quarta-feira, 7 de junho de 2017

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Figura controversa, a de Donald Trump, que serve para desprezar pelas alarvidades de um discurso romanceado de passadismo e arrogância, para gáudio dos que se julgavam senhores do mundo, desejando recuperá-lo, e bem assim o povo isolado na sua ilha britânica, que dera origem a esses Estados Unidos, e que hoje criou o Brexit, na mesma ambição saudosista de recuperação da sua aura anterior de paz e isolamento insular, fabricador enérgico de mundos e expansor da sua língua. O que sabemos é que o mundo roda, cada vez mais ameaçador, conquanto já no passado se sentissem bem as discrepâncias de um viver inseguro e cruel, a ponto de o nosso Vieira tomar o tema da guerra, num sermão panegírico (de celebração dos anos de D. Maria Francisca Isabel de Sabóia), em jeito teatral embora, mas bem sentido, de quem sofrera na pele as inseguranças de um viver de luta por ideais humanos contrariados:
[…] É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, as cidades, os castelos, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que ou não se padeça ou não se tema, nem bem que seja próprio e seguro: – o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a sua honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro. […]
Sim, é bem um texto impecável de expressão arrumada e poderosa, mas não deixa de ser verdadeira para todo o sempre, e significativa dos trambolhões e desequilíbrios contínuos da História. Estes que surgem agora também um dia passarão. Vamos esperando os seus efeitos, átomos que somos de vidas mais ou menos arrumadas, e assistindo a tanto caos, cá de longe, por enquanto, “olhando para trás de nós e tendo pena”. Eis os artigos de Vasco Pulido Valente, clarividente e conciso, e naturalmente mordaz contra nós, os crentes em milagres, e de João Marques de Almeida, analisando tim-tim por tim-tim a figura, segundo os vários conceitos:

