quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O dilúvio trumpista



Em 4 de Fevereiro José Pacheco Pereira debruçou-se sobre Trump, para ironizar contra os “trumpistas” nacionais, acentuadamente de direita (“A direita detesta o seu lado revolucionário e anticonservador, mas aceita-o mais do que o admite” (artigo do Público de 4/2, «Mais uma vez: o ascenso do “trumpismo” nacional») que conclui, com a acidez plácida de demiurgo fatalista, que de tudo dá conta e prevê os caminhos, quem sabe se encerrado ele próprio em mundo de aspirações e ambiguidades que as muitas leituras vão trazendo ao seu espírito sempre insatisfeito e sempre desejoso de alcançar o supremo saber, Fausto insaciável e dividido, com Mefistófeles atento e tenebroso a instigá-lo: ”Trump chegou à presidência americana num período de geral radicalização da direita e de destruição do centro. Trump e a direita portuguesa partilham os inimigos. Ora, na lógica dos mecanismos redutores da política dos dias de hoje, essa direita vai-se encostar cada vez mais a ele, tanto mais quanto Trump pareça ir perder, porque os seus adversários são os seus, e os inimigos dos meus inimigos meus inimigos são. A comunidade de adversários é, em tempos de crise, um poderoso factor de aproximação. Será muito pouco bonito de se ver, mas vai-se ver, ou melhor, já se está a ver.”
No Público de 7 de Fevereiro, em - “A instrumentalização do “trumpismo” para efeitos de política caseira” -  Paulo Rangel, que se sente atingido pelos doestos de Pacheco Pereira, embora repudiando a caracterização de “direita” relativamente a si, e não deixando de ironizar sobre a dimensão da palavra no conceito de PP  - “Mas como a noção de direita que, de uns anos a esta parte, Pacheco Pereira tem usado é de tal modo abrangente que parece abarcar todo e qualquer cidadão que esteja à direita do PS…” - contesta o seu parecer, contrapondo esse outro de «Em matrizes fundamentais de Trump, o PCP e o BE estão mais próximos do que a alegada direita», servindo-se de argumentos vários e exemplos, como o sobre o primeiro ministro que quando “em pleno debate quinzenal, diz queo maior partido português é um partido irrelevante e que não conta para nada”, esta frase está mais bem perto de Trump do que qualquer uma que tenhamos ouvido ao líder da oposição.» Julgo que se refere à deselegância e grosseria de António Costa, que, de resto, é nele habitual para com aqueles a quem usurpou a governação, os salamaleques e os sorrisos de derretimento, cínico embora, reservando-os para os que se prestaram à fraude e fingem aceitá-lo por conveniência própria.
E conclui:
«7. Pacheco Pereira está a ver mal. Mas à sua tese pode sempre replicar-se com uma outra, de idêntico calibre, já que quer pôr as coisas no plano da política doméstica. Afinal quem é capaz de estar a precisar de um “inimigo comum” como o pão para a boca é o tripé que segura a geringonça. É visível que já se esgotaram as metas programáticas e as fragilidades vêm cada vez mais à tona. O único cimento que a mantém unida é justamente o tal factor de agregação que apelida de inimigo comum e que, no caso, vem a ser o arco PSD-CDS. Ora, tentar identificar o “arco da direita” PSD-CDS com o “trumpismo” é uma maneira engenhosa de tentar unir as hostes e alimentar um inimigo comum. E de assim arranjar um argumento de último recurso, para salvar a frustre argamassa da geringonça: o PSD e o CDS seriam os aliados úteis e idiotas do “trumpismo”. Este argumento é tão inverosímil que de uma coisa estou certo: não fará curso.»
