O triunfo da vontade
OBSERVADOR, 11/3/2017
A
cada mentira, segue-se a impunidade, a cada impunidade segue-se um novo avanço
no controlo de um país apático. A “tenebrosa máquina de propaganda” não é
particularmente sofisticada. Mas é suficiente
Há
dois ou três anos, os ataques à liberdade de expressão ainda implicavam
considerável logística: reunir uma quadrilha, enviar a quadrilha a eventos
alheios à moral vigente, fazer a quadrilha cantar a “Grândola” até calar o
orador/blasfemo em questão. Agora, os ventos que sopram favorecem uma
espécie de Simplex da censura e o processo simplificou-se imenso: basta pedir.
Já
toda a gente sabe que a direcção da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova cancelou uma conferência de Jaime Nogueira Pinto por
exigência da associação de estudantes. Não importa que a conferência tenha sido
organizada por uma entidade, a Nova Portugalidade, que pelos vistos venera
ditadores de Salazar a Chávez. Nem importa que a associação de estudantes,
cheiinha de meninos do BE, apenas venere alguns dos ditadores inventariados e
abomine os restantes. Importa que a proibição tenha vingado, e que um espaço
teoricamente plural seja sequestrado por semi-analfabetos com pulsões
totalitárias. A designação do estabelecimento já não prometia nada de
especial (nas “ciências sociais” cabe justamente tudo o que não é científico).
Os acontecimentos referidos demonstram o estado do ensino e as esperanças
suscitadas pela “geração mais bem preparada de sempre”.
Além
disso, dizem-nos umas coisas sobre o país em geral e as forças “democráticas”
que o assaltam. Principalmente quando estas não dizem nada: boa parte do PS,
o BE em peso e o PCP quase inteiro dedicaram ao acto de delinquência um
interessante silêncio. A excepção veio do deputado comunista Miguel Tiago,
que proclamou no Twitter: “Uma democracia que tolera fascistas é suicida. Uma
que os promove é falsa.” Se não estou em erro, o deputado Miguel Tiago é o
sujeito que na semana passada ameaçou retirar o emprego à presidente do
Conselho de Finanças Públicas. Esta semana está carregado de razão.
Apesar
das advertências constitucionais, Portugal tolera e promove o fascismo com
vasta irresponsabilidade. O à-vontade do deputado Miguel Tiago é um
exemplo. Outros exemplos não faltam. Os fascistas promovem palestras
anti-semitas sem arriscar o cancelamento por direcções zelosas. Os fascistas
organizam festas em louvor de despotismos sortidos sem risco de verem os
trabalhos sabotados com cantorias ou bastonadas. Os fascistas passeiam os
respectivos símbolos na rua sem inspirarem um reles insulto ou uma sova das
antigas. Os fascistas concorrem a eleições com programas criminosos e a bênção
dos “media”. Os fascistas desfilam nos “media” e infestam as “redes sociais”.
Os fascistas infiltram os sindicatos e as “causas”. Os fascistas ocupam uma
percentagem significativa do Parlamento, onde subscrevem os genocídios de
Estaline. Os fascistas influenciam decisivamente o governo.
Durante
anos, acreditei nas virtudes do ecumenismo partidário. Na minha ingenuidade,
imaginei-nos civilizados o bastante para reduzir “naturalmente” ao devido e
ínfimo lugar as ideologias do ódio e do sangue. É escusado notar que me
enganei. A tolerância para com o fascismo sufoca a democracia, a sua
promoção impõe o tipo de regime que começa a espreitar.
Nestes
tempos tristes, acho que acharia graça a que os democratas que sobram por aí
aplicassem aos fascistas o tratamento que os fascistas prescrevem. Não teria
preço assistir à interrupção das gémeas Mortágua através de uma cantata de
Bach, ou à troca da t-shirt do “Che” por uma estadia em campo de reeducação.
Mas também não teria grande utilidade. Por dois motivos. O primeiro prende-se
com o número: duvido que a maioria dos portugueses preze a liberdade a ponto de
valer a pena defendê-la. O segundo prende-se com o método: é fundamental não
descer ao nível dessa gente. A bem da higiene, às vezes no sentido comum do
termo, há que manter a distância. Por mim, procuro aumentá-la a cada dia. Se os
fascistas desejam assim tanto o país, os fascistas que fiquem com ele. É, de
certo modo, o fim do país? Não é o fim do mundo.
