E reclamamos sempre, sem nos lembrarmos de que,
com a explosão demográfica, se não conseguirmos converter as águas salgadas, ou
mesmo as dos charcos em águas potáveis,
em breve secaremos todos, em aridez definitiva, esgotada essa fonte de vida
imprescindível. Vale a pena meditarmos no texto que segue, vale a pena nós
próprios fazermos a gestão da água nas nossas casas, não por receio da factura,
mas por respeito pela água que nos chega comodamente por canos, permitindo um
esbanjamento criminoso, de imprudência e egoísmo. Não era assim dantes no tempo
da cantarinha nas aldeias, ou do aguadeiro nas cidades. Os tempos e os
costumes! Leiamos o texto de pessoas que sabem:
O retrocesso da gestão dos
recursos hídricos portugueses
O país tem recentemente
vivido num grande alheamento, parecendo estar-se a recuar 30 anos. Isso é
surpreendente, porquanto as leis da Água e da Titularidade dos Recursos
Hídricos de 2005 tinham criado um sistema de gestão moderno e eficaz.
Público, 22 de Março de 2017
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O debate
que tem vindo a público na comunicação social sobre a descentralização e a
transferência de competências para as autarquias locais e CCDR [Comissão de
Coordenação e Desenvolvimento Regional], veio chamar a atenção para uma
surpreendente quase total omissão de referência aos recursos hídricos
portugueses, apesar da enorme relevância destes para o desenvolvimento do país.
A
importância dos recursos hídricos é ímpar dados o seu caráter transversal
relativamente a todos os setores económicos e a sua relevância para a qualidade
de vida dos cidadãos, factos cada vez mais reconhecidos a nível internacional
onde se assiste a um multiplicar de iniciativas que valorizam a gestão da água
como recurso primordial. O tema da “Segurança Hídrica” está na ordem do dia e a
sua importância é realçada pelas preocupações relativas às alterações
climáticas. Neste contexto, assume particular destaque o chamado nexus
“água-energia-alimentação” e é dada atenção crescente aos fenómenos extremos,
como as cheias e secas.
E em
Portugal o que se passa? O país tem recentemente vivido num grande alheamento,
parecendo estar-se a recuar 30 anos na forma como as questões dos recursos
hídricos são abordadas. Isso é surpreendente, porquanto as Leis da
Água e da Titularidade dos Recursos Hídricos de 2005, aprovadas na Assembleia
da República por uma muito larga maioria, em conjunto com vários Decretos-Lei
que as regulamentam, publicados até 2009, tinham criado um sistema de gestão
moderno e eficaz. Esse sistema era composto por uma Autoridade Nacional da
Água (INAG), e por cinco Administrações de Região Hídrográfica (ARHs) dotadas
de autonomia administrativa e financeira. Estava previsto também um
papel destacado para as Associações de Utilizadores (incluindo as Associações
de Regantes), num quadro de descentralização contratualizada de competências, e
a formulação de soluções ajustadas aos Empreendimentos de Fins Múltiplos. A
Taxa de Recursos Hídricos foi racionalizada e colocada integralmente ao serviço
do setor no recentemente extinto Fundo de Proteção dos Recursos Hídricos,
dando-lhe capacidade financeira, permitindo a sua sustentabilidade, e assegurando
assim a satisfação das exigências da Diretiva-Quadro da Água. O regime de
acesso ao domínio público hídrico foi completamente revisto e desburocratizado
com a criação ou consolidação das figuras da concessão, da licença e da
autorização por mera comunicação do uso.
Todas
estas reformas foram o corolário da atenção dada em Portugal desde a década de
70 do século passado aos problemas dos recursos hídricos e da sua gestão. No
entanto, de forma algo surpreendente, desde 2011 foi assumida uma perspetiva
retrógrada de subalternização desta temática, claramente em contraciclo com as
tendências internacionais. A referida legislação foi truncada e revista de
forma fragmentada e questionável, as cinco ARHs e o INAG foram extintos e, de
forma menorizadora, integrados na Agência Portuguesa do Ambiente. Entretanto a
Taxa de Recursos Hídricos perdeu a consignação à temática da água e, portanto,
a sua natureza sinalagmática, própria de qualquer taxa.
