Afinal, ao longo da História
sempre apareceram figuras soberanas que a ambição e a falta de escrúpulos
projectaram na ribalta do poder, mas os avanços técnicos dos últimos séculos
tornaram cada vez mais descontroladas as consequências disso, destapada a tampa
da panela de pressão em que nos parece viver, hoje com a ajuda do tal
“vigarista” a quem possibilitámos a existência dominadora, e que não tem a
dimensão intelectual para se aperceber do caos que vai gerar e que há muito
existe no pavor das gentes, por um futuro sem continuidade. O retrato de José
Pacheco Pereira é magistral, a frase «O seu
estilo ajuda a recrutar e ascender gente que faz do bullying um modo de exercer
o poder», aplicada a Trump, lhe serve de epígrafe:
Trump não é um epifenómeno
José
Pacheco Pereira
DN, 25 de Março de 2017
Trump não é um epifenómeno. Tudo é interessante no
“momento” Trump. Quase tudo é perigoso em Trump. Nada vai ficar igual com ele e
nada vai ficar igual depois dele. Quase tudo muda com ele. Trump é o mais
moderno político hoje em funções numa democracia, mas a modernidade que ele
ajuda a revelar é assustadora. É a cor do futuro no presente e, para quem preza
a democracia, é a mais suja das cores. Mas está lá, mas está cá.
Ele é o Presidente da “nova ignorância”, sobre a
qual escrevi há algum tempo, um misto de troll, de figurante de um reality show especialmente
bully, um artista de variedades e um con man, um vigarista. Desculpem tanta palavra em inglês, mas é nessa língua
que tem florescido a ecologia que é a de Trump. O seu Twitter é um retrato
psicológico do mundo que se encontra hoje nas redes sociais, a mesma
incapacidade de separar verdade da mentira, a mesma ignorância presumida e
arrogante, o mesmo desprezo pelo saber e pela especialização, o mesmo misto de
ameaças e de gabarolice, o mesmo uso paupérrimo da linguagem, com abundância de
expletivos e de maiúsculas, que são uma forma de gritar numa mensagem. Só não
há erros de ortografia, porque alguém os corrige. A ameaça, a chantagem e a
vingança são elementos fundamentais no seu Twitter e, como estamos a falar do
homem mais poderoso do mundo (por ironia uma televisão americana fez um
documentário sobre Putin, o “homem mais poderoso do mundo”…, mas não é), tem de
ser tomado muito a sério.
A
questão da verdade, cuja “morte” uma capa da Time anunciava interrogativamente,
é também relevante. Alguns media americanos têm falado da “mentira
patológica” de Trump, mas a classificação parece-me errada, ao atribuir
a uma disfunção aquilo que nele é uma função. Trump, e aqui encontramos
mais uma vez o “novo homem” das redes sociais, vive num mundo próprio,
egocentrado e torna-se subjectivamente muito poderoso, porque está associado ao
seu sucesso – daí a obsessão com ratings, sondagens e audiências – em que
vontade e verdade são uma mesma coisa. Daí que as suas mentiras sejam ao
mesmo tempo reveladoras do mundo de um homem pouco culto, brutal e propenso às
teorias conspirativas, uma forma de política e visão do mundo muito atractiva
para os ignorantes e autodidactas, e um instrumento de trabalho, de influência,
entre os “seus”. Ao termos de as discutir e desmentir, participamos na sua
divulgação e, ao fazê-lo, exercemos o efeito de as “igualizar” na trituradora
das redes sociais, onde cada vez mais gente vai buscar a "informação”.
À
sua volta, baseado no princípio de que os semelhantes se atraem uns aos outros,
está uma falange de “novos ignorantes”, mas não só. O “mas não
só” são aqueles que percebem muito bem a enorme oportunidade que podem ter com
este homem e com a sua gente, como é o caso de Steve Bannon. Estes são os mais
perigosos, têm um plano e têm sabido cumpri-lo. Aquilo que nós consideramos
falhas e incompetências são o elemento gerador do caos de que eles necessitam. São os verdadeiros revolucionários que pretendem
subverter o sistema democrático, instituir uma série de “novas ordens” no plano
cultural, rácico, social e político. Vieram da obscuridade e das margens para o
centro do mundo, onde nunca pensaram estar, precisam do conflito como pão
para a boca e são homens de guerra. Não são fascistas, como às vezes
levianamente são intitulados, mas apresentam um impulso de subversão, uma
determinação, uma resiliência sem falhas, que é comum a muitos revolucionários
modernos, como os fascistas.
