sábado, 18 de março de 2017

Mas é pena que assim seja



Há muito que se conhecem. São pessoas timoratas, que defendem as suas vidas, incapazes de uma opinião corajosa, segundo princípios de lealdade a valores éticos, de olho sempre em mais valias. Era o povo que se não manifestava, nos tempos de Salazar, passivo e respeitador por imposições dogmáticas e radicais, não por estudo e aperfeiçoamento cultural e moral. Mal se lhes acenou com os princípios da liberdade e da igualdade, abriram-se as comportas da vileza e da desvergonha próprias de uma massa humana em grande parte amorfa e incapaz do desassombro e coragem que não seja senão para defender o interesse próprio. Foi desta massa que saíram muitos dos que hoje são acusados de falcatruas e esses são os espertos de sempre, normalmente conotados com a direita capitalista. Os da esquerda altruísta vivem no poleiro das suas crenças, que se pautam pelo ódio e a zanga moralistas e incitadores ao desacato, indiferentes à anarquia que provocam e à destruição do próprio país. Ninguém se preocupa com melhorar a nação, mas em salvar a própria pele.
E é neste contexto de amorfismo nacional que surgem os tais comentadores que Alberto Gonçalves retrata, gente do nem sim nem sopas, timorata por natureza, e previdente, que não assume posições drásticas, mas de moderação sinuosa, já na expectativa de uma possível mudança, que a mantenha sempre à tona da água, regendo as suas vidinhas. E isso implica o estar de acordo com o que manda actualmente a esquerda impante e o governante auto-eleito, não por ponderação ideológica, visto que “insuspeitamente” são conotados à direita, os tais, mas por subserviência, como se vira quarenta e tal anos atrás, no tempo de todas as surpresas.
Gente que, como informa Alberto Gonçalves, não admira Cavaco Silva nem Passos Coelho, que são tabu na moda destes novos tempos, porque são corajosos, apesar do contexto permanente do nosso amorfismo. Gente que não intimida Alberto Gonçalves, que sem temor os desmascara.