1. Pela LER, Lei da Ética
Republicana, 89,6% das falcatruas ou similares realizadas em Portugal com aval
partidário conduzem direitinhas ao PS. Por isso, foi com naturalidade que a
monstruosa “fuga” de capitais para os offshores, um “escândalo” que comprometia
dramaticamente o governo anterior, afinal dizia sobretudo respeito a casos sucedidos
durante o governo actual. Felizmente, também existe a LORPAS, Lei da Ocultação
Republicana de Pelintragens Atribuíveis a Socialistas, a qual, como o nome
indica, transforma os escândalos em histórias sem importância logo que o PS
aparece neles.
Num
ápice, os “paraísos fiscais” que, a fim de anularem os saques na CGD,
alimentaram manchetes bombásticas e editoriais inconformados, quase
desapareceram dos noticiários. A CGD desaparecera antes. Hoje, o grande
desígnio nacional é anular a dra. Teodora Cardoso, além de sugerir o vil
desempenho do governador do Banco de Portugal, de modo a controlar o dito.
Amanhã, a indignação será outra, sem que as indignações prévias sejam
justificadas ou resolvidas. A cada mentira, segue-se a impunidade, e a cada
impunidade segue-se um novo avanço no controlo de um país genericamente
apático. A “tenebrosa máquina de propaganda” para que o prof. Cavaco avisou
não é particularmente sofisticada. Mas é suficiente.
2. Votei em Marcelo contra Sampaio da Nóvoa. Hoje, começo a acreditar que a candidatura do segundo foi um estratagema para eleger o primeiro. Se não foi, parece, dada a “cooperação exemplar”, ou os excessos a que o PR chega para legitimar as patranhas que o governo conta enquanto lança o país para o abismo, económico e não só. Na perspectiva do PR, trata-se de ler as sondagens e, entre abundante folclore, garantir a sua popularidade à esquerda e à “direita”, método cuja eficácia está por apurar. Na perspectiva do país, é qualquer coisa de muito mais sinistro. Há nomes, e nomes feios, para definir o modo como uma pessoa colabora na ruína de muitos para acautelar a própria pele. A questão é se, um ano depois da tomada de posse, estou arrependido de ter votado em Marcelo. A palavra é apavorado.
2. Votei em Marcelo contra Sampaio da Nóvoa. Hoje, começo a acreditar que a candidatura do segundo foi um estratagema para eleger o primeiro. Se não foi, parece, dada a “cooperação exemplar”, ou os excessos a que o PR chega para legitimar as patranhas que o governo conta enquanto lança o país para o abismo, económico e não só. Na perspectiva do PR, trata-se de ler as sondagens e, entre abundante folclore, garantir a sua popularidade à esquerda e à “direita”, método cuja eficácia está por apurar. Na perspectiva do país, é qualquer coisa de muito mais sinistro. Há nomes, e nomes feios, para definir o modo como uma pessoa colabora na ruína de muitos para acautelar a própria pele. A questão é se, um ano depois da tomada de posse, estou arrependido de ter votado em Marcelo. A palavra é apavorado.
2º: A perigosa força
domesticadora da era de Costa
OBSERVADOR, 9/3/2017
Ter
derrubado o muro que impedia a participação dos partidos de esquerda na
governação só será uma vitória se Costa não arrastar todos os outros poderes
que impedem o exercício do poder sem escrutínio
A
aliança inédita à esquerda alterou profundamente o equilíbrio da democracia
portuguesa. O PCP e o Bloco abandonaram o seu papel de guardiões e as poucas
instituições independentes que temos estão a ser alvo de um ataque. António
Costa tem um poder que nenhum outro primeiro-ministro teve. E por isso estamos
em risco de perder as forças que controlam as tentações do poder.
As
ruas estão limpas de manifestações, as greves dos transportes e da função
pública desapareceram, o Tribunal Constitucional só teve de se preocupar, até
agora, com as declarações de património da fugaz ex-administração da CGD, os
senadores que fazem opinião na reforma estão na sua maioria menos críticos e as
relações entre Belém e São Bento dificilmente poderiam ser melhores. Parece
que Portugal vive o seu melhor período de paz social das últimas quatro
décadas, tal como o seu défice é “o mais baixo” desde o 25 de Abril.
Parece.