Na
sua versão do papel criador do caos, da manipulação do ressentimento, em que
são especialistas, e da “educação pela bomba”, são mais parecidos com algum
anarquismo niilista. São uma versão intelectual – sim, porque eles são
intelectuais – do grupo anarquista do “agente secreto” de Conrad, com todas as
ideias perigosas, todas as ligações perigosas e todos os conhecimentos, o
know-how perigoso. Não os comparo com os bolcheviques, porque a
componente voluntarista e individualista que também existe em Lenine e Trotsky
nos anos da Revolução, entre 1917 e 1921, não caracteriza o movimento em si, e
o comunismo assenta numa ideia colectiva e numa imagética diferente. No entanto, têm em comum uma filosofia da história
teleológica e uma profunda negação do presente, daí serem revolucionários. Uma
outra coisa são aqueles que, na sua mais infeliz classificação, Hillary Clinton
chamou os “deplorables”, que merecem ser tratados à parte.
Trump
não é um democrata, mas um autocrata numa democracia. Como Erdogan e
Putin, com quem tem semelhanças na mecânica do uso do poder. Ia a escrever que
era um autocrata “numa (ainda) democracia”, mas essa classificação seria
injusta para a efectiva resistência quer institucional, quer opinativa, quer
social, quer política que tem encontrado e que começa a travá-lo com eficácia.
Não vai ser fácil travá-lo de todo nos seus excessos autocráticos, até porque
homens como Trump geram uma enorme polarização, um clima de guerra civil e
garantem mobilizações de apoiantes muito duras e intransigentes, que até agora
têm aceite tudo o que ele faz sem pestanejar. Quando Trump se gabou de que
podia matar um homem em plena 5.ª Avenida e continuar a ter o mesmo apoio, por
uma vez, disse a verdade, revelando a natureza fanática do apoio que recebe,
também pouco natural em democracia. Por isso, ele não foi atingido pelas
revelações sucessivas de escândalos e de condutas, para ser eufemístico, pouco
apropriadas, nem mesmo no crime mais eficaz em efeitos populistas que é a
manipulação fiscal, o esconder das suas declarações de impostos e os seus
negócios obscuros.
No entanto, todas estas atitudes e revelações contribuíram
para o outro lado da polarização e ajudaram a criar uma linha de intransigência
contra Trump, que tem impedido o partido e os políticos democratas de terem
qualquer complacência com Trump. Como dizia um comentador televisivo americano,
os eleitores do Partido Democrata iam às reuniões locais com os seus
representantes eleitos e exigiam-lhes que nem sequer um vago sorriso ou
protocolar cumprimento tivessem com Trump, mas ruptura total.
Esta
resistência total tem riscos, um dos quais é o cansaço que leva a desistir, mas
tem ajudado a travar Trump. Como sempre acontece nos debates sobre a táctica,
há quem ache que ela ajuda a estratégia confrontacional de Trump e de Bannon,
distrai com os incidentes picarescos e anedóticos, matéria-prima para os cómicos
e os engraçadistas, das medidas mais de fundo e mais estruturais do programa de
Trump. Muita coisa se está a passar que não chega às primeiras páginas, quase
sempre ligadas ao mundo dos negócios predadores que a Administração
Trump favorece, ao exemplo do seu próprio negócio. E muitas pequenas
perseguições estão a ser feitas por todo o lado, com a disseminação de
“comissários políticos” por várias estruturas do poder nacional e local. O estilo de Trump ajuda a recrutar e ascender gente
que faz do bullying um modo de exercer o poder, e, como estão muitas vezes
bastante isolados, usam e abusam do poder formal que lhes é dado. Em áreas como
a polícia, as autoridades de emigração e outras, este processo é bastante
perigoso.
Trump é hoje o melhor revelador dos riscos da
democracia no contexto do mais poderoso upgrade da demagogia
que são as mudanças no sistema mediático, entre as redes sociais, a televisão
popular e os tablóides. Ele tem explorado como poucos esse sistema, de que faz
parte de forma inteira, cujo pathos conhece como ninguém.
Mas, se este novo sistema ajudou a colocar Trump no poder, fê-lo porque milhões
de homens na democracia americana, como nas democracias europeias, encontraram
aí uma resposta à sua perda e à sua zanga. Perda de modo de vida, de paz, de
estabilidade, muitas vezes mais perda simbólica do que económica, em particular
perda de futuro, da sensação de que as coisas lhes escapavam, porque, como se
lhes dizia, a globalização, as novas tecnologias, a racionalização, a “nova
economia” da “inovação”, tudo ia no sentido de os desempregar e de os
empobrecer, de lhes tirar a casa e a segurança nas ruas. Também por isto, Trump
não é um epifenómeno.
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