As estruturas
criadas pela Lei da Água entre 2005 e 2009 funcionaram em pleno, apenas durante
cerca de dois anos. Não obstante, nesse curto período atuaram
de forma eficiente e granjearam o respeito e a confiança dos stakeholders,
nomeadamente Câmaras Municipais e Associações de Regantes. As razões falsamente
evocadas para a sua extinção e subalternização foram de índole financeira,
quando, afinal, elas tinham sido desenhadas para ser largamente
autossuficientes.
Em suma,
foi dado um gigantesco passo atrás com o desmantelamento e descaracterização do
sistema institucional, o que, entre outros aspetos negativos, tem levado a uma
destruição de capacidade de pensamento e ação, a uma generalizada desmotivação
dos quadros técnicos do Estado com formação específica nestas áreas e a uma
saída de muitos desses quadros. Este retrocesso coloca-nos também numa
posição de menoridade face a Espanha onde a gestão por bacias é feita pelas
Confederações Hidrográficas que, no dia a dia, deixaram de ter interlocutor
equivalente do lado português. Esta situação é particularmente grave,
tendo em conta que 50% dos recursos hídricos superficiais em Portugal são
afluentes do país vizinho e que 2/3 do país estão inseridos em bacias
transfronteiriças.
É
consensual a nível internacional que a água deve ser gerida com base nas bacias
hidrográficas sempre que estas tenham expressão territorial significativa. Por
isso, a Diretiva-Quadro europeia aponta muito claramente nesse sentido, embora
não o imponha taxativamente porque em alguns países, ao contrário do que
acontece na Península Ibérica, a fisiografia dominante pode conduzir a outras
soluções. Existe sempre, porém, a preocupação de fazer prevalecer uma gestão
integrada por bacias hidrográficas, enquanto quadro natural para a gestão dos
recursos hídricos.
Qualquer
ideia de que essa gestão contraria um processo de regionalização não faz
qualquer sentido e é desmentida de forma eloquente por países como, por
exemplo, a Espanha ou o Brasil em que, apesar do grande peso político das
Autonomias ou dos Estados, prevalece claramente o primado da bacia hidrográfica.
A questão não consiste, de forma alguma, em retirar essa competência às
regiões, mas antes em encontrar a forma como os poderes regionais de natureza
político-administrativa participam na gestão dos recursos
hídricos.
Por isso,
qualquer hipótese de transferir as ARHs para as CCDRs é contraproducente e será
sempre fonte de problemas e de aumento potencial de conflitualidade. Desde
logo, as áreas das regiões-plano não coincidem com as áreas das bacias
hidrográficas, sendo Lisboa e Vale do Tejo um caso particularmente expressivo
dessa dissemelhança. Que as CCDRs e os municípios tenham uma importante palavra
a dizer, é óbvio e indispensável. Que a gestão das bacias seja repartida por
várias CCDRs, quebrando a lógica da unidade de gestão, é um enorme passo atrás
que a ninguém traz benefícios, nem mesmo aos municípios ou às CCDRs.
Assim, é
necessário e urgente assegurar o restabelecimento de uma entidade a nível
nacional, que desempenhe as funções de Autoridade Nacional da Água e que trate
de forma especializada das diversas e complexas temáticas da gestão dos
recursos hídricos. Igualmente necessário e urgente é
restituir às cinco ARHs o estatuto de dignidade que lhes conferia a Lei da Água
de 2005, por forma a que possa ser assegurada uma estreita articulação com as
autarquias e outras entidades de âmbito regional, contando também com a
participação ativa dos stakeholders. Só assim se poderá garantir a
plenitude dos benefícios que o património hídrico nacional pode e deve
proporcionar ao nosso país e aos seus cidadãos.
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