sábado, 3 de junho de 2017

O Trump de lá, a trampa de cá



Galaró emplumado, ei-lo que deu o seu passeio, no artificialismo das convenções, actor pisando o seu palco a rebentar de orgulho, na avidez dos media, na pequenez dos discursos, na farsa dos gestos. Um homem de coragem, todavia, pretendendo exibir a sua importância, e viver a sua história de conto de fadas, mas na realidade sem a varinha mágica imprescindível - para nós, pelo menos, europeus do bom viver, que continuamos a precisar da sua colaboração, para podermos usufruir dos copos e das mulheres, sobretudo cá os do sul, mais soalheiros. E afinal, logo após a viagem de fantochada, o passo a seguir de Trump foi rasgar um tratado que impõe a obrigatoriedade de salvar a Terra contra o desastre ambiental. Donald Trump sente-se confortável no seu mundo de poder e não entende de poluições, torcido no inchaço da sua cadeira de ”rei absoluto”, que não percebe das nudezas de todas as condições, e, mais que todas, essa dos tronos. O certo é que, nesta velocidade com que as notícias ocorrem, a visita de Donald Trump, referida por Teresa de Sousa, já foi, a do rasgar do Acordo o será em breve, nesta dança de campeões de um mundo de passagem.
Por cá, tudo vai bem, a Catarina Martins repete, no seu virtuoso inchaço, que foi graças a ela e os seus que a economia portuguesa está a progredir, com o aumento dos salários mínimos, e a mim parece-me que ainda irá progredir mais com a sugestão de diminuição das reformas dos velhos, segundo proposta de José Manuel Fernandes, não de todo absurda, a pensar nos vindouros, e segundo o lema que reduz a trapos esses tais que cada vez mais se agarram à vida, segundo as estatísticas, como ladrões dos novos, pese embora o que fizeram antes, em termos de descontos para assegurarem essa reforma que não tardará o dia, lhes será cerceada, para equilíbrio do erário.
Entretanto, no nosso estrelato artístico, Salvador Sobral começa a impor-se, oxalá que seja um dos vencedores em flecha, a não precisar de reforma, como é uso nestes tempos intranquilos, de cada um construir a sua própria reforma, alguns com muita fraude à mistura, sem consequências para os infractores, embora com extremo reflexo na economia, desde há muito tempo. Mas disso não se fala, faz parte dos nossos tabus. O rasgar do Acordo de Paris, de Trump, desvaloriza quaisquer outros acordos, até mesmo os de cá, onde já existe o costume do muito rasgar.