Porque, por baixo desta, paz assistimos à acumulação de tensões e a um
crescendo de atitudes de intolerância contra os que se atrevem a criticar a
política económica e financeira ou, ainda mais corajoso, contra os que vão
contra o pensamento dominante – com alguma dessa intolerância a disseminar-se
nas redes sociais, a coberto do anonimato. Paralelamente, estão a ser reabertas
feridas, que se pensavam saradas, e que, no passado, só não tiveram
consequências graves para Portugal graças a Mário Soares.
As
tentativas de interferência e as violentas criticas a entidades independentes
como o Banco de Portugal e o Conselho das Finanças Públicas, não sendo
monopólio deste Governo mas sendo hoje mais perigoso, são dois exemplos
recentes, no domínio económico-financeiro, dessa incapacidade do Governo de
aceitar limites ao seu poder ou simplesmente alertas para os riscos das
políticas que está a aplicar. E o também recente episódio de censura, da
conferência de Jaime Nogueira Pinto na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
(FCSH), mostrou o espaço que está a ganhar quem desrespeita os princípios da
democracia e da liberdade de opinião. Um episódio que, sendo grave em si, é
ainda mais assustador por acontecer numa universidade onde é suposto tudo se
poder dizer para tudo se poder analisar, estudar e criticar.
3º: Debate Quinzenal
O debate político rasteiro e
mal-criado não foi um acidente. Foi deliberado
OBSERVADOR8/3/2017
A
má-criação e os insultos que minam os debates quinzenais não existiam quando
Passos era primeiro-ministro e Seguro líder da oposição. Hoje são regra por
corresponderem às escolhas políticas de Costa
Os
debates quinzenais têm vindo a degradar-se progressivamente. Na minha
perspectiva, irreversivelmente. Porque aquilo que aconteceu no debate desta semana, com
troca de acusações e insultos e recurso a inusitadas “defesas da honra” não é
fruto de uma crispação momentânea, antes corresponde a escolhas políticas e
sinaliza tempos novos que não são, nem serão, agradáveis de viver.
Comecemos
pelo princípio e sejamos claros: na degradação do nível do debate parlamentar
não têm todos a mesma responsabilidade.
Primeiro,
porque o que aconteceu nesta quarta-feira está directamente relacionado com o
que aconteceu há duas semanas, altura em que o primeiro-ministro, mesmo no fim
do debate e numa altura que não admitia réplica, fez uma insinuação rasca e uma
acusação demagógica. Já escrevi sobre esse episódio, considerando que nessa
ocasião António Costa se empenhara em retirar à esquerda radical o exclusivo do
discurso extremista, adoptando um registo populista e fazendo
acusações veladas sobre o caso das offshores que, afinal, se viraram contra ele
próprio (a maior parte do dinheiro não registado nas estatísticas era referida
em relatórios que só foram entregues à Autoridade Fiscal já Costa era
primeiro-ministro). O primeiro a enlamear o debate foi o primeiro-ministro e
líder de um partido que, como escrevi na altura, devia ter mais cuidado –
como de resto se viu – quando atira lama para o ventilador.
Depois,
porque a degradação do debate parlamentar a que temos assistido não é apenas a
continuação de um longo processo, antes representa um regresso a um passado
muito concreto: ao estilo dominante sempre que, no lugar onde hoje se senta
António Costa, se sentava José Sócrates. A tática de nunca responder às
perguntas da oposição e de estar sempre a atacá-las quando o debate devia ser
um momento de prestação de contas por parte do Governo foi uma constante no
consulado socrático (tão constante que, sabemos agora pela autobiografia de Cavaco
Silva, chegou a ser tema em algumas das reuniões de quinta-feira entre PM e
PR).
Quem
acompanha há algum tempo e com atenção o que se vai passando no Parlamento
recorda-se que, quando a maioria mudou e foi Passos Coelho que se sentou na
cadeira de primeiro-ministro, o tom alterou-se. O então líder da oposição,
António José Seguro (a quem se deve, registe-se a iniciativa de tornar
obrigatórios estes debates quinzenais), foi muitas vezes duro e incisivo nas
suas perguntas, o país até passava por uma crise complexa e muito sofrimento, mas
o radicalismo verbal ficava, regra geral, por conta da bancada de Catarina
Martins (o PCP, justiça lhe seja feita, sempre foi mais respeitador das regras
do decoro parlamentar).
