sexta-feira, 7 de abril de 2017

Até o pano descer



Afinal, ao longo da História sempre apareceram figuras soberanas que a ambição e a falta de escrúpulos projectaram na ribalta do poder, mas os avanços técnicos dos últimos séculos tornaram cada vez mais descontroladas as consequências disso, destapada a tampa da panela de pressão em que nos parece viver, hoje com a ajuda do tal “vigarista” a quem possibilitámos a existência dominadora, e que não tem a dimensão intelectual para se aperceber do caos que vai gerar e que há muito existe no pavor das gentes, por um futuro sem continuidade. O retrato de José Pacheco Pereira é magistral, a frase «O seu estilo ajuda a recrutar e ascender gente que faz do bullying um modo de exercer o poder», aplicada a Trump, lhe serve de epígrafe:
Trump não é um epifenómeno
José Pacheco Pereira
DN, 25 de Março de 2017
Trump não é um epifenómeno. Tudo é interessante no “momento” Trump. Quase tudo é perigoso em Trump. Nada vai ficar igual com ele e nada vai ficar igual depois dele. Quase tudo muda com ele. Trump é o mais moderno político hoje em funções numa democracia, mas a modernidade que ele ajuda a revelar é assustadora. É a cor do futuro no presente e, para quem preza a democracia, é a mais suja das cores. Mas está lá, mas está cá.
Ele é o Presidente da “nova ignorância”, sobre a qual escrevi há algum tempo, um misto de troll, de figurante de um reality show especialmente bully, um artista de variedades e um con man, um vigarista. Desculpem tanta palavra em inglês, mas é nessa língua que tem florescido a ecologia que é a de Trump. O seu Twitter é um retrato psicológico do mundo que se encontra hoje nas redes sociais, a mesma incapacidade de separar verdade da mentira, a mesma ignorância presumida e arrogante, o mesmo desprezo pelo saber e pela especialização, o mesmo misto de ameaças e de gabarolice, o mesmo uso paupérrimo da linguagem, com abundância de expletivos e de maiúsculas, que são uma forma de gritar numa mensagem. Só não há erros de ortografia, porque alguém os corrige. A ameaça, a chantagem e a vingança são elementos fundamentais no seu Twitter e, como estamos a falar do homem mais poderoso do mundo (por ironia uma televisão americana fez um documentário sobre Putin, o “homem mais poderoso do mundo”…, mas não é), tem de ser tomado muito a sério.
A questão da verdade, cuja “morte” uma capa da Time anunciava interrogativamente, é também relevante. Alguns media americanos têm falado da “mentira patológica” de Trump, mas a classificação parece-me errada, ao atribuir a uma disfunção aquilo que nele é uma função. Trump, e aqui encontramos mais uma vez o “novo homem” das redes sociais, vive num mundo próprio, egocentrado e torna-se subjectivamente muito poderoso, porque está associado ao seu sucesso – daí a obsessão com ratings, sondagens e audiências – em que vontade e verdade são uma mesma coisa. Daí que as suas mentiras sejam ao mesmo tempo reveladoras do mundo de um homem pouco culto, brutal e propenso às teorias conspirativas, uma forma de política e visão do mundo muito atractiva para os ignorantes e autodidactas, e um instrumento de trabalho, de influência, entre os “seus”. Ao termos de as discutir e desmentir, participamos na sua divulgação e, ao fazê-lo, exercemos o efeito de as “igualizar” na trituradora das redes sociais, onde cada vez mais gente vai buscar a "informação”.
À sua volta, baseado no princípio de que os semelhantes se atraem uns aos outros, está uma falange de “novos ignorantes”, mas não só. O “mas não só” são aqueles que percebem muito bem a enorme oportunidade que podem ter com este homem e com a sua gente, como é o caso de Steve Bannon. Estes são os mais perigosos, têm um plano e têm sabido cumpri-lo. Aquilo que nós consideramos falhas e incompetências são o elemento gerador do caos de que eles necessitam. São os verdadeiros revolucionários que pretendem subverter o sistema democrático, instituir uma série de “novas ordens” no plano cultural, rácico, social e político. Vieram da obscuridade e das margens para o centro do mundo, onde nunca pensaram estar, precisam do conflito como pão para a boca e são homens de guerra. Não são fascistas, como às vezes levianamente são intitulados, mas apresentam um impulso de subversão, uma determinação, uma resiliência sem falhas, que é comum a muitos revolucionários modernos, como os fascistas.