Donald Trump está a chegar
O novo Presidente americano iniciou este fim-de-semana umas mais do que merecidas “férias” no estrangeiro, que o retiraram do caldeirão interno em que está envolvido e que precisa que lhe corram bem para restituir algum fôlego à sua presidência.
Público, 21 de Maio de 2017
Teresa de Sousa
1. Num artigo publicado na Foreign Affairs enquanto decorria a campanha presidencial de 2000, Condoleezza Rice defendia uma visão para a política externa americana na qual a democracia, com os seus valores, teria de ter um papel fundamental. Rice era vista como a voz de George W. Bush em matéria de política externa, e a sua “professora-em-chefe”. Estávamos ainda a viver o remanso do pós-Guerra Fria. Bill Clinton era criticado pelo establishment mais conservador da política internacional por ter transformado a América numa espécie de “assistente social” do mundo, como dizia Kissinger.
Quando foi eleito, Bush considerou que o papel dos EUA não era reconstruir nações e prometeu mais “humildade” no exercício do poder americano. Mal sabia ele que teria de reconstruir umas tantas. No artigo, a sua conselheira nacional de Segurança e, depois, secretária de Estado do segundo mandato (com a missão de corrigir boa parte dos erros cometidos no primeiro), dizia que estavam reunidas as condições para acabar com a velha prática segundo a qual a América tinha de distinguir entre os “sons of a bitch” e “our sons of a bitch”. A Arábia Saudita, uma velha aliada da América, pertencia à segunda categoria, naturalmente.
Como sabemos, o 11 de Setembro mudou tudo. Derrubar ditadores e mudar regimes passou a ser, na prática, a doutrina oficial. O resultado foi o que se sabe. Condoleezza acaba de publicar um livro cujo título é justamente Democracia, que vai contra tudo aquilo que a actual Administração de Trump parece defender, pelo menos nos dias pares. O que ela diz é que os valores não podem estar dissociados da política externa americana sob pena de a descaracterizar, acrescentando que as palavras são muito importantes. O seu sucessor, Rex Tillerson, explicou recentemente aos funcionários do Departamento de Estado que não é útil passar a vida a falar de democracia, retirando-a das prioridades da política externa. Ninguém se lembra de Trump ter utilizado a palavra “democracia” desde que chegou à Casa Branca. Obama utilizou-a como um instrumento fundamental da sua política externa, mas desviou-a da ideia de que a mudança de regime pela força pudesse alguma vez ser uma solução. Estendeu a mão a Cuba e a Teerão. Privilegiou as forças especiais e os drones no combate ao terrorismo. Manteve-se afastado de outra guerra no Médio Oriente. “America First?”, pergunta Walter Russell Mead numa revisão do livro de Rice. “Não, diz Condoleezza Rice.”
2. O novo Presidente americano iniciou este fim-de-semana umas mais do que merecidas “férias” no estrangeiro, que o retiraram do caldeirão interno em que está envolvido e que precisa que lhe corram bem para restituir algum fôlego à sua presidência. O itinerário é longo e complicado. A ideia de visitar os lugares santos das três grandes religiões poderia ser interessante, caso o Presidente não tivesse antagonizado deliberadamente uma delas, ao ponto de restringir a entrada a pessoas oriundas de sete países islâmicos. Quer remediar essa má impressão. A visita ao Papa destina-se sobretudo a imprimir uma boa fotografia. Francisco já o criticou publicamente por causa dos imigrantes e dos refugiados e Trump devolveu-lhe as críticas dizendo que não era nada com ele. A forma como trata os mexicanos e os hispânicos não pode ser bem vista por Francisco, que também não pode esquecer que seis em cada dez católicos brancos americanos votaram no actual Presidente. Não podiam ser mais distintas as personalidades de ambos e os valores que defendem. 
3. Na NATO e no G7, duas cimeiras sucessivas em Bruxelas e na Sicília, os seus aliados europeus já trataram de organizar uma coreografia que evite o mais possível a imprevisibilidade que caracteriza este Presidente. São, mesmo assim, dois testes fundamentais sobre a aliança transatlântica e a defesa do livre comércio. Como escrevia ontem o New York Times, está tudo preparado para “conversas de 30 segundos e não de 30 minutos” e para memorandos de uma só página. As reuniões serão curtas. A agenda foi construída para dar a ideia de que a NATO já está a cumprir as suas recomendações, nomeadamente sobre o combate ao terrorismo, como se fosse uma novidade. “O terrorismo já é uma prioridade da NATO há 14 anos.” A Europa entrou em pânico quando Trump fez campanha elogiando o “Brexit”, demonizando a Alemanha e declarando a NATO obsoleta. Corrigiu o tiro: “Disse que era obsoleta e agora digo que não é obsoleta.” O chefe do Pentágono e o secretário de Estado já desbravaram terreno. A única coisa que os aliados querem é garantir que os EUA continuam empenhados na segurança europeia, porque sabem até que ponto precisam deles. Temem que a desestabilização interna da sua presidência crie um vazio de poder que abra as portas à China ou a Rússia mais do que seria conveniente para a segurança internacional. Receiam que a sua relação problemática com Putin ponha em causa as sanções aplicadas desde a ocupação da Crimeia. Têm apenas um objectivo: que o Presidente faça uma referência ao Artigo 5.º do Tratado de Washington. Vão levá-lo a inaugurar uma estátua de homenagem às vítimas do 11 de Setembro, para lhe lembrar que foi a única vez que a defesa mútua foi accionada. A favor dos americanos. Mas isso será no dia 25.

