar, ou que a anunciada “reversão da austeridade” comprometeria os equilíbrios orçamentais. Mas se supôs, não esteve sozinho. Inicialmente, a economia ressentiu o novo governo, o investimento caiu, a Comissão Europeia agitou-se nas cadeiras. A explicação é simples: toda a gente levou a sério o que as esquerdas tinham andado a dizer na oposição entre 2011 e 2015.
Ainda alguém se lembra? As esquerdas não desejavam apenas devolver num ano os cortes de salários e pensões que Passos Coelho se propunha devolver em dois anos. As esquerdas pretendiam desmanchar o ajustamento, repudiar a dívida, contestar o euro, encontrar uma alternativa ao crescimento baseado em exportações. Não lhes bastava que as coisas “corressem bem”. Rejeitavam a Europa de Angela Merkel, a Europa dos baixos défices, a Europa da flexibilização laboral. As actuais ideias de Emmanuel Macron seriam anátema para Costa em 2015.
Tudo isto, ainda por cima, parecia corresponder à “ideologia” das esquerdas. Por isso, é natural que, ao princípio, muita gente tivesse admitido uma mudança de rumo que, dados os constrangimentos financeiros do país, só poderia ser acidentada. O que menos gente previu foi que os partidos da actual maioria, para se manterem no poder, estivessem dispostos a deitar fora tudo o que tinham andado a dizer, por exemplo, sobre a relevância fundamental do investimento público.
Quase todos subestimaram a extrema fraqueza de Costa e dos seus correntes parceiros. Em 2015, precisavam do governo como de pão para a boca. Costa precisava de ser primeiro-ministro para continuar a sua carreira política, o PS temia ser ultrapassado por um Podemos português, o BE desesperava por não conseguir ser esse Podemos, e o PCP estava arrepiado com a hemorragia da CGTP. Nenhum deles podia correr o risco de continuar na oposição. E ao contrário das direitas, tinham tirado a verdadeira lição da Grécia: que a Comissão Europeia era indiferente à composição dos governos nacionais, desde que fingissem honrar as metas do orçamento.
Agora, o erro dos críticos de Passos no PSD é acreditarem que Costa só convive com os velhos inimigos do PS no tempo do PREC porque Passos, com a sua “perspectiva pessimista”, não suscita afectos no PS. Um líder do PSD despreocupado e folião seria logo abraçado por Costa como um meio de se “libertar” do PCP e do BE. É uma ilusão risível. Os críticos de Passos ainda não perceberam o que se passou: Costa descobriu um novo “arco da governação”, que lhe permite fazer o que é preciso para manter a correr o dinheiro do BCE, e ainda por cima com “paz social”. O PSD e o CDS não fazem greves, não marcham nas ruas, não inspiram bloqueios no Tribunal Constitucional, nem existem na televisão, a não ser através daqueles “comentadores de direita” que, por acaso, até apoiam Costa. Na medida em que não servem para criar “conflitos sociais”, o PSD e o CDS também não servem para garantir “paz social”. Para que quereria Costa a sua ajuda? Para fazer “reformas estruturais”? Mas quem precisa de reformas, quando o BCE dá dinheiro e o turismo alegra as ruas?
À oligarquia, basta um governo que faça contas para Bruxelas ver. Ora, isso Costa já provou que é possível com o PCP e o BE. Não precisa do PSD. Nem o de Passos, nem o de quem quer que seja. Quando muito, dá-lhe jeito um presidente da república oriundo da direita, para não se imiscuir nas intrigas das esquerdas e para atiçar as intrigas no PSD. Os problemas do PSD ou do CDS não se resolvem, como parecem pensar os críticos de Passos, mudando de líder ou de “discurso” como quem renova o guarda-roupa. Não, não perceberam ainda o que se está a passar.
Dar-se ao respeito
29/5/2017,
É arrasadora a indiferença dos partidos aos critérios éticos. Mas alguém se importa? O facto de as recentes eleições de Ricardo Rodrigues e António Gameiro mal terem sido notícia é esclarecedor.
