1 - Classificação da obra:
Trata-se de uma obra narrativa,
de carácter epistolar - que utiliza a forma de diário,
isto é, de relato em discurso directo, feito pela narradora/autora
- participante (autodiegética) e omnisciente e, simultaneamente,
personagem principal - Anne
Frank - ao seu narratário (Diário), que toma a forma de um ser feminino
personalizado e imaginário - Kitty - confidente
naturalmente muda das suas confissões, e assumindo sempre a forma sintáctica de
vocativo, não só na Introdução de cada um dos relatos diários,
como muitas vezes ao longo da diegese narrativa em cada uma das confidências,
como expressão carinhosa de Anne, na relação unívoca estabelecida, a que
se acrescem por vezes as formas dos pronomes ou determinantes de 2ª
pessoa - tu, ti -
ou 1ª pessoa do plural - nossa
(amizade)…
2 - Tempo
2.1 - Tempo
cronológico:
As confissões destes relatos epistolares abrangem um tempo
cronológico objectivamente demarcado, de cerca de dois anos - 12 de
Junho de 1942 a 1 de Agosto de 1944 - acrescido de um epílogo não
pertencente à narradora/autora e feito provavelmente pelos responsáveis
da edição da obra: informa sobre os acontecimentos que marcaram o fim da
trajectória da vida de Anne e dos que com ela ocuparam o “refúgio” de
“mergulhados” judeus, fugidos às perseguições nazis.
Com a sua categoria de diário, o tempo
é nele medido em sequência progressiva, em semanas, dias e
meses, na introdução de cada “epístola confidencial”, em horas,
em partes do dia, ou, nas frequentes analepses, em resumos
temporais de maior ou menor extensão. As referências aos advérbios
de tempo - hoje, ontem, há tantos dias, à tarde, de manhã, à noite …- com
as expressões de lugar, de concomitante proximidade ou afastamento - aqui,
lá, no sítio X, ou mesmo nas prolepses de futurologia, com as
suposições do que será depois.
a) - Exemplo de analepse (=retrospectiva, flashback): «20/6/1942: “Quando os meus pais casaram tinha o meu pai
trinta e dois anos e a minha mãe vinte e cinco. Minha irmã Margot nasceu em 1926 em Frankfort sobre o Meno; em 12 de
Junho de 1929 vim eu. Como somos judeus, emigrámos, em 1933, para a Holanda,
onde o meu pai se tornou director da Travis - AG. Esta firma trabalha em
estreita ligação com a Colen & Co., no mesmo edifício.
b) - Exemplo de prolepse (=antecipação): «15/7/1944: “quando ergo os olhos para o Céu, penso que, um
dia, tudo isto voltará a ser bom, que a crueldade chegará ao
seu fim e que o mundo virá a conhecer de novo a ordem, a paz, a tranquilidade”»
.
2.2- Tempo histórico: O
que decorre do contexto da segunda guerra mundial .
3- Espaço físico:
O espaço físico
da narrativa do Diário inicialmente abrange a casa de
família de Anne, em Amesterdão, na Holanda, e os
vários locais frequentados pelas duas irmãs - escola,
lugares de diversão… - (desde Domingo, 14 de Junho de 1942
a quinta feira, 9 de Julho de 1942) e, a partir de 10 de
Julho, o anexo de uma casa (escritório), em Prinsengracht,
como refúgio dos oito judeus sucessivamente instalados - a
família Frank sendo a primeira - fugidos à perseguição nazi, além das referências
ao mundo exterior, não só do contexto guerra, como de referências evocadas de outros
espaços temporais, ou mesmo do espaço exterior entrevisto do anexo, através de
breve abertura de cortina.
De resto, é a própria Anne que nos vai gradualmente
descrevendo os lugares, os móveis, os objectos, as atitudes das várias
personagens que povoam o mundo em que está condenada a permanecer encerrada.
