Ao
texto de João Miguel Tavares que segue, claro e objectivo, anteponho
os títulos e alguns considerandos, que consegui transpor directamente, de José Pacheco
Pereira sobre idêntico caso do extravio de dez milhões em offshores, que
deu que bradar, e que Pacheco Pereira igualmente analisa, com o seu brilho e
zanga de mentor, no Público do mesmo dia - “O bom senso é o melhor
instrumento para saber quando nos enganam”- e, já anteriormente, no
Público de 25/2, «A afronta de
nos tomarem por parvos». Outros mais
comentaristas se debruçaram sobre o escândalo, que nos retrata na desfaçatez
tranquila das maroscas comezinhas da nossa miséria moral. Felizmente que há
quem se aflija, mas o certo é que, quando nos julgamos finalmente mais
educados, ainda que só por receio do escândalo, ou do seu reflexo sobre a nossa
representatividade no mundo racional, novos casos surgem, e outros e outros, que
uma imprensa irrequieta e agressiva traz à baila, fervilhando em tosca mexeriquice
competitiva.
É só mais um caso. Outros virão, de que o próprio cinema
se faz porta-voz. Como acreditar que algum dia seremos outros, se a vergonha
nos falta, mais visível do que nunca?
A afronta de nos tomarem por
parvos
25 de Fevereiro de 2017
O secretário de Estado quer-nos convencer de algo
muito mais grave: é de que não deu por ela que lhe faltavam os números do
dinheiro que ia para os offshores.
A
mentira, seja sob forma directa ou rebuscada, em matérias públicas é
inaceitável. Sobre isso não vale a pena dizer mais nada. Os governantes não têm
obrigação de dizer a verdade — sim, há razões de Estado que podem implicar a
mentira — mas nenhuma cobre os casos recentes. Mentir pode ser legítimo, por
exemplo, para esconder, até ao momento do seu anúncio, uma desvalorização da
moeda, ou quando está em curso uma qualquer operação com riscos para as pessoas
ou para o Estado, sensível à revelação irresponsável da verdade. São excepções,
mesmo muito excepcionais, e precisam de ser muito explicadas a posteriori,
quando finalmente se pode saber a verdade sem custos. Há matérias delicadas
cobertas pelo segredo do Estado que justificam que um governante, quando
interrogado directamente, tenha que mentir. Não deixa de ser mentira no momento
em que é proferida, mas trata-se de uma mentira instrumental, destinada a
proteger um bem maior. É um estatuto que pode ser alvo de abuso, e é-o muitas
vezes, mas os limites éticos do dilema verdade/mentira não se aplicam neste
tipo de “sombras”.
O bom senso é o melhor instrumento para saber quando
nos enganam
4 de Março de 2017
Há mentirosos que acham que têm um direito superior
a mentir, que vem da sua condição social ou profissional, e depois voltam à
base com a maior naturalidade, elogiados pelos “enormes serviços à pátria”, à
função de conselheiros dos poderosos, como se mentir fosse óbice para coisa
nenhuma. Mas é mesmo assim.
Sempre achei que o bom senso era um guia
muito seguro para analisar os negócios públicos e nunca me dei mal com isso.
Não vou fazer aqui a lista habitual dos comentadores de que “como eu disse”
verificou-se isto e aquilo, mas vou dar alguns exemplos de como o bom senso é
muito mais “revelador” do que teorias mais ou menos sofisticadas, ou a sugestão de que se sabe algumas
coisas, porque se está próximo do poder e se lhe oferecem as orelhas para
depois se usar a boca.
OFFSHORES:ELOGIO DO POPULISMO E DA DEMAGOGIA
JOÃO Miguel Tavares
Público,4 de Março de 2017
Chateia-me
um bocado que a maior parte dos meus amigos de direita não consiga
escrever um artigo sobre offshores sem
alertar para os perigos do “populismo” e
da “demagogia”. Se por populismo e demagogia entendermos uma divisão radical, e
pouco subtil, entre “puros” e “impuros”, “certos” e “errados”, “bons” e “maus”,
então há que celebrar o populismo e a demagogia em torno das offshores - porque
nada de bom vem dali.
Quando
António Costa diz ser “absolutamente escandaloso que um governo que não hesitou em acabar com a
penhora da casa de morada de família por qualquer dívida tenha tido a
incapacidade de verificar o que aconteceu com 10 mil milhões de euros que
fugiram do país “é sempre possível argumentar que o primeiro-ministro foi
infeliz na utilização do verbo “fugir”(aquele dinheiro é dos portugueses, não é
de Portugal) e que se está a esquecer do lastimável papel do PS em tantas negociatas.
Mas, na substância,Costa está certo.
É
realmente indigno espremer um contribuinte por dever dez euros ao fisco e
ignorar dez mil milhões de euros de
empresas e de milionários porque - hélas! - houve um triste erro informático.
Na
semana passada um leitor partilhou comigo uma história kafkiana envolvendo
o Imposto Único de Circulação (IUC). O leitor emitiu a sua guia de pagamento,
largou 133.63€, mas por alguma desatenção informática terá - imagina ele -
anulado a guia depois de a ter pago.
Erro trágico: 20 dias depois recebeu uma multa de 88,25€ por falta de pagamento
do IUC. A prova de que tinha pago não lhe serviu de nada. Para o “sistema” já
tinha dado ordem de execução fiscal - mais 150,63€.Total:372,51€ por ter
clicado num sítio errado. Sendo que não há sequer prova de que o tenha feito -
é o “sistema” que diz que sim.
Ora,
este mesmo “sistema”, tão atento ao pobre pagador de IUC e tão poderoso na sua
sapiência que nem os hominídeos da Autoridade Tributária podem alterar as suas
decisões, está depois espectacularmente distraído quando 10 mil milhões de
euros passam à frente do seu nariz a caminho do Panamá. A vigiar o IUC,
o “sistema” é uma águia. A vigiar offshores, é mais pitosga do que Mr. Magoo.
Ainda
que não tenham existido fugas ao fisco ou falcatruas nas tais 14.484
transferências - o que parece altamente improvável, a avaliar pelas
coincidências estatísticas apresentadas por Rocha Andrade - , o simples
não-tratamento de 10 mil milhões de euros é uma vergonha exactamente pelas
razões apontadas por António Costa: a única forma de manter a moralidade do
regime em tempos de vacas magras é ter, pelo menos, a mesma exigência com
fortes e fracos. E a única forma de manter a salubridade do capitalismo é não
permitir as desigualdades chocantes que as offshores promovem Acho muito bem
que, consoante o talento e os méritos de cada um, haja quem seja mais rico e
menos rico. Só que as offshores promovem uma desigualdade inaceitável - são um
privilégio só ao alcance dos milionários. Como dizia António Lobo
Xavier, com alguma graça, não há guichês para offshores. Não há um sítio onde a
gente possa ir bater à porta e colocar 1000 euros nas ilhas Caimão, só para
experimentar. Ora, se apenas os mais ricos podem pagar menos impostos, isso só
pode ser classificado de uma forma: absolutamente escandaloso. E a quem
parecer que isto é simples demagogia e populismo, só tenho uma coisa a dizer:
quero mais.
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