quarta-feira, 1 de março de 2017

Para uma descodificação de «O Diário de Anne Frank»



1 - Classificação da obra:
Trata-se de uma obra narrativa, de carácter epistolar - que utiliza a forma de diário, isto é, de relato em discurso directo, feito pela narradora/autora - participante (autodiegética) e omnisciente e, simultaneamente, personagem principal - Anne Frank - ao seu narratário (Diário), que toma a forma de um ser feminino personalizado e imaginário - Kitty -  confidente naturalmente muda das suas confissões, e assumindo sempre a forma sintáctica de vocativo, não só na Introdução de cada um dos relatos diários, como muitas vezes ao longo da diegese narrativa em cada uma das confidências, como expressão carinhosa de Anne, na relação unívoca estabelecida, a que se acrescem por vezes as formas dos pronomes ou determinantes de 2ª pessoa - tu, ti - ou 1ª pessoa do plural - nossa (amizade)…

2 - Tempo
 2.1 -  Tempo cronológico:
As confissões destes relatos epistolares abrangem um tempo cronológico objectivamente demarcado, de cerca de dois anos - 12 de Junho de 1942 a 1 de Agosto de 1944 - acrescido de um epílogo não pertencente à narradora/autora e feito provavelmente pelos responsáveis da edição da obra: informa sobre os acontecimentos que marcaram o fim da trajectória da vida de Anne e dos que com ela ocuparam o “refúgio” de “mergulhados” judeus, fugidos às perseguições nazis.
Com a sua categoria de diário, o tempo é nele medido em sequência progressiva, em semanas, dias e meses, na introdução de cada “epístola confidencial”, em horas, em partes do dia, ou, nas  frequentes analepses, em resumos temporais de maior ou menor extensão. As referências aos advérbios de tempo - hoje, ontem, há tantos dias, à tarde, de manhã, à noite …- com as expressões de lugar, de concomitante proximidade ou afastamento - aqui, lá, no sítio X, ou mesmo nas prolepses de futurologia, com as suposições do que será depois.

a) - Exemplo de analepse (=retrospectiva, flashback): «20/6/1942: “Quando os meus pais casaram tinha o meu pai trinta e dois anos e a minha mãe vinte e cinco. Minha irmã Margot nasceu  em 1926 em Frankfort sobre o Meno; em 12 de Junho de 1929 vim eu. Como somos judeus, emigrámos, em 1933, para a Holanda, onde o meu pai se tornou director da Travis - AG. Esta firma trabalha em estreita ligação com a Colen & Co., no mesmo edifício.
b) - Exemplo de prolepse (=antecipação): «15/7/1944: “quando ergo os olhos para o Céu, penso que, um dia, tudo isto voltará a ser bom, que a crueldade chegará ao seu fim e que o mundo virá a conhecer de novo a ordem, a paz, a tranquilidade”» .

2.2- Tempo histórico:  O que decorre do contexto da segunda guerra mundial .

3- Espaço físico:
 O espaço físico da narrativa do Diário inicialmente abrange a casa de família de Anne, em Amesterdão, na Holanda, e os vários locais frequentados pelas duas irmãs  -  escola, lugares de diversão… - (desde Domingo, 14 de Junho de 1942 a quinta feira, 9 de Julho de 1942) e, a partir de 10 de Julho, o anexo de uma casa (escritório), em Prinsengracht, como refúgio dos oito judeus sucessivamente instalados - a família Frank sendo a primeira - fugidos à perseguição nazi, além das referências ao mundo exterior, não só do contexto guerra, como de referências evocadas de outros espaços temporais, ou mesmo do espaço exterior entrevisto do anexo, através de breve abertura de cortina.
De resto, é a própria Anne que nos vai gradualmente descrevendo os lugares, os móveis, os objectos, as atitudes das várias personagens que povoam o mundo em que está condenada a permanecer encerrada.