4 - Acção:
4.1 - Estrutura da acção: Trata-se de uma narrativa aberta, a do Diário,
que vai progredindo em sequências narrativas de
episódios vários em torno das personagens ligadas ao seu mundo, várias vezes
retomadas, no acaso dos dias vividos, admitindo, grosso modo, as três
propostas do processo narrativo - encadeamento, encaixe e alternância:
- Encadeamento, porque
se trata de um deslizar de peripécias, associadas à figura central -
Anne - com alternância, por vezes,
de episódios mais ou menos desligados entre si, ou retomados, ao acaso da
progressão temporal e das relações estabelecidas entre as várias personagens segundo
a focalização da narradora. O encaixe poderá admitir-se, (para efeito de simplificação) relativamente
ao espaço exterior do contexto histórico (II Guerra Mundial), (que
surge nas frequentes referências da heroína, com considerações reveladoras da
sua maturidade, (o que marcará, de resto, algumas das suas característica
psicológicas - em caracterização indirecta - por
dedução do leitor).
A narrativa aberta do Diário,
converter-se-á em narrativa fechada, com o Epílogo acrescentado, que dá conta do
destino das personagens.
4.2- Partes da narrativa: Está dividida em três partes, precedidas
de uma Dedicatória: («ESPERO
QUE TE POSSA CONFIAR TUDO A TI; O QUE, ATÉ AGORA, NUNCA PUDE FAZER A NINGUÉM, E
ESPERO QUE VENHAS A SER UM GRANDE AMPARO PARA MIM. Anne Frank, 12 de Junho de 1942».):
a) INTRODUÇÃO (3 cartas) - (Narratário
não personalizado) : Domingo, 14 de Junho de 1942 - A alegria de receber o Diário; Segunda-feira, 15
de Junho de 1942 - A festa dos anos de Anne; Sábado, 20 de Junho
de 1942) - Os porquês de escrever o diário - “O papel é mais
paciente do que os homens”; Síntese biográfica”.
b) I PARTE (8 cartas)
- (Narratário personalizado: «Querida
Kitty»): de Sábado, 20 de Junho de 1942 a
Quinta-feira, 9 de Julho de 1942: A vida na escola
(Anne uma adolescente tagarela e espirituosa) e em casa, as
relações com os amigos e as amigas, Harry, um rapaz interessado na Anne (“Sinto que o
Harry está apaixonado por mim, e, para variar, isto é engraçado”), o
amor pela irmã, Margot, aluna brilhante), as sombras que se adensam
sobre os Judeus - os alunos judaicos a terem de mudar-se para as escolas
judaicas, o pai que deixou de poder trabalhar («O sr. Koophuis tomou conta da «Travis»
juntamente com o sr Kraler, da firma Kolen & Cº de que o pai também era
sócio»); o pai que avisa a filha de que é necessário “mergulhar”
para um espaço que havia mais de um ano eles andavam a preencher com os
pertences da casa…), mas que ao mesmo tempo a tranquiliza; três dias que passaram, e a nova carta à “querida
Kitty”, a informar sobre a antecipação do “mergulho”,
para fugirem à convocação das SS para o pai se apresentar (significativa de que
seria enviado para um campo de concentração) e a descrever os momentos
de pânico, com o pai ausente, a reunião da mãe com o sr. van Daan,
outro “mergulhador”. Afinal a convocação era para a Margot, o susto
terrível, as coisas disparatadas que as irmãs meteram nas pastas da escola para
levar (significativas do apego às recordações e amizades que lhes custa
deixar), o pai que chegou às cinco, a reunião nocturna com Koophuis,
a Miep (“desde 1933 trabalhava no escritório do pai de Anne, e
era uma amiga fiel”) que veio emalar as coisas às onze da noite com
o seu bom marido Henk, e as carregaram para o local ainda desconhecido
de Anne. No dia seguinte, pelas cinco e meia da manhã, a saída de todos
a pé, a Margot de bicicleta atrás da Miep, todos muito
enroupados, carregando o mais que podiam roupas no corpo, a despedida do seu
gatinho, de que um dos vizinhos tomaria conta.
c) II PARTE:
A:
1- Constituição: Constituída por cerca de 165 Cartas - de Sexta-feira, 10 de Julho de 1942 a
Terça-Feira, 1 de Agosto de 1944, a primeira contando da inércia
da mãe e da irmã, desfeitas de horror pela catástrofe que se abatera sobre
eles, fechados e em silêncio, obrigados a arrumar tudo, que estava
monstruosamente empilhado, pois não tinham contado com a antecipação do
“mergulho”, o pai e Anne deitando corajosamente as mãos à obra para a
instalação.