Dos
seis protagonistas destes debates (se incluirmos Os Verdes), quatro
continuam na Assembleia: Passos Coelho, Jerónimo de Sousa, Heloísa
Apolónia e Catarina Martins. Dois são novos: Assunção Cristas substituiu
Paulo Portas, mas não foi seguramente desse lado que chegou o registo mais
abrasivo. Este é todo da responsabilidade daquele que foi durante muito tempo o
número dois de José Sócrates (e que nessa condição, recorde-se, nunca viu nada,
nunca soube de nada, nunca encontrou nada de estranho na actuação do antigo
primeiro-ministro…). Os debates voltaram a estar hoje mais azedos porque
essa é a escolha de quem lidera o PS – e não o digo apenas a pensar nas táticas
parlamentares de António Costa, na forma como foge às perguntas para depois
reagir com caneladas numa altura em que as oposições já não têm direito de
réplica. Digo-o recordando todas as escolhas que os socialistas foram fazendo e
que traduzem, também na frente parlamentar, o seu novo radicalismo.
Basta recordar, por exemplo, que quando o governo
minoritário (e condenado) de Passos Coelho levou o seu programa ao Parlamento,
quem Costa escolheu para abrir a ronda de perguntas ao então primeiro-ministro
foi Pedro Nuno Santos, aquele socialista (agora ministro) agora encarregue de
tratar das negociações à esquerda e que, na anterior legislatura, sempre que
intervinha era para defender ideias mais próximas das do Bloco de Esquerda do
que das do seu próprio partido.
Ou
lembrar como Ferro Rodrigues, escolhido por Costa para liderar a bancada
depois da sua chegada à liderança, logo tratou de imprimir um rumo e um estilo à
intervenção parlamentar dos socialistas que me levou a escrever (em Outubro de
2014) que não iria haver, nos próximos tempos, compromissos políticos do PS
com os partidos à sua direita que não passassem por estes antes se renderem às
suas posições. É esse mesmo Ferro Rodrigues, promovido a presidente da AR, que
agora diz que a direita tem de se habituar “às novas regras”
no Parlamento, como se essas regras tivessem mudado, como se o respeito por
regras que não mudam de acordo com a vontade de maiorias transitórias não fosse
a condição principal para o regular funcionamento da democracia e, nesta, da
sua casa dos eleitores que é o Parlamento.
Se
olharmos mais de perto para a evolução do radicalismo verbal do PS sob a
direcção de António Costa constatamos que ela obedece a uma viragem que não
devemos tomar por conjuntural, pois integra-se num movimento de fundo mais
profundo e que pode ter consequências mais inquietantes.
A
evolução conjuntural é a que reconduziu o PS à agressividade dos tempos de José
Sócrates (de quem, também é bom lembrar, o actual líder da bancada socialista,
assim como o porta-voz do partido, foram paladinos até para lá da última hora).
Traduz, como já defendi, o regresso às mesmas raízes
jacobinas dos republicanos de Afonso Costa durante a I República e à sua forma
de impor uma hegemonia criando linhas “intangíveis” que ninguém está autorizado
a tocar a não ser o PS. Nos dias que correm essas linhas são as que os
socialistas reivindicam terem sido definidas pelos diferentes “pais” do nosso
regime e de que são eternos e incontestados intérpretes.
Mais:
esta evolução insere-se num movimento de fundo para que alertei há quase
cinco anos, no verão de 2012. Escrevi então que algumas
discussões tribais que então cruzavam o espaço público não podiam ser ignoradas
pois coincidiam e reforçavam “a tentativa de refazer o espaço da esquerda
não de acordo com os pergaminhos democráticos e reformistas do Partido
Socialista, mas antes no molde jacobino e absolutista da esquerda radical”.
Mal
sabia eu até que ponto estava a ser premonitório. Mas sabia eu como aquilo que
estão já me preocupava – estarmos a criar uma espécie de campo de ruínas onde
os restos dos consensos políticos soçobram face a “barreiras de intolerância
alimentadas por uma acrimónia irrestrita” – teve neste debate semanal uma tão
eloquente ilustração.
E
o pior é que, neste campo de ruínas, não é apenas o prestígio das instituições
que sai beliscado, como cinicamente referiu no Parlamento um das habituais
incendiárias, Catarina Martins. O pior é que este clima de crispação pode
transmitir-se gradualmente ao tecido social, havendo já disso indícios nas
redes sociais que, em Portugal, não são mais civilizadas do que nos Estados
Unidos. Nem mais tolerantes.
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