A qualidade de uma democracia republicana mede-se, entre outras vias, pelo comportamento dos seus representantes, tanto governantes como parlamentares. Isto porque os nossos regimes liberais não são apenas compostos de regras, leis, instituições, freios e contrapesos. O cumprimento da lei não chega – de nada servem as regras e as instituições se umas não forem cumpridas e outras não forem respeitadas, mesmo quando assim a lei o permite. Os regimes liberais distinguem-se, para além da forma de governo, pela sua dimensão moral. Estão suportados em pilares éticos e são mantidos por quem acredita nos valores da liberdade, igualdade, justiça, dignidade humana, diversidade, tolerância. E, como tal, a credibilidade de um sistema político perante os cidadãos assenta, também, no reconhecimento do respeito por esses valores por parte dos seus representantes – e não, somente, do cumprimento da lei e das regras, pois algo ser legal não significa que seja ético.
É por isso que, em várias democracias maduras, os políticos abandonam as suas funções quando se vêem envolvidos em casos que põem em causa a sua idoneidade enquanto servidores públicos. Só no último ano, exemplos não faltam. Bruno Le Roux, ex-ministro do Interior em França, demitiu-se devido à contratação das suas filhas para assistentes parlamentares. Aida Hadzialic, ex-ministra da Educação na Suécia, demitiu-se por ter sido apanhada a conduzir sob efeito de álcool (0,2 g/l). Keith Vaz, ex-deputado inglês do Partido Trabalhista, demitiu-se por se ver envolvido num caso de prostituição masculina. Ard van der Steur, ex-ministro da Justiça da Holanda, renunciou ao cargo face à acusação de que, em 2001, teria ocultado informações ao parlamento sobre um caso de corrupção de justiça. José Manuel Soria, ex-ministro espanhol da Indústria, demitiu-se após ter sido conhecida a sua relação com empresas em paraísos fiscais. Sigmundur Gunnlaugsson, ex-primeiro-ministro da Islândia, renunciou ao cargo quando se viu envolvido no escândalo dos Panama Papers. E por aí fora.
Em Portugal, resiste uma certa dificuldade em compreender esta lição elementar: o regime tem de manter uma dignidade moral e quem ocupa cargos públicos tem de estar acima de qualquer suspeita. Aliás, um dos debates deste tempo ilustra bem o problema: não se precisa dos tribunais para afirmar que Sócrates, enquanto agente político, é culpado – basta saber que, enquanto primeiro-ministro, viveu às custas de transferências ocultas de um amigo com quem o Estado mantinha negócios. Mas se Sócrates é um óbvio caso de polícia, a cena política portuguesa está repleta de situações cuja inconsequência envergonha.
Carlos César (PS) tem toda a sua família empregada em cargos públicos, incluindo posições de nomeação. Ricardo Rodrigues (PS), célebre por ter sido condenado em tribunal pelo roubo de gravadores a jornalistas durante uma entrevista, foi escolhido pelo PS e há semanas eleito pelo parlamento para o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. António Gameiro (PS), conhecido por ter sido condenado em tribunal pela apropriação indevida de 45 mil euros de uma cliente (e com pena agravada pelo Tribunal da Relação), foi (novamente) eleito para o Conselho de Fiscalização do Sistema Integrado de Informação Criminal. E, menos recente mas interessante de comparar com o que sucedeu na Suécia, Glória Araújo (PS), à época deputada (2013), foi apanhada pela polícia a conduzir sob efeito de álcool (2,41 g/l) – e recusou renunciar.
Todos os exemplos recentes são do PS? Sim, como seriam do PSD se estivesse no governo – o poder permite aos partidos agir à sua conta e vontade. Eis a arrasadora indiferença dos partidos aos critérios éticos, sobretudo quando integram a maioria parlamentar. Ora, é fácil (e justo) apontar o dedo aos partidos. Mas tudo isto apenas acontece porque se entrega aos políticos a decisão em benefício próprio, sem ter contrapeso na sociedade civil – isto é quem proteja o sistema político, denuncie e pressione os partidos a alterar comportamentos que, sendo legais, não são éticos. Só que, no fim de contas, ninguém se importa realmente. O facto de as recentes eleições em plenário da Assembleia da República (Ricardo Rodrigues e António Gameiro) mal terem sido notícia é prova suficiente. Depois não há surpresas: quem não se dá ao respeito não é respeitado.

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