2) A localização
do esconderijo é feita na carta anterior (de 9 de Julho)
última da 1ª Parte:
“O
esconderijo é na casa comercial do pai…. O pai nunca teve muitos
empregados. Os de agora eram o sr. Krale, o sr. Koophuis, a Miep e Elli
Vossen, a dactilógrafa de 23 anos. Todos sabiam que vínhamos. Só o sr.
Vossen, o pai da Elli, que trabalha no armazém, e os dois criados é que não
estão no segredo”.
3) Descrição do anexo e distribuição pelos ocupantes: «...A
porta da direita conduz a um anexo. Ninguém podia nem sequer suspeitar que,
para além desta porta simples, pintada de cinzento, ainda se encontrariam
escondidos muitos quartos. Aberta a porta, sobe-se um degrau, e está-se dentro
do anexo. Em frente da escada há uma escada íngreme. À esquerda, um
corredorzinho leva a um quarto que vai ser o quarto de dormir e de estar do casal Frank e a
um outro quartinho: o quarto de trabalho e de dormir das duas meninas Frank. Ao lado direito da escada há um quarto sem
janelas com lavatório e um W.C. com uma outra porta que dá para o nosso quarto.
Quando se sobe a escada e se abre a porta de cima,
fica-se admirado ao ver, numa casa tão velha, um quarto tão grande, bonito e
airoso. Neste quarto há um fogão de gás e uma banca. Aqui estava instalado até
há pouco, o laboratório da firma. Agora serve de cozinha, de sala e de quarto
de dormir do casal van Daan.
Um quartinho minúsculo de passagem vai ser o reino de Peter van Daan. Como na
casa principal, também aqui há águas furtadas e um sótão.»
4) - A chegada do casal van Daan com o filho
Peter será
referenciada na 3ª carta da II Parte, de 14 de
Agosto, como tendo acontecido em 13 de Julho, também em “mergulho”
antecipado.
5) - A instalação do oitavo
inquilino - o dentista Albert
Dussel, que tem a mulher no
estrangeiro - e referido pela primeira vez na 19ª carta, de 10 de
Novembro, é referenciada na 21ª
carta da II Parte de 19 de Novembro. Instalar-se-á no quarto de Anne, ocupando-lhe
a cama, passando esta a dormir num sofá prolongado por cadeiras.
6) Os protectores: Toda esta movimentação só foi possível graças à
interferência dos protectores - Kraler e Koophuis - intermediários entre o exterior e o interior, e bem
assim a ajuda de Miep e Elli, para o
fornecimento de víveres através de senhas, remédios, livros, roupas ou outras
particularidades assistenciais, tudo realizado com os respectivos sigilo e
cautela, Elli igualmente os ajudando dentro do anexo, os outros
aparecendo diariamente, e por vezes comendo com eles.
B)
7- O conteúdo da acção narrada: circunscrito ao exíguo espaço, terá a ver,
pois, com as relações entre as várias personagens, os comportamentos
ocasionais, dependentes das circunstâncias vividas, e dos caracteres
específicos de cada um, as zangas ou os amuos, as leituras e os estudos,
possibilitados pela ligação ao exterior por intermédio dos amigos
protectores, as dificuldades e carências de alimentação e de higiene, as
falhas de luz e de água, as indisposições passageiras, ou a doença de estômago
e operação do sr. Koophuis, que o ausentou dos seus “protegidos”, como
aconteceu com Miep e Elli, o que provocou transtorno no “anexo”, os vários
sustos apanhados, de serem descobertos, referentes a ruídos ou desconfianças do
exterior, as conversas e as críticas
sobretudo ao comportamento de Anne, pouco dócil, o “boletim” pormenorizado
sobre o modo como passavam as noites e os dias e os gestos e “apetites”
egoístas de cada um dos não pertencentes à família, e tudo isso analisado pela narradora
e personagem principal, Anne Frank, que vai também fornecendo os suas
informações críticas sobre os factos da guerra, ouvidos pela BBC, no aparelho de
rádio e os dados de que vão tendo conhecimento sobre os amigos e conhecidos
judeus apanhados nas malhas do extermínio nazi. Com o avançar do tempo e o
próprio crescimento de Anne, esta desabafará com Kitty os seus próprios
problemas íntimos, de revoltas e arrependimentos, de adolescente que descobre o
amor, na figura de Peter que, de insípido, tímido e mandrião como Anne o considerava no início, pouco
a pouco, se revelará mais desinibido e companheiro de Anne, esclarecendo-a com
naturalidade sobre a vida adulta e tornando-se objecto do impulso amoroso de
Anne adolescente. Os estados de espírito de raivas e apaziguamentos de Anne,
serão naturalmente objecto das suas confissões, bem como a visão crítica sobre
as personagens que figuram no espaço limitado do anexo.