4 - Acção:
4.1 - Estrutura da acção: Trata-se de uma narrativa aberta, a do Diário, que vai progredindo em sequências narrativas de episódios vários em torno das personagens ligadas ao seu mundo, várias vezes retomadas, no acaso dos dias vividos, admitindo, grosso modo, as três propostas do processo narrativo - encadeamento, encaixe e alternância:
- Encadeamento, porque se trata de um deslizar de peripécias, associadas à figura central - Anne - com alternância, por vezes, de episódios mais ou menos desligados entre si, ou retomados, ao acaso da progressão temporal e das relações estabelecidas entre as várias personagens segundo a focalização da narradora. O encaixe poderá admitir-se, (para efeito de simplificação) relativamente ao espaço exterior do contexto histórico (II Guerra Mundial), (que surge nas frequentes referências da heroína, com considerações reveladoras da sua maturidade, (o que marcará, de resto, algumas das suas característica psicológicas - em caracterização indirecta - por dedução do leitor).
A narrativa aberta do Diário, converter-se-á em narrativa fechada, com o Epílogo acrescentado, que dá conta do destino das personagens.

4.2- Partes da narrativa:  Está dividida em três partes, precedidas de uma Dedicatória: («ESPERO QUE TE POSSA CONFIAR TUDO A TI; O QUE, ATÉ AGORA, NUNCA PUDE FAZER A NINGUÉM, E ESPERO QUE VENHAS A SER UM GRANDE AMPARO PARA MIM. Anne Frank, 12 de Junho de 1942».):

a) INTRODUÇÃO (3 cartas) - (Narratário não personalizado) : Domingo, 14 de Junho de 1942 - A alegria de receber o Diário; Segunda-feira, 15 de Junho de 1942 - A festa dos anos de Anne; Sábado, 20 de Junho de 1942) - Os porquês de escrever o diário - “O papel é mais paciente do que os homens”; Síntese biográfica”.   

b) I PARTE (8 cartas) - (Narratário personalizado: «Querida Kitty»): de Sábado, 20 de Junho de 1942 a Quinta-feira, 9 de Julho de 1942: A vida na escola (Anne uma adolescente tagarela e espirituosa) e em casa, as relações com os amigos e as amigas, Harry,  um rapaz interessado na Anne (“Sinto que o Harry está apaixonado por mim, e, para variar, isto é engraçado”), o amor pela irmã, Margot, aluna brilhante), as sombras que se adensam sobre os Judeus - os alunos judaicos a terem de mudar-se para as escolas judaicas, o pai que deixou de poder trabalhar  («O sr. Koophuis tomou conta da «Travis» juntamente com o sr Kraler, da firma Kolen & Cº de que o pai também era sócio»); o pai que avisa a filha de que é necessário “mergulhar” para um espaço que havia mais de um ano eles andavam a preencher com os pertences da casa…), mas que ao mesmo tempo a tranquiliza;  três dias que passaram, e a nova carta à “querida Kitty, a informar sobre a antecipação do “mergulho”, para fugirem à convocação das SS para o pai se apresentar (significativa de que seria enviado para um campo de concentração) e a descrever os momentos de pânico, com o pai ausente, a reunião da mãe com o sr. van Daan, outro “mergulhador”. Afinal a convocação era para a Margot, o susto terrível, as coisas disparatadas que as irmãs meteram nas pastas da escola para levar (significativas do apego às recordações e amizades que lhes custa deixar), o pai que chegou às cinco, a reunião nocturna com Koophuis, a Miep (“desde 1933 trabalhava no escritório do pai de Anne, e era uma amiga fiel”) que veio emalar as coisas às onze da noite com o seu bom marido Henk, e as carregaram para o local ainda desconhecido de Anne. No dia seguinte, pelas cinco e meia da manhã, a saída de todos a pé, a Margot de bicicleta atrás da Miep, todos muito enroupados, carregando o mais que podiam roupas no corpo, a despedida do seu gatinho, de que um dos vizinhos tomaria conta.

