terça-feira, 4 de abril de 2017

Não é preciso sublinhar.



Está tudo certo. E tem um humor muito especial, em estilo característico, feito de sequências, enumerações, argumentos reveladores de sensibilidade e poder de observação, nem é preciso sublinhar, escaldados que andamos com a perpetração de crimes, coisa nunca dantes vista, ou, pelo menos, menos conhecida. A mulher não podia fazer frente, escassa de direitos, educada que era nos princípios machistas. É certo que as mulheres também sabem muito, sempre souberam, espertas que são, e às vezes impõem-se. Nunca me esqueço, por exemplo, do livro de John Erskine, “A vida privada de Helena de Tróia”, que mostra uma Helena regressada de Tróia, depois de ter sido levada para lá por Páris, e conservando o mesmo poder sedutor acrescido de experiência e filosofia de vida que tanto atraía os homens, dos quais o marido Menelau, que, quando ia para a matar pelo seu adultério, ocorrido dez anos antes, ela lhe facilitou o serviço mostrando-lhe os seios irresistíveis, o que enfraqueceu o ímpeto vingador de Menelau, que preferiu desistir da vingança e levá-la de volta ao seu trono de Esparta e ao seu leito conjugal. Mas são casos raros e, para todos os efeitos, as mulheres pertencem ao sexo fraco, em termos de medição de forças ficam a perder, tirante os conhecidos das Medeias míticas que as tramam pela calada, ou as Messalinas históricas, cheias de potencial erótico, e, modernamente, as jovens actrizes de filmes, que aprendem karaté com o actor nipoamericano de pera e olhos cerrados de espiritualidade, Noryyuki, o qual ensina também comportamentos de nobreza, num mundo como devia ser, a rapariga sensível vencendo o rapaz brutal e cobarde. Nós por cá também tivemos a padeira de Aljubarrota e a Maria da Fonte, além da sucessora menos bem sucedida, Catarina Eufêmia, no século passado, mas são casos raros, embora depressa se tivessem tornado simbólicos, o que nos ergue o orgulho, não só o masculino como o feminino, pese embora o fraco nível físico e espiritual das figurantes, universo que melhor nos quadra, em termos de simbologia. E é nesse universo destituído de rigor educativo, que o nosso homem latino se enquadra agora, matando a companheira, tresloucadamente, ou maltratando-a cobardemente, numa demência de frustração, agora que as leis impõem paralelismo de liberdades, que não temos o savoir faire de companheirismo necessário para aceitar.
Leiamos o impecável artigo de António Barreto, literato e humanista comme il faut:

Mulheres batidas
António Barreto
D.N., 2/4/17       -       Sem Emenda
Há termos em voga: assédio sexual e violência doméstica, por exemplo. Nenhum é falso. Mas ambos escondem qualquer coisa: a violência masculina! É sobretudo disso que se trata.
Pode haver estudos e análises. Consultas e exames. Nunca se chegará bem a saber o que leva um homem a espancar a mulher, a bater na mãe, a desancar a namorada, a surrar a amante e a sovar a filha! Mas sobretudo a mulher, a mãe dos seus filhos, a pessoa que se ocupa dele, lhe faz as refeições e trata da casa! Ou simplesmente a pessoa que com ele vive e dorme.
É uma das piores baixezas da humanidade! A violência masculina tem razões estranhas: sexo, ciúme, insegurança, impotência, desconfiança, exibicionismo, ignorância, vingança, álcool, prepotência... Não é de esquerda nem de direita. Não é do Norte, nem do Sul. Não é do crente, nem do ateu. Não é do rico, nem do pobre. Não é do doutor, nem do analfabeto. Não é do inteligente, nem do estúpido. Não é do velho, nem do novo. Não é do português, nem do estrangeiro. Não é do rústico, nem do citadino.
Que animal é este, difícil de compreender, impossível de entender? Podemos recorrer a psicólogos, médicos, psicanalistas, sociólogos, polícias e juristas: nenhum satisfaz a necessidade de compreender.
São anualmente cinco a dez mil mulheres as que, após violência continuada, apresentam queixa. Mas são cinquenta a cem mil as que nunca apresentaram queixa, não se sabe bem porquê, mas suspeita-se com certeza. Por medo e pavor. Por timidez e vergonha. Ou por pobreza e miséria. E são cerca de cinquenta as que, anualmente, já não apresentam queixa, pela simples razão de que foram assassinadas. Isso mesmo, assassinadas! Há homens assim, que assassinam a mãe dos seus filhos! Nem animais!
O homem bate-lhe porque tem ciúmes, porque ela olhou para outro, no restaurante, porque ela sorriu para outro, no emprego, porque ela falou com outro, ao telemóvel, porque ela ouviu as histórias do outro, no autocarro.
Bate-lhe porque o patrão se zangou, porque o chefe o censurou, porque teve má avaliação no emprego e, ao chegar a casa, bateu em quem tinha à mão.
Bate-lhe porque deu uma nega, porque esteve impotente com a amante, porque não conseguiu sair com uma namorada.
Bate-lhe porque ela não obedeceu a uma ordem dele, porque respondeu ou resmungou, porque ela lhe disse que estava cansada, que precisava de dormir ou porque não quis fazer amor com ele.
Bate-lhe porque ela lhe disse que ele bem podia ajudar em casa, com os filhos, com os pais ou os sogros, nas compras, na louça, nos pagamentos e no lixo.
Bate-lhe porque, no golfe, as coisas não correram bem, porque as acções na bolsa baixaram 5% num só dia ou porque o banco exigiu o pagamento da dívida.
Bate-lhe porque bebeu uns copos a mais, porque o seu clube de futebol perdeu e um amigo lhe estragou o carro.
Bate-lhe porque ela lhe disse que ele bebia de mais, que podia passar um pouco menos de tempo diante da televisão, ou no escritório, à noite, ou no café, com os amigos.
Bate-lhe porque é como o Sebastião, que come tudo, tudo, tudo, que come tudo sem colher, que fica todo barrigudo e depois dá pancada na mulher.
Bate-lhe porque o peixe estava queimado e a carne estava crua, porque a mesa não estava posta a horas, porque ele chegou tarde e o jantar estava frio.
Bate-lhe porque ela esteve a ler livros que não devia ler, a ver filmes que não devia ver e a ouvir música que não devia ouvir.
Bate-lhe porque é o seu direito, porque é a sua mulher, para lhe lembrar que quem manda é ele, porque ela não sabe cuidar dos filhos, porque os filhos têm más notas, porque é frustrado e traumatizado, já o pai dele batia na mãe e consta que o avô batia na avó.
Bate-lhe porque ela estava mesmo a pedi-las, com aquela maneira de se vestir e de se comportar diante de toda a gente.
Bate-lhe porque ela disse que se queria separar ou pedir o divórcio.
Bate-lhe porque uns tabefes nunca fizeram mal a ninguém.
Bate-lhe porque ela gosta.
Bate-lhe porque ela está ali.

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