Mas o artigo ponderado de Esther Mucznik, do mesmo Público de 7/2, destituído da querela subjectiva de ataque pessoal que condiciona os protagonistas nacionais - O homem da melena amarela - parece fundamental numa análise centrada na figura em si, com as respectivas ligações a uma História assustadoramente repetitiva que permitem ilações pouco tranquilizadoras:
«No princípio não acreditámos que se candidatasse. Depois não acreditámos que seria o candidato dos republicanos, mas aconteceu. Em seguida, estávamos certos de que perderia, mas ganhou. No fim, pensámos que toda a verborreia destilada na campanha não passaria de gabarolice populista, mas enganámo-nos em toda a linha. Sem perder tempo, Donald Trump, o homem da melena amarela e um ego do tamanho da América, parece disposto a cumprir as suas promessas à risca, não como político que nunca foi, mas como patrão que nunca deixou de ser, despedindo quem não aceita as suas ordens, calando quem dele ousa discordar, abrindo ou fechando as portas do país, como se fosse a sua casa particular.
“A América primeiro. A América para os Americanos.” Onde é que já ouvimos isto? Os povos têm memória curta, mas há pelo menos um povo que não pode nem deve esquecer. Esse povo, o povo judeu, onde me incluo, não se pode dar a esse luxo porque a factura foi incomensurável. Devíamos lembrar-nos de que os pretensos salvadores só trazem desgraças, que a procura de bodes expiatórios só fomenta a violência, que alimentar os sentimentos de superioridade nacional, religiosa ou de pele  favorece o ódio e o ressentimento. E sobretudo não devíamos esquecer que tratar cada indivíduo não como tal, mas como parte de um colectivo indistinto, no qual todos são à partida suspeitos ou culpados, para além de iníquo é perigoso porque leva a que cada resposta seja também colectiva, juntando pessoas que à partida nem se identificam com o grupo em que as encerram.
A retórica do “Nunca mais”, mais do que desacreditada, deveria ser substituída pela “Nós lembramo-nos”. Como judeus, não podemos esquecer ao que levou a “Deutschland über alles” - a Alemanha acima de tudo. Não podemos esquecer que fomos colectivamente o bode expiatório e colectivamente designados como o inimigo causador de todos os males, não só da Alemanha, mas do mundo; tudo isso já estava escrito e claro, em 1924, por Hitler, no “Mein Kampf”, mas ninguém ligou. Não podemos esquecer que quando precisávamos desesperadamente de uma porta aberta, quase todas se fecharam, levando ao desfecho que se sabe. Não podemos esquecer que a estrada que pavimentou a tragédia foi a indiferença - hoje tanto mais gritante quanto todos vemos, ouvimos e sabemos tudo o que se passa em directo e no momento.
Diz-se que a história não se repete e de facto o contexto histórico é irrepetível. Mas a história dá sinais que deveriam funcionar como alertas nas nossas consciências. As medidas de Donald Trump - nomeadamente a proibição de entrada nos EUA das pessoas originárias de países maioritariamente muçulmanos, colectivamente consideradas como potenciais terroristas -- deveriam funcionar como alerta. Do ponto de vista ético, é uma medida iníqua e, politicamente, tem apenas como consequência, o avolumar do ódio e da violência. O inverso do que Trump alega pretender.
Sabemos que é assim que começa, mas não sabemos como acaba. Para mim, é claro que a minha liberdade e a minha segurança nunca se realizarão à custa da liberdade e da segurança de outros, sejam eles quem forem. Não tenho nenhuma dúvida que começando com muçulmanos, cristãos, negros, mexicanos ou chineses, eu também acabarei por ser atingida individual ou colectivamente. Basta ver que enquanto se processam as juras de amizade de Trump a Israel e aos judeus, sucedem-se ameaças de bomba nos Estados Unidos a centros comunitários, escolas e outras instituições judaicas - 18 ameaças apenas num mês, segundo a Jewish Telegraph Agency.
Não basta combater Trump, é preciso entendê-lo e ao novo mundo que ele de algum modo representa, escreve João Miguel Tavares, cujas crónicas leio regularmente com apreço. Acho que é verdade, só assim se pode entender como e porquê foi eleito, assim como as razões do reforço drástico dos extremos, da direita à esquerda em particular na Europa. Mas se é verdade que não devemos cair em falsas analogias, também não devemos ignorar os sinais da história. Estes têm, pelo menos, um, condão. O de levar mais a sério as ameaças.»


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