c) II PARTE:
A:
1- Constituição: Constituída por cerca de 165 Cartas - de Sexta-feira, 10 de Julho de 1942 a Terça-Feira, 1 de Agosto de 1944, a primeira contando da inércia da mãe e da irmã, desfeitas de horror pela catástrofe que se abatera sobre eles, fechados e em silêncio, obrigados a arrumar tudo, que estava monstruosamente empilhado, pois não tinham contado com a antecipação do “mergulho”, o pai e Anne deitando corajosamente as mãos à obra para a instalação.
2) A localização do esconderijo é feita na carta anterior (de 9 de Julho) última da 1ª Parte:
O esconderijo é na casa comercial do pai…. O pai nunca teve muitos empregados. Os de agora eram o sr. Krale, o sr. Koophuis, a Miep e Elli Vossen, a dactilógrafa de 23 anos. Todos sabiam que vínhamos. Só o sr. Vossen, o pai da Elli, que trabalha no armazém, e os dois criados é que não estão no segredo”.
3) Descrição do anexo e distribuição pelos ocupantes: «...A porta da direita conduz a um anexo. Ninguém podia nem sequer suspeitar que, para além desta porta simples, pintada de cinzento, ainda se encontrariam escondidos muitos quartos. Aberta a porta, sobe-se um degrau, e está-se dentro do anexo. Em frente da escada há uma escada íngreme. À esquerda, um corredorzinho leva a um quarto que vai ser o quarto de dormir e de estar do casal Frank e a um outro quartinho: o quarto de trabalho e de dormir das duas meninas Frank. Ao lado direito da escada há um quarto sem janelas com lavatório e um W.C. com uma outra porta que dá para o nosso quarto.
Quando se sobe a escada e se abre a porta de cima, fica-se admirado ao ver, numa casa tão velha, um quarto tão grande, bonito e airoso. Neste quarto há um fogão de gás e uma banca. Aqui estava instalado até há pouco, o laboratório da firma. Agora serve de cozinha, de sala e de quarto de dormir do casal van Daan.
Um quartinho minúsculo de passagem vai ser o reino de Peter van Daan. Como na casa principal, também aqui há águas furtadas e um sótão
4) - A  chegada do casal van Daan com o filho Peter será referenciada na carta da II Parte, de 14 de Agosto, como tendo acontecido em 13 de Julho, também em “mergulho” antecipado.
5) - A instalação do oitavo inquilino - o dentista Albert Dussel, que tem a mulher no estrangeiro - e referido pela primeira vez na 19ª carta, de 10 de Novembro, é referenciada  na 21ª carta da II Parte de 19 de Novembro. Instalar-se-á  no quarto de Anne, ocupando-lhe a cama, passando esta a dormir num sofá prolongado por cadeiras.
6) Os protectores: Toda esta movimentação só foi possível graças à interferência dos protectores - Kraler e Koophuis - intermediários entre o exterior e o interior, e bem assim a ajuda de Miep e Elli, para o fornecimento de víveres através de senhas, remédios, livros, roupas ou outras particularidades assistenciais, tudo realizado com os respectivos sigilo e cautela, Elli igualmente os ajudando dentro do anexo, os outros aparecendo diariamente, e por vezes comendo com eles.
B)
7- O conteúdo da acção narrada: circunscrito ao exíguo espaço, terá a ver, pois, com as relações entre as várias personagens, os comportamentos ocasionais, dependentes das circunstâncias vividas, e dos caracteres específicos de cada um, as zangas ou os amuos, as leituras e os estudos, possibilitados pela ligação ao exterior por intermédio dos amigos protectores, as dificuldades e carências de alimentação e de higiene, as falhas de luz e de água, as indisposições passageiras, ou a doença de estômago e operação do sr. Koophuis, que o ausentou dos seus “protegidos”, como aconteceu com Miep e Elli, o que provocou transtorno no “anexo”, os vários sustos apanhados, de serem descobertos, referentes a ruídos ou desconfianças do exterior,  as conversas e as críticas sobretudo ao comportamento de Anne, pouco dócil, o “boletim” pormenorizado sobre o modo como passavam as noites e os dias e os gestos e “apetites” egoístas de cada um dos não pertencentes à família, e tudo isso analisado pela narradora e personagem principal, Anne Frank, que vai também fornecendo os suas informações críticas sobre os factos da guerra, ouvidos pela BBC, no aparelho de rádio e os dados de que vão tendo conhecimento sobre os amigos e conhecidos judeus apanhados nas malhas do extermínio nazi. Com o avançar do tempo e o próprio crescimento de Anne, esta desabafará com Kitty os seus próprios problemas íntimos, de revoltas e arrependimentos, de adolescente que descobre o amor, na figura de Peter que, de insípido, tímido  e mandrião como Anne o considerava no início, pouco a pouco, se revelará mais desinibido e companheiro de Anne, esclarecendo-a com naturalidade sobre a vida adulta e tornando-se objecto do impulso amoroso de Anne adolescente. Os estados de espírito de raivas e apaziguamentos de Anne, serão naturalmente objecto das suas confissões, bem como a visão crítica sobre as personagens que figuram no espaço limitado do anexo.