Diário de Vasco Pulido Valente
Donde vem o Donald
OBSERVADOR, 4/6/2017

…hopes expire of a low dishonest decade… (W. H. Auden)
Da CNN à SIC a crítica à política de Trump acabou por se tornar na arte de injuriar e ridicularizar o homem. Isto deve trazer uma grande satisfação à alma dos crentes na “correcção política”, que dia a dia cresce em rigor e fúria. Na América, o jornalismo é agora uma ininterrupta campanha para correr com o execrado Donald da presidência a pretexto das suas putativas ligações à Rússia, que na última quinta-feira Putin pareceu implicitamente confirmar. Estas coisas não me incomodam. O que me incomoda é a completa indiferença pelo que Trump representa na sociedade que o elegeu e na história de que ele é a mais recente consumação. Não basta dizer, como aliás aqui mesmo já disse, que Trump está, na prática, a promover um regresso ao isolacionismo. Convém saber do que se fala para não proclamar asneiras a título de revelações.
A ideia da América dos felizes anos 50, dominante no Ocidente inteiro e domesticamente indiscutível e pacífica, não desapareceu, pelo menos da memória de uma parte considerável da população. O passado recente, da crise cubana ao Vietnam e do 11 de Setembro à invasão do Iraque, fez com que o papel de leader global deixasse de ser tão apetecível ou até necessário depois da queda do império soviético. Com essa mudança de perspectiva e de sentimentos subiram à superfície os conflitos sociais e raciais de um país profundamente dividido e também a nostalgia de um mundo mais fácil e harmónico, que de facto nunca existira. A simplicidade (no mau sentido da palavra) de Trump é a simplicidade desse imaginário paraíso. De qualquer maneira, para muita gente, a presença da América no universo exterior e a promoção dessa presença pelo inimigo interno (os “liberais” do Partido Democrático e os seus companheiros de caminho) contaminam e corrompem a “luminosa cidade da colina” e o esplêndido isolamento original.
Isto explica que Trump não perca o seu apoio dito “duro”, apesar de um comportamento que escandaliza todo o Ocidente “civilizado”, e que persista numa política à superfície absurda e contraproducente, mas no fundo desesperada. A América com que ele sonha e sonha o seu eleitorado não voltará mais. Como de resto a Inglaterra com que sonham os partidários do Brexit. Quanto a Portugal não corre o menor risco de produzir um Trump ou um “trumpismo”, porque não passou por uma idade de ouro de que alguém tenha saudades. A indignação que por aí se manifesta pela política do Donald não passa de fervor religioso.
Trump e Temer
OBSERVADOR, 21/5/2017
Os líderes europeus, apesar da antipatia que sentem contra Trump, estão nervosos com a possibilidade de um impeachment nos Estados Unidos. Sabem que o processo poderia prejudicar a economia europeia.
1. Para uma pessoa de direita e pró-americana, como eu, a presidência de Trump é dolorosa. Demasiado dolorosa. Apesar de todas as explicações, a questão central não desaparece: como foi possível um indivíduo como Donald Trump chegar à Casa Branca? Ao contrário de outros, não acho que Trump seja uma ameaça existencial para a democracia americana. As comparações com o presidente russo, Putin, são disparatadas. Vêm de mundos completamente diferentes. Trump era um empresário do ramo imobiliário. Putin veio dos serviços de inteligência soviéticos. Trump não tem experiência política. Putin está na política russa desde a década de 1990. Trump não entende o mundo nem a tradição da política externa Americana. Putin conhece muito bem as relações internacionais e tem uma estratégia diplomática para a Rússia. Os tiques autoritários de ambos ajudam a criar a confusão. Mas também aqui há diferenças fundamentais. Trump revela o autoritarismo de um “self-made” empresário que detesta ser contrariado, mas preside um país com uma antiga e forte tradição democrática e liberal. Putin é um ditador sem escrúpulos num país sem tradições democráticas e sem instituições fortes.
Trump é no entanto perigoso para os Estados Unidos. Como presidente comporta-se como se ainda estivesse à frente das suas empresas. Rodeia-se de familiares e de amigos e não admite ser contrariado. Confunde os seus interesses empresariais com a presidência do seu país. Não respeita a independência das autoridades judiciais, tem sido incapaz de construir uma relação eficaz com o Congresso, ameaça a independência da Reserva Federal e trata os serviços de informação como se fossem a sua segurança privada. Ainda não consegui notar nada de positivo desde que se mudou para Washington. Trump não goza das competências mínimas para ser presidente dos Estados Unidos. Uma desgraça. Como pergunta o editor da “Bloomberg Businessweek”, “você contrataria Trump para dirigir a sua empresa?” Julgo que, depois de pouco mais de três meses na Casa Branca, ninguém o faria.
Os republicanos estão perante uma escolha entre duas más opções. Se continuam a apoiar Trump, tudo pode acontecer. Internamente, atropelos de todo o tipo às regras fundamentais da democracia americana. Externamente, decisões perigosas para a segurança internacional e prejudiciais para a economia global. A maioria dos republicanos não consegue aceitar o protecionismo comercial de Trump, nem a diplomacia errática em relação à Russia e à China. Quatro anos de Trump podem causar danos muito graves à economia e à diplomacia norte americana. Mas antes disso, Trump pode causar uma derrota ao partido republicano nas eleições de 2018 para o Congresso.
A outra opção, para os republicanos, será apoiar o impeachment contra Trump. Juntar-se aos democratas para depor Trump, seria uma decisão muito difícil para o partido republicano. Mas poderá ser inevitável. As consequências, contudo, serão imprevisíveis, sobretudo para a economia global. Ninguém sabe como reagiriam os mercados a um processo de impedimento contra o presidente americano. Mas pelos sinais que temos e pelas discussões entre as instituições financeiras, os mercados provavelmente reagiriam de um modo negativo. Os líderes europeus, apesar da antipatia que sentem contra Trump, estão nervosos com a possibilidade de um impeachment nos Estados Unidos. Sabem que o processo poderia prejudicar a economia europeia, logo agora que dá sinais de recuperação.
2. A segunda maior democracia do hemisfério ocidental, o Brasil, conhece uma nova grave crise política, depois do impeachment contra Dilma Rousseff há menos de um ano. O novo presidente, Michel Temer, está a ser investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça por actos de corrupção. Temer chegou ao Palácio do Planalto há cerca de dez meses. Dificilmente celebrará um aniversário como presidente. Depois do que aconteceu no final desta semana, Temer parece condenado politicamente. O seu partido, o PMDB, começa a interrogar-se sobre a capacidade de Temer para resistir. O segundo maior partido da coligação, o PSDB, discute o fim do apoio a Temer. Neste momento, tudo indica que os partidos da maioria procuram uma alternativa a Temer. Quando a encontrarem, ele sai. A eleição indirecta de um novo presidente no Congresso será a solução mais provável, por várias razões. A impossibilidade constitucional de realizar eleições directas é a razão mais forte. A realização de eleições presidenciais este ano exige uma emenda constitucional, a qual só poderá ser aprovada com uma maioria qualificada. Neste momento não há uma maioria no Congresso a favor da alteração da Constituição. No meio do maior caso de corrupção da história do Brasil, que afecta todos os partidos, ninguém quer eleições antecipadas.
Uma eleição directa para a presidência do país seria a solução ideal, e ainda poderá ser a única saída para esta crise. A dimensão da crise política e económica pede um presidente com uma forte legitimidade política. Essa legitimidade e essa força só se conseguem com eleições directas. Mas os partidos tudo farão para impedir essa solução. Nem Lula, à frente nas sondagens, pediu eleições antecipadas na sua primeira declaração pública desde que Temer foi acusado. Defendeu, pelo contrário, um processo de impeachment contra Temer. Os partidos brasileiros sabem que, nesta altura, quando nenhum partido escapa às acusações de corrupção, eleições antecipadas os fariam perder o controlo do processo político. Por isso, só o farão se não tiverem alternativa. Com eleições ou sem eleições directas, para bem do Brasil, Temer deveria abandonar a presidência rapidamente.


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