terça-feira, 14 de março de 2017

«Tempos Modernos»



Também já fui assediada. E o meu pai, que já morreu há 38 anos, continua a sê-lo, requisitado pelos diligentes serviços das empresas, porque o nome dele figura ainda, provavelmente, nas listas telefónicas, embora estas, felizmente, tenham desaparecido da circulação, a era digital incompatível com tanto desperdício de papel que representava a publicação dessas listas renovadas anualmente, creio que para utilidade pública também. Mas não havia necessidade.
Compreendo a indignação de António Barreto a respeito dos serviços que, como são de utilidade pública, aparentemente pretendem satisfazer as necessidades de cada um. Mas perde-se tempos infinitos a ouvir a “Primavera” de Verdi, que de tempos a tempos pára para retomar fôlego, indefinidamente na mesma estação aliciante, independentemente da estação do ano em que a chamada possa ter lugar. Mas não sei se se mantém ainda o troço da Primavera, a amenizar os tempos de espera para a resposta a uma informação. Como já há muito que não telefono para obter informações - desisti disso, atida ao slogan “Não telefone, vá” - prefiro ir para uma qualquer bicha esperar a minha vez de ser atendida, como quem vai para o consultório do dentista, armado de resignação.
Nem sempre é, contudo, como descreve António Barreto. Quando se trata dos serviços técnicos da internet, por exemplo, fico admirada com a paciência dos técnicos de lá - da Meo, (foi o caso) - a dar ordens à distância até que o problema fique resolvido. Aconteceu cá por casa há pouco, e a eficiência, paciência - e delicadeza - que o meu marido compartilhou por mais de uma hora de mudanças de cabos e fichas e averiguações e respostas a perguntas deixaram-me de boca aberta. E finalmente feliz.
Mas na agressividade generalizada das competitividades modernas, a paciência vai-se perdendo, geralmente por via telefónica, que interrompe trabalhos ou sossegos para nos propor o rastreio aos nossos dentes ou ouvidos, em tal dia, no sítio X, para nosso bem, é certo. Mas será que é? Não deixa de ser incomodativa, embora nos doa que faça parte do ganha-pão de inúmeros trabalhadores actuais, quando se trata do capítulo publicitário.
Assédios, compassos de espera. Fugas… só no desejo. António Barreto analisa.
Utilidade pública
António Barreto´
DN, 12/3/17 -  Sem Emenda
Diz-se public utilities. Em português, não quer dizer a mesma coisa, mas diz tudo. Serviços e infraestruturas de serviços e facilidades para toda a gente. Inicialmente organizados pelo Estado, ulteriormente geridos pelo mesmo ou por empresas privadas. Cada país tem a sua solução. Mas é sempre a mesma coisa: serviços públicos.
Muita coisa pode entrar nesta categoria: água, luz, electricidade, gás, telefone, correios, banda larga, transportes, esgotos, resíduos, faróis e outros. Há quem inclua certos serviços públicos especiais, como a saúde e a educação. Podem ser de gestão pública ou privada, local ou nacional, em monopólio ou em mercado aberto. Fazem parte da concepção moderna de país civilizado.
Estes serviços, em Portugal, começaram por ser públicos. Uns mantiveram-se como tal, outros foram privatizados. Nada muito diferente de outros países. A eficácia, a utilidade e a honestidade destes serviços variam muito. Em tempos, a imprensa realizava uma espécie de ranking em que classificava, segundo a opinião pública, cada serviço. Alguns, aborrecidos com uma má classificação, esforçavam-se por melhorar, o que às vezes conseguiam e nós ficávamos a ganhar.
Entretanto, com a privatização a ajudar, mais a crise financeira e a compra e venda de empresas, sem falar na concorrência e na voracidade de tanta gente, todas estas empresas se viraram para a agressividade comercial. São dezenas de e-mails e telefonemas não desejados que se recebem por mês em casa de cada um. Novos serviços, mais pacotes, descontos aparentes, novos dispositivos, vantagens incríveis e brindes inacreditáveis! No fim do dia, é sempre para vender mais mercadoria inútil, fidelizar aberta ou furtivamente, instalar aplicações, adquirir uma nova box, alargar o serviço para áreas inúteis e subtrair o cliente à empresa rival!
Uma moda recente é a dos serviços de distribuição separados da produção e da assistência, o que exige escolhas feitas pelos clientes, impostas por lei (dizem eles...), que logo anunciam descontos e vantagens, mas que não têm uns nem outras. Rapazes e raparigas com bilhetes de identidade vistosamente exibidos batem à porta, declaram que, "para nosso bem", vêm verificar as instalações e anunciam benefícios, mas que têm sempre mercadoria para vender, regras absurdas e fidelizações ocultas! Para não falar das "letras pequeninas" cheias de ratoeiras, nem das regras incompreensíveis tanto para velhos analfabetos como para jovens doutorados!
Tentar esclarecer com os serviços de assistência é inútil. Podemos esperar até meia hora a ouvir música idiota. Quando a chamada é atendida, num call center da Covilhã ou de Cabo Verde, somos informados de que temos de fidelizar, que outro serviço tratará de nós, que é necessário comprar mais um pacote ou mudar um tarifário! É inútil queixarmo-nos. Ou porque não se sabe a quem. Ou porque os "provedores" estão ao serviço da empresa, não de nós. Ou porque demoram. A análise das facturas é um pesadelo. Informação inútil e excessiva, para que ninguém compreenda. Para desmoralizar quem quer compreender. Ou obrigar toda a gente a desistir. Quando há dupla facturação, ou contagem errada, é preciso primeiro pagar, depois litigar, pagar inspecções (mesmo quando a culpa é deles...) e esperar. Meses... Anos... Sorte nossa é quando recebemos a visita de um técnico ou assistente: a gentileza e a perícia destroem o mito das máquinas e das competências digitais.
Algumas práticas destas empresas, públicas ou privadas, são simplesmente ilegais. Como tanta gente lhes deve emprego ou investimento, ninguém as castiga. Nem sequer se faz legislação que proíba o assédio comercial.
Perceber o que "eles" fazem exige tempo, sabedoria, paciência, letras, advogados e recursos. Quer isto dizer, esquecer. Por outras palavras, dar milhões a ganhar às empresas. Privados ou públicos, estes serviços teriam de responder, respeitar e servir. Não o fazem. E gabam-se da sua agressividade. Uma coisa é certa: ninguém os desafia ou vigia!

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