5 - As personagens
a) Os “mergulhados” do anexo:
Anne Frank, personagem principal ou protagonista numa narrativa de que ela própria
é responsável, apresenta naturalmente características de alegria, travessura,
vivacidade, entrega fácil a desesperos, raivas, zangas, arrependimentos em
relação ao mundo adulto com quem é condenada a viver; é simultaneamente
reveladora de grande sensibilidade e maturidade não só na apreciação crítica
dos outros - daqueles com quem é forçada a viver, como dos responsáveis pela
guerra e sofrimento do seu povo. Os dois anos no refúgio fazem-na crescer
mentalmente, na sua ânsia de aprender, com entrega ao trabalho, no amor pelos
seus, na descoberta do seu corpo e do seu amor por Peter, com dúvidas (após os
conselhos do pai), sobre a real sinceridade de uma exaltação amorosa que provavelmente
um futuro num contexto de maior liberdade e mais maturidade mostrará a irrelevância,
dada a diferença de sensibilidades e inteligências. Extremamente inteligente
nas suas reflexões e auto-análises comportamentais, (se não houve mão de adulto
a manipular alguma da sua escrita).
(As cartas de 4, 5, 9 e 10 de Agosto de 1943, que dão
conta dos movimentos diários de todos, ao deitar e durante as refeições,
dão-nos as descrições dos comportamentos de cada um, feitos ao modo crítico e
directo de Anne).
A irmã, Margot: dócil e
sensata, pacífica e boa
estudante, quando frequentava a escola, por todos apreciada e estimada, sempre
apresentada como modelo a Anne, que, naturalmente, a ama.
O Pai, (Otto)
Frank, (Pim, na designação de
Anne): leitor de Charles Dickens, excelente como
marido e pai, preocupado com a educação das filhas, bom conselheiro, generoso e
modesto, muito amado pelo “feixe de nervos” Anne, defendendo Anne e Margot nas
disputas educativas com a srª van Daan, sempre acusadora da primeira.
A mãe, (Edith) Frank: Crítica de Anne, que por isso sofre, e lhe tem zanga,
mas uma mulher discreta e sensata, nem sempre paciente.
O sr. van Daan: personagem que se revela à mesa um comensal pouco delicado
e ávido, indiferente aos outros, egoísta, opinioso, irritadiço, vivendo ema
relação conjugal de disputas e reconciliações.
A srª van Daan: pessoa fútil e egoísta, provocante e muito crítica de
Anne, em disputa permanente com o marido, avara e cozinheira, condenando a
educação de brandura do casal Frank, relativamente à filha mais nova.
Peter van Daan: rapaz
de dezasseis anos no início, molengão, tímido e pacífico, revelar-se-á, com o
tempo, um bom companheiro de Anne, e um namorado que satisfaz o despertar
amoroso de Anne, sem a certeza de que no futuro esses amores perdurarão.
O dentista Albert Dussel: Um tanto ávido e grosseiro, crítico de Anne, condenada
a dormir no mesmo quarto, e que por isso muitas vezes ia dormir com os pais.
5 - O Estilo:
Próprio da forma epistolar,
discurso directo, simples, com expressões ora infantis ora num discurso bem
ordenado e sentencioso, de leitura fácil, onde podemos rever a nossa própria
infância e os nossos relacionamentos ao longo da vida. Discurso perspicaz, onde
a sinceridade domina, sem retórica.
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