quarta-feira, 8 de março de 2017

Padrões



Um jornal cheio de artigos e notícias para se pensar, o Público. Este de 28 de Fevereiro está bem provido, mas a Direcção não deixa nem ler nem transpor sem financiamento, impondo um trabalho árduo dactilográfico a quem deseja guardar certos textos, que não só oferecem uma imagem das nossas gentes, mas que revelam qualidades literárias de algumas figuras nacionais, e nos tornam felizes, (tal como me sentia quando em tempos me dedicava ao ensino e encontrava qualidades de escrita ou outras nos espíritos que ajudava a desbravar). Tenho pena por esta interdição, por gostar de tantos seus articulistas, como é o caso de João Miguel Tavares, que apresenta uma excelente capacidade crítica, além de boa informação jornalística. O que conta no seu artigo de 28/2 é, naturalmente, grave, relativamente às contínuas histórias sobre contínuos infractores de colarinho branco que vão arrasando moralmente a credibilidade de um país que vive de crédito e não há meio de se livrar da sua dívida. Mas acho que não são só as elites que por aqui acham meios para obter pela fraude e a falta de escrúpulos as suas fontes de rendimento. Durante muitos anos, já o disse, comprei a prestações, até mesmo os livros que apetecia, tanto cá como estudante, como em África, como funcionária, e novamente cá, como reiniciante de um viver imposto pelas contingências da nossa História, célula tentando recuperar uma consciência de continuidade, no seu tecido desconjuntado pelos trambolhões. As prestações eram necessárias, para a satisfação das necessidades, e o dia do “vencimento” era o dia de as ir saldando. E não me esqueço da pessoa que me vendia as máquinas eléctricas das minhas comodidades, estabelecida aqui há largos anos, afirmando que pouca gente era assim tão pronta a pagar, o que me espantava. Ainda hoje conheço casos de empresas de trabalho a quem só a custo esse trabalho é pago, sendo necessário ir bater às portas dos devedores, algumas contas definitivamente esquecidas, por fuga para o estrangeiro dos responsáveis por elas. Donde concluo que a esperteza de “enrolar” os outros não está só nas “elites”, faz parte da nossa falha de educação cívica, que se pauta pelo respeito a valores.
A nossa trajectória histórica, de um país outrora fechado à evolução científica de outros países europeus, em virtude de um ensino entregue a um clero renitente a ultrapassar os dogmas da sua erudição, tornou-nos assim virados para as nossas coisinhas e as espertezas da nossa calaceirice ambiciosa. Isso explica o que se tem passado por cá, e mais esses casos dos offshores antigos, agora descobertos e mal esclarecidos.
João Miguel Tavares tenta explicar. Eu acrescento, em corolário, o final de um artigo do mesmo “Público”, de António Bagão Félix, em tom bastante faceto, sobre a tolerância de Carnaval e explicando as origens da palavra (“carne vale”- adeus carne (uma das hipóteses, por se entrar na abstenção da quaresma), ou mesmo da palavra “Entrudo”(introitus”, começo da Quaresma). Termina assim o texto de Bagão Félix:
«Por falar em máscaras - as do Carnaval, entenda-se - este ano está a ser uma “trumparia”. De tal sorte que uma das máscaras eleitas é a do Presidente americano, nas suas diversas poses.
Mas no final do dia, acaba a tolerância. E surge-me na memória uma frase cada vez mais actual de Vergílio Ferreira: «Que ideia a de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No carnaval desmascaram-se». Três dias de Carnaval ou 362 com Carnaval?»
Transponho igualmente o poema da «Mensagem” - «Padrão», para elevar o moral, lembrando as coisas épicas que fomos capazes de erguer no mundo, com mais orgulho, o padrão actual humilhante apenas:
A “gasosa” das elites portuguesas
João Miguel Tavares
Público, 28 de Fevereiro de 2017
Os angolanos chamam “gasosa” tanto às bebidas gaseificadas como aos subornos. Se um polícia o mandar parar em Luanda por qualquer razão, ainda que absurda, é quase certo que vai ter de pagar “gasosa”. Se precisar de um visto urgente, tem de pagar “gasosa”. E sempre que exista qualquer participação num negócio lucrativo, os angolanos, modo geral, querem “gasosa” pelo esforço. Claro que nós, portugueses impolutos, tendemos a olhar para isto muito sobranceiros, porque não temos de pagar “gasosa” à polícia nem aos funcionários das embaixadas. É verdade, e ainda bem – ao nível da pequena corrupção somos, de facto, um país muito mais sério e decente. Mas será que podemos dizer o mesmo da grande corrupção? Tenho cada vez mais dúvidas. Quando olho para as elites económicas e financeiras dos dois países, o que vejo é muita “gasosa” a borbulhar tanto em Angola como em Portugal.
Se há algum ponto em que me identifico com as queixas recorrentes de Luanda, sempre que um alto quadro seu é investigado em Portugal, é esse: também a mim me irrita a sobranceria de uma virtude inexistente. Perante as graves suspeitas que incidem sobre o vice-Presidente Manuel Vicente, lá tivemos de levar com os costumeiros protestos oficiosos e malcriados do regime, via «Jornal de Angola». Estamos habituados. Contudo, estou convencido de que aquilo que está subjacente a tauis insultos é a convicção, por parte da elite angolana de que as práticas da elite portuguesa em nada diferem das suas - por cada tampa de «gasosa» que se abre em Luanda, há uma garganta que se abre em Lisboa. A única verdadeira diferença é que nós somos dissimulados, e não chamamos “gasosa” à “gasosa”. A corrupção não está instituída em toda a sociedade. Está escondida no seu topo. Basta olhar para a lista actualizada de arguidos da Operação Marquês. Há dez anos aqueles eram os homens mais poderosos de Portugal. A nossa mais destacada elite económica. Os jornais faziam vénia à passagem de Zeinal Bava, de Hensique Granadeiro ou de Ricardo Salgado. Havia entrevistas, perfis de sucesso, conferências, influência e a habitual sabujice. Nós engolimos explicações que jamais deveria ter sido aceites por ua sociedade saudável, atenta e minimamente exigente Salgado recebia 14 milhões de um cliente do BES, chamava a isso uma “liberalidade”, juntava pareceres de eminentes professores catedráticos a justificar que uma “liberalidade” era coisa perfeitamente aceitável - e o pessoal encolhia os ombros. Bava recebia 18,5 milhões do saco azul do BES, só os devolvia depois de começar a ser investigado, de seguida argumentava tratar-se de um valor que lhe havia sido “confiado a título fiduciário, consignado a uma finalidade legítima a concretizar em momento futuro”. Enfiavam-nos dois garfos nos olhos, diziam que se tratava de uma operação às cataratas, e no fim ainda pagávamos a conta.
Não admira que os angolanos, que conhecem tão bem o senhor Bataglia, o sr Salgado ou o sr. Sócrates arranquem os cabelos de raiva quando assistem à velha pátria lusitana de dedinho em riste, a perorar sobre a lastimável cleptocracia angolana. Não é que ela não seja lastimável - com certeza que é. Mas nós andámos décadas a alimentar a cleptocracia portuguesa sem que o povo tivesse sequer reparado. Somos apenas mais hipócritas e mais reservados. A “gasosa” é a bebida favorita das nossas elites - só que é preciso chegar lá para nos abrirem a porta do bar.

III. PADRÃO

(«Mensagem» - Fernando Pessoa)

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

Nenhum comentário: