Parece
bastante lúcido e isento este artigo de Francisco Assis - o que
não se estranha, pela superioridade de uma posição desde sempre de equilíbrio e
força moral, que culminou na sua discordância inicial com a formação do governo
de um partido perdedor - o seu - e as manigâncias do seu chefe para o tornar
ganhador. Provavelmente terá sido essa força moral - a par, naturalmente, da
sua força intelectual - que o manteve no partido, outro qualquer teria sido
despejado. Mas são puras conjecturas. De qualquer forma mostra bem a sua
independência, ao elogiar a secretária-geral adjunta do PS, Ana
Catarina Mendes, que afirmou “ que, se fosse francesa, teria votado
Emmanuel Macron”, considerando que, “A partir daqui parece-me evidente
que o seu destino político deixa de estar dependente do sucesso ou insucesso da
presente coligação parlamentar que liga o Partido Socialista ao que de
mais arcaico subsiste no panorama político e ideológico europeu. Aproveito
aliás este ensejo para lamentar os ataques que lhe têm sido movidos, aos quais
não será alheia a circunstância de ser uma mulher.”
Com
efeito, no seu artigo, - “O novo Governo de França” - faz,
Francisco Assis, elogio rasgado a Emmanuel Macron, o novo presidente da República Francesa, pelo seu projecto europeu, com um novo conceito
conciliatório entre esquerda e direita, oposto à rigidez obsoleta que as
separava. E que entre nós, naturalmente, continua, na enfermidade tacanha e
provinciana de protestos grevistas insensatamente destruidores da nação, em
vários níveis.
O novo Governo de França
Pela primeira vez em muito tempo emerge num grande
país europeu uma solução política ousada e corajosa que apresenta como
principal objectivo programático a defesa do projecto europeu.
Público, 18 de Maio de 2017
Francisco Assis
Há
quem diga que os franceses são dados a fazer revoluções pela sua incapacidade
em levar a cabo com sucesso qualquer propósito de tipo reformista. Emmanuel
Macron parece determinado a pôr em causa este ancestral adágio. O mais jovem
presidente da V República Francesa, seguindo a lógica reformista até aos
limites do pensável, acaba de apresentar um governo que rompe com o modelo
de representação partidária instalado e aponta para uma renovação profunda da
vida política francesa. Macron já tinha deixado claro ao longo da campanha eleitoral
que considerava relativamente obsoleta a distinção tradicional entre a esquerda
e a direita e que se propunha agir em função de novas categorias e dicotomias
políticas. Europeísta convicto, a ponto de apresentar como um dos seus
principais propósitos eleitorais a vontade de refundação da União Europeia, e
adepto da necessidade de uma revalorização política do centro, Macron nunca
escondeu a sua pessoal adversidade face aos arquétipos tradicionais da
confrontação política francesa. Isso valeu-lhe a oposição declarada de
todos os extremismos e até mesmo de alguns sectores mais moderados como aqueles
que se podem identificar com o Partido Socialista Francês. A resposta a tais
ataques foi agora dada com a apresentação pública do novo executivo francês.
Este
novo governo,
constituído por homens e mulheres oriundos do centro-esquerda e do
centro-direita, que têm em comum, entre outras coisas, uma forte convicção
europeísta, remete o novo presidente francês simultânea e paradoxalmente para a
génese da V República e para a recordação de alguns dos aspectos essenciais da
IV República. Creio que foi Giscard D’Estaing que afirmou em tempos que
os franceses desejam ser governados ao centro mas não aspiram a ser dirigidos
por centristas. Há nessa afirmação a constatação de um certo cinismo
popular. Macron, tal como aconteceu na IV República, parece querer
reconstituir em seu torno uma maioria moderada, ladeada por forças críticas à
sua esquerda e à sua direita. Na altura essas forças eram constituídas
pelos comunistas, por um lado, e pelos gaulistas, por outro.