Na sua versão do papel criador do caos, da manipulação do ressentimento, em que são especialistas, e da “educação pela bomba”, são mais parecidos com algum anarquismo niilista. São uma versão intelectual – sim, porque eles são intelectuais – do grupo anarquista do “agente secreto” de Conrad, com todas as ideias perigosas, todas as ligações perigosas e todos os conhecimentos, o know-how perigoso. Não os comparo com os bolcheviques, porque a componente voluntarista e individualista que também existe em Lenine e Trotsky nos anos da Revolução, entre 1917 e 1921, não caracteriza o movimento em si, e o comunismo assenta numa ideia colectiva e numa imagética diferente. No entanto, têm em comum uma filosofia da história teleológica e uma profunda negação do presente, daí serem revolucionários. Uma outra coisa são aqueles que, na sua mais infeliz classificação, Hillary Clinton chamou os “deplorables”, que merecem ser tratados à parte.
Trump não é um democrata, mas um autocrata numa democracia. Como Erdogan e Putin, com quem tem semelhanças na mecânica do uso do poder. Ia a escrever que era um autocrata “numa (ainda) democracia”, mas essa classificação seria injusta para a efectiva resistência quer institucional, quer opinativa, quer social, quer política que tem encontrado e que começa a travá-lo com eficácia. Não vai ser fácil travá-lo de todo nos seus excessos autocráticos, até porque homens como Trump geram uma enorme polarização, um clima de guerra civil e garantem mobilizações de apoiantes muito duras e intransigentes, que até agora têm aceite tudo o que ele faz sem pestanejar. Quando Trump se gabou de que podia matar um homem em plena 5.ª Avenida e continuar a ter o mesmo apoio, por uma vez, disse a verdade, revelando a natureza fanática do apoio que recebe, também pouco natural em democracia. Por isso, ele não foi atingido pelas revelações sucessivas de escândalos e de condutas, para ser eufemístico, pouco apropriadas, nem mesmo no crime mais eficaz em efeitos populistas que é a manipulação fiscal, o esconder das suas declarações de impostos e os seus negócios obscuros.
No entanto, todas estas atitudes e revelações contribuíram para o outro lado da polarização e ajudaram a criar uma linha de intransigência contra Trump, que tem impedido o partido e os políticos democratas de terem qualquer complacência com Trump. Como dizia um comentador televisivo americano, os eleitores do Partido Democrata iam às reuniões locais com os seus representantes eleitos e exigiam-lhes que nem sequer um vago sorriso ou protocolar cumprimento tivessem com Trump, mas ruptura total.
Esta resistência total tem riscos, um dos quais é o cansaço que leva a desistir, mas tem ajudado a travar Trump. Como sempre acontece nos debates sobre a táctica, há quem ache que ela ajuda a estratégia confrontacional de Trump e de Bannon, distrai com os incidentes picarescos e anedóticos, matéria-prima para os cómicos e os engraçadistas, das medidas mais de fundo e mais estruturais do programa de Trump. Muita coisa se está a passar que não chega às primeiras páginas, quase sempre ligadas ao mundo dos negócios predadores que a Administração Trump favorece, ao exemplo do seu próprio negócio. E muitas pequenas perseguições estão a ser feitas por todo o lado, com a disseminação de “comissários políticos” por várias estruturas do poder nacional e local. O estilo de Trump ajuda a recrutar e ascender gente que faz do bullying um modo de exercer o poder, e, como estão muitas vezes bastante isolados, usam e abusam do poder formal que lhes é dado. Em áreas como a polícia, as autoridades de emigração e outras, este processo é bastante perigoso.
Trump é hoje o melhor revelador dos riscos da democracia no contexto do mais poderoso upgrade da demagogia que são as mudanças no sistema mediático, entre as redes sociais, a televisão popular e os tablóides. Ele tem explorado como poucos esse sistema, de que faz parte de forma inteira, cujo pathos conhece como ninguém. Mas, se este novo sistema ajudou a colocar Trump no poder, fê-lo porque milhões de homens na democracia americana, como nas democracias europeias, encontraram aí uma resposta à sua perda e à sua zanga. Perda de modo de vida, de paz, de estabilidade, muitas vezes mais perda simbólica do que económica, em particular perda de futuro, da sensação de que as coisas lhes escapavam, porque, como se lhes dizia, a globalização, as novas tecnologias, a racionalização, a “nova economia” da “inovação”, tudo ia no sentido de os desempregar e de os empobrecer, de lhes tirar a casa e a segurança nas ruas. Também por isto, Trump não é um epifenómeno.

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