5 - As personagens
a) Os “mergulhados” do anexo:
Anne Frank, personagem principal ou protagonista numa narrativa de que ela própria é responsável, apresenta naturalmente características de alegria, travessura, vivacidade, entrega fácil a desesperos, raivas, zangas, arrependimentos em relação ao mundo adulto com quem é condenada a viver; é simultaneamente reveladora de grande sensibilidade e maturidade não só na apreciação crítica dos outros - daqueles com quem é forçada a viver, como dos responsáveis pela guerra e sofrimento do seu povo. Os dois anos no refúgio fazem-na crescer mentalmente, na sua ânsia de aprender, com entrega ao trabalho, no amor pelos seus, na descoberta do seu corpo e do seu amor por Peter, com dúvidas (após os conselhos do pai), sobre a real sinceridade de uma exaltação amorosa que provavelmente um futuro num contexto de maior liberdade e mais maturidade mostrará a irrelevância, dada a diferença de sensibilidades e inteligências. Extremamente inteligente nas suas reflexões e auto-análises comportamentais, (se não houve mão de adulto a manipular alguma da sua escrita). 
 
(As cartas de 4, 5, 9 e 10 de Agosto de 1943, que dão conta dos movimentos diários de todos, ao deitar e durante as refeições, dão-nos as descrições dos comportamentos de cada um, feitos ao modo crítico e directo de Anne).

A irmã, Margot: dócil e sensata, pacífica e boa estudante, quando frequentava a escola, por todos apreciada e estimada, sempre apresentada como modelo a Anne, que, naturalmente, a ama.
O Pai,  (Otto) Frank, (Pim, na designação de Anne): leitor de Charles Dickens, excelente como marido e pai, preocupado com a educação das filhas, bom conselheiro, generoso e modesto, muito amado pelo “feixe de nervos” Anne, defendendo Anne e Margot nas disputas educativas com a srª van Daan, sempre acusadora da primeira.
A mãe, (Edith)  Frank: Crítica de Anne, que por isso sofre, e lhe tem zanga, mas uma mulher discreta e sensata, nem sempre paciente.
O sr. van Daan: personagem que se revela à mesa um comensal pouco delicado e ávido, indiferente aos outros, egoísta, opinioso, irritadiço, vivendo ema relação conjugal de disputas e reconciliações.
A srª van Daan: pessoa fútil e egoísta, provocante e muito crítica de Anne, em disputa permanente com o marido, avara e cozinheira, condenando a educação de brandura do casal Frank, relativamente à filha mais nova.
Peter van Daan: rapaz de dezasseis anos no início, molengão, tímido e pacífico, revelar-se-á, com o tempo, um bom companheiro de Anne, e um namorado que satisfaz o despertar amoroso de Anne, sem a certeza de que no futuro esses amores perdurarão.
O dentista Albert Dussel: Um tanto ávido e grosseiro, crítico de Anne, condenada a dormir no mesmo quarto, e que por isso muitas vezes ia dormir com os pais.

5 - O Estilo:
Próprio da forma epistolar, discurso directo, simples, com expressões ora infantis ora num discurso bem ordenado e sentencioso, de leitura fácil, onde podemos rever a nossa própria infância e os nossos relacionamentos ao longo da vida. Discurso perspicaz, onde a sinceridade domina, sem retórica.

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