O comentador de “direita”: uma profissão de futuro
OBSERVADOR, 18/3/2017
O comentador de “direita” é o proverbial idiota útil. Útil para a esquerda no poder, que assim finge velar pela liberdade de expressão. Útil para os “media” avençados, que assim fingem “pluralismo”.
Graças ao milagre económico português, não só cai o desemprego como se levantam novos e fascinantes empregos. Caso o desejem, os portugueses realmente apetrechados para o ofício podem enveredar por uma carreira de comentador político, na imprensa ou, se lhes sair a sorte grande, na televisão, que dá “visibilidade” e tira a maçada de escrever. Aqui, as possibilidades são diversas, ainda que apenas uma valha a pena. Os comentadores de esquerda, com filiação partidária confessa ou pessimamente camuflada, já ocupam dois terços das vagas disponíveis. Os comentadores que não são de esquerda querem-se escassos, obsequiosos e, de preferência, calados. Pelo que se vê nos inúmeros programas de “debate” e similares, as oportunidades passam sobretudo pelo cargo, hoje imprescindível, de comentador de “direita”. As aspas resumem a coisa. Nos parágrafos abaixo, eu desenvolvo-a, de modo a fornecer aos presumíveis candidatos um guia profissional adequado.
1. O comentador de “direita” não é de direita, embora o apresentem à direita e ele pactue com a encenação. A julgar pelas opiniões de que se alivia, por exemplo o ardor com que defende o actual governo e execra o anterior, um ingénuo seria levado a pensar que o comentador de “direita” é de esquerda. Aliás, toda a gente, incluindo o próprio, pensa exactamente isso. O comentador de “direita” não necessita de uma filiação no PSD, mas esta pode ser um incentivo para tentar a expulsão e o subsequente martírio.
2. O comentador de “direita” mal disfarça o júbilo que lhe suscita um governo a reboque da extrema-esquerda. Dado que ninguém o confronta com tamanha bizarria, beneficia de rédea solta para elogiar o dr. Costa, que o comentador de “direita” considera uma personagem de gabarito. Também louva com empenho a “irreverência” das meninas do BE e a “coerência” do sr. Jerónimo. A cada dois meses, não é desajustada a referência simpática à dra. Cristas, a fim de provar que, ao invés de que sucede com Pedro Passos Coelho, é possível uma oposição construtiva. Na “óptica” do comentador de “direita” (por motivos que ignoro, é usual o comentador de “direita” vender óculos), oposição construtiva é aquela que evita a “crispação” e aplaude o governo.
3. O comentador de “direita” só pode apreciar líderes da direita se estes se chamarem Sá Carneiro, mesmo que na época de Sá Carneiro o comentador de direita frequentasse a creche ou os convívios do PCTP. Tolera-se a ocasional menção à dra. Ferreira Leite, a Marques Mendes, no fundo outros comentadores de “direita”, para legitimar encómios ao governo actual. Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho são interditos absolutos. Também podem evocar com grande nostalgia Mário Soares, a quem aparentemente devem tudo: a liberdade, a democracia, a alegria de viver e um almoço na Tia Matilde.
4. O comentador de “direita” deve justa, específica e activamente odiar Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho. O primeiro porque, cito, abusou dos poderes presidenciais, conspirou contra os governos do “eng.” Sócrates e ainda por cima escreveu um livro a contar tudo. O segundo porque correu com o “eng.” Sócrates, venceu o dr. Costa e nunca convidou o comentador de “direita” para o cargo que este, indubitavelmente, merecia. E ambos porque estão vivos.
5. O comentador de “direita” não pode admitir com franqueza que gosta do “eng.” Sócrates. Mas como de facto não desgosta do “eng.” Sócrates, condói-se imenso com o tratamento que o Ministério Público tem dispensado ao antigo governante. Acerca do tema, começa as intervenções com a imprescindível frase: “Sou insuspeito de ser um admirador do eng. Sócrates, mas…”. Ao “mas” segue-se lengalenga épica contra as cabalas, as escutas, as insinuações, as infâmias, a justiça “mediática”, o “Correio da Manhã”, o juiz Carlos Alexandre e o mundo em geral.
6. O comentador de “direita” tende a achar positivo o desempenho do prof. Marcelo, à superfície por via da “proximidade” e dos “afectos” (juro), no fundo por via do matrimónio entre o PR e o PM. Se, por absurdo, houver divórcio, o comentador de “direita” achará o desempenho do prof. Marcelo menos positivo.
7. O comentador de “direita” orgulha-se de ter amigos de esquerda. Se repararmos bem, o comentador de “direita” tem exclusivamente amigos de esquerda.
8. O comentador de “direita” não se limita a abominar a direita a que diz pertencer: quase tão má é a extrema-direita, cujas sombras, repete ele, ameaçam a Europa e os EUA. Misteriosamente, o apreço do comentador de “direita” pela moderação política termina no momento em que a coerência recomendaria a condenação de todos os imoderados. Vinte deputados “fascistas” na Holanda (ou o “populismo”) tiram-lhe alegadamente o sono. Quarenta deputados leninistas em Portugal (ou a “representatividade”) embalam-no como os anjos.
9. O comentador de “direita” alinha sempre com as “causas” do momento. Dos movimentos “gay” ao apoio a refugiados que linchariam “gays” mal pudessem, da liberalização das drogas “leves” à proibição dos refrigerantes, do aborto à eutanásia, o comentador de “direita” não perde tempo a ponderar a complexidade dos assuntos e assume imediata e histericamente a posição que lhe parece mais “progressista” e lhe assegura a bancada dos “progressistas” em futuros “Prós e Contras”, a consagração televisiva da ortodoxia. Passar por retrógrado assusta-o mais do que acordar em cuecas no Rossio.
10. O comentador de “direita” é o proverbial idiota útil. Útil para a esquerda no poder, que assim finge velar pela liberdade de expressão. Útil para os “media” avençados, que assim fingem “pluralismo”. Útil para ele, que assim ganha a vida mas não vergonha na cara. E útil para nós: o comentador de “direita” é consequência de um país triste, mas, se o contemplarmos na perspectiva que merece, é causa de muitas gargalhadas.

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