Ao mesmo tempo parece querer prosseguir a mitologia gaulista de alguém que se
coloca acima das dicotomias e dos confrontos políticos tradicionais. Apesar
de tudo, entre estas duas perspectivas não existe qualquer tipo de contradição
insanável.
O
governo agora tornado público é de inegável qualidade e dispõe de uma coerência
programática que desafia clivagens doutrinárias manifestamente anquilosadas.
Congregando personalidades oriundas do centro-esquerda e do centro-direita que
partilham uma adesão sem reservas à ideia europeia, o novo presidente francês
procura obter uma nova maioria presidencial com características completamente
diferentes daquelas que ocorreram nos últimos cinquenta anos. Estamos por isso
diante de um verdadeiro terramoto político que não deixará de ter
consequências, sejam elas de que natureza forem, por toda a Europa. A
principal novidade desta solução consiste na subalternização da velha dicotomia
esquerda-direita e na afirmação prevalecente de uma oposição, mais
complexa, entre europeístas e soberanistas, entre adeptos de um modelo de
sociedade economicamente aberta e defensores do protecionismo, entre
apologistas de um reformismo social inovador e prosélitos de um conservadorismo
sócio-corporativo O mérito maior de uma solução política desta natureza
reside precisamente na energia transformadora que a poderá vir a
caracteriza.. O seu principal risco poderá consistir na inexistência
a prazo de uma alternativa verdadeiramente liberal e democrática à mesma. De
uma coisa não há dúvida: pela primeira vez em muito tempo emerge num
grande país europeu uma solução política ousada e corajosa que apresenta como
principal objectivo programático a defesa do projecto europeu. Poder-se-á
dizer que o mesmo já aconteceu na Alemanha, com a grande coligação, e noutros
países onde foram adoptadas soluções governativas fortemente impregnadas de um
sentimento político da mesma natureza. Aqui, contudo, há algo de diferente
e mais arriscado, já que a hipotética nova maioria presidencial contará
desde o início com a oposição beligerante da extrema-direita e
extrema-esquerda francesas.
A
Europa estava a precisar de um abanão com esta amplitude. Que sejam os
franceses a concretizá-lo é algo que não pode deixar de ser devidamente
valorizado. A primeira consequência desta reconfiguração política gaulesa
foi já visível no encontro ocorrido esta semana entre Macron e Merkel. A
Alemanha parece ter percebido, aliás com agrado, que poderá passar a ter na
França um parceiro mais interventivo e exigente, algo que, atendendo à
importância do bom funcionamento do eixo franco-alemão, só pode ser entendido
como uma boa notícia para a Europa. Não terá sido também por acaso que o
governo conservador espanhol tenha vindo já reclamar alterações significativas
no modo de funcionamento da União Económica e Monetária, bem mais próximas de
posições desde há muito assumidas pela família social-democrata do que do
posicionamento habitual da direita europeia. Abrem-se sem dúvida novas
perspectivas para o projecto europeu. O Governo português, liderado por
um europeísta lúcido que proferiu já declarações bastante simpáticas em relação
ao novo presidente francês, pode vir a desempenhar um papel importante no
processo de reconfiguração da União Europeia que agora se inicia.
2. A secretária-geral adjunta do PS,
Ana Catarina Mendes, deu provas de grande coragem quando numa recente
entrevista afirmou peremptoriamente que, se fosse francesa, teria votado
Emmanuel Macron logo na primeira volta das presidenciais. Ao fazer esta declaração,
aquela que é hoje, por mérito próprio, a segunda figura institucionalmente
mais importante do Partido Socialista, afirma um pensamento autónomo e
uma personalidade própria. A partir daqui parece-me evidente que o seu
destino político deixa de estar dependente do sucesso ou insucesso da presente
coligação parlamentar que liga o Partido Socialista ao que de mais arcaico
subsiste no panorama político e ideológico europeu. Aproveito aliás este ensejo
para lamentar os ataques que lhe têm sido movidos, aos quais não será alheia a
circunstância de ser uma mulher.
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