Vamos de ter de mudar quase tudo, e não queremos mudar nada
OBSERVADOR, 1/6/2017
Somos um país cada vez mais envelhecido e isso tem e terá imensas consequências no nosso futuro - e também na forma como vivemos a velhice. Mas enquanto houver geringonça ninguém discutirá o problema.
86 anos no caso dos homens, 88 no caso das mulheres. Em 2014-2016 foram essas as idades em que se registaram mais óbitos. No mesmo período duas em três das pessoas que morreram tinham mais de 80 anos. No caso das mulheres foram mesmo três em cada quatro óbitos os que ocorreram depois dos 80 anos.
Habitualmente olhamos para a esperança de vida e celebramos, com razões para celebrar, a extraordinária evolução registada em Portugal. De acordo com um relatório do INE divulgado esta semana, a esperança de vida à nascença era em 2015 de 80,62 anos. Nos últimos dez anos – dez anos que foram quase sempre de crise e de “cortes” que, como sabemos, “destruíram” o nosso Serviço Nacional de Saúde – nunca a esperança de vida deixou de aumentar, sendo hoje 2,44 anos mais elevada do que era há uma década. Em média estamos a ganhar cerca de três meses de esperança de vida por ano.
Mas há um outro dado importante que poucas vezes se refere: a esperança de vida aos 65 anos está agora nos 19,31 anos. Se pensarmos que a idade média das reformas anda nos 63 anos (62,8 no caso dos funcionários públicos em 2016, 63,1 para os restantes trabalhadores em 2015), concluímos que, em média, devemos esperar viver um pouco mais de 22 anos como reformados.
Este número faz-me impressão – e não me impressiona apenas por não saber como iremos financiar tantos anos com tantos portugueses a viverem como pensionistas. Impressiona-me também pelo desperdício que representa. Porventura um desperdício pesado para a economia e doloroso para os próprios.
A regra, nos dias que correm, é usar as reformas antecipadas como forma de reestruturar as empresas. Ou simplesmente de as renovar. Muitas vezes faz-se mesmo a seguinte conta: “Vais três anos para o Fundo de Desemprego e depois já tens idade para te darem a reforma sem cortes”.
Há muitos anos que penso que está quase tudo errado neste raciocínio.
Está errado para as empresas, pois muitos dos trabalhadores que dispensam, mesmo não tendo a criatividade e a energia dos mais novos, possuem uma experiência que lhes faz falta, uma experiência que bem poderia “temperar” toda a frescura e ideias novas trazidas pelos jovens.
Está errado para os próprios, pois a passagem directa da vida activa à vida de reformado é muitas vezes um choque doloroso, uma evolução também desnecessária se pensarmos que hoje, aos 60, aos 65 ou mesmo aos 70 anos se continua a ter boa saúde e se mantém o melhor de muitas capacidades.
E por fim está errado para a economia, pois sabemos que o aumento do contingente de reformados tem evoluído a par com a diminuição de população em idade activa, e essa é uma realidade que não mudaremos por muitas décadas, pois é fruto de tendências demográficas (sobretudo a diminuição do número de nascimentos) que não se podem alterar retroactivamente.
Infelizmente, quando olhamos para esta estado das coisas, quando queremos discuti-lo, por regra nunca saímos do debate em torno dos problemas de financiamento da segurança social. Parece que a única pergunta que faz sentido é “como é que vamos pagar tantas pensões?” ou, mais prosaicamente, “onde é que vamos buscar mais dinheiro?”
Gostaria que o debate pudesse sair desta camisa de forças, onde pouco mais podemos discutir do que a idade da reforma ou se vamos passar a taxar os robots, para passar a um outro debate que me parece mais estimulante: o de criar condições para que a passagem à reforma seja progressiva, isto é, que possa existir um período de transição em que os trabalhadores mais velhos começariam a trabalhar menos horas (ou menos dias) recebendo proporcionalmente menos, e que isso pudesse coexistir com aquilo a que poderíamos chamar “reformas a tempo parcial”.
Muitos dirão: mas então vamos aceitar salários mais baixos no fim da nossa vida activa? De facto nunca foi essa a regra, mas não vejo porque não possa acontecer. Por um lado, para muitos essa é uma fase da vida em que as despesas familiares começam as ser menores; por outro lado, ao aceitar soluções deste tipo estar-se-ia a abrir espaço para que as empresas pudessem contratar trabalhadores mais novos, o que é justo e necessário.
E seríamos capazes de viver com menos rendimentos? Parece difícil, mas é o que já hoje sucede quando se passa à reforma, e a tendência é para que aconteça cada vez mais. Hoje a primeira pensão de reforma corresponde, em média, a pouco mais de 60% do último ordenado, em 2025 estima-se que represente menos de metade e que, lá para 2060, tenha caído para 30% a 40%, conforme tenhamos por referência as estimativas da Comissão Europeia ou as do nosso Ministério da Solidariedade Social.
De novo acho chocante esta evolução. Acho chocante que encolhamos os ombros por aqueles que, trabalhando e descontando, vão pagar as nossas reformas nas próximas quatro décadas – toda uma vida de trabalho – só recebam, no final, o equivalente a metade do que hoje se recebe. E não me parece que este problema se resolva passando a taxar os robots.
Fórmulas que permitissem uma maior margem de liberdade – dos trabalhadores e das empresas – na gestão do processo de passagem da vida activa para a vida de reforma, mecanismos que estimulassem a continuação no mercado de trabalho de tantos que ainda têm tanto a dar à economia (e à sua própria auto-estima), soluções que permitissem optar entre diferentes formas de cálculo da pensão em função desta ser ou não usada como complemento de um corte salarial proporcional à redução do tempo de trabalho, tudo poderia e deveria contribuir para olhar de forma diferente para aquele número de que impressiona – os 22 anos a viver de uma pensão – e que também pesa.
Não era preciso fazer uma grande reforma, toda de uma vez, podia-se testar em alguns sectores ou regiões. Só tinha de se saber em que direcção queríamos ir.
Não tenho porém ilusões. Os tempos que vivemos não são favoráveis a este debate. À esquerda os partidos estão entrincheirados em posições ideológicas rígidas. E à direita tem-se a percepção de que enquanto durar a geringonça não há qualquer possibilidade de falar com o PS sobre um acordo de que este teria de ser sempre parte.
Há muita coisa para mudar. Nalgumas frentes, quase tudo. Mas pressinto que nos tempos mais próximos não quereremos mudar nada, e não apenas por causa do bloqueio político. Na verdade estamos tão habituados a mudar apenas sob pressão que já nem sabemos fazer de outra forma. Pior: falta-nos energia para isso, pois os mais idosos dificilmente serão agentes de mudança e os mais novos têm demasiados problemas hoje para pensarem nos que terão amanhã.

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