Quatro artigos de Teresa de Sousa, do Público, que nos
apresentam figuras do seu agrado - ou não - num desenvolvimento argumentativo
que marcam, simultaneamente, os seus entusiasmos - por Angela Merkel, Obama
e até mesmo António Costa, e uma leitura serena da realidade eleitoral
francesa - e os bons conhecimentos que colheu nas leituras gradas do seu
interesse, ou resultantes das suas próprias convicções orientadas com uma inteligência
isenta e clara. Um prazer de leitura:
I - Se não for ela, quem?
Público, 20 de Novembro de 2016
1. A quem devia o Presidente americano
entregar o testemunho do mundo livre que os Estados Unidos lideram desde há
mais de 70 anos? A resposta era simples, quanto mais não seja por exclusão de
partes. A velha “relação especial” forjada na II Guerra já deixou de ser o
que era. David Cameron nunca conseguiu conquistar a simpatia de Obama,
que via nele um líder demasiado vazio de convicções. Tinha razão. O anterior
primeiro-ministro ficará na História como o líder que levou o seu país a
abandonar a Europa, não por convicção mas por oportunismo. Theresa May, cuja
devoção europeia não é enorme, ainda não conseguiu descortinar um caminho para
levar o "Brexit" a bom porto. O seu chefe da diplomacia, que
infelizmente já ninguém respeita, considerou Trump uma oportunidade. Deve
ter sido antes do recado que o Presidente eleito enviou a May: “Se vier aos
EUA, dê-me um toque.” Para Obama, parar em Londres não faria grande
sentido. Em Paris, o fantasma de François Hollande vagueia tristemente pelos
belos salões do Eliseu. Foi um bom aliado de Obama, quando se tratou da Síria e
do combate ao Estado Islâmico. Mas a França está em “intervalo” até às eleições
da Primavera. Resta a chanceler que Obama definiu como “provavelmente, a
minha mais próxima parceira internacional.” É a líder do país mais
poderoso da Europa. Vai disputar um quarto mandato e não se vê quem lhe possa
fazer sombra. Conseguiu até agora manter a zona euro intacta (mesmo com
custos políticos e sociais enormes) contra a vontade de muita gente, incluindo
no seu próprio governo. Sem ela e sem o seu entendimento com Obama, a Europa
não tinha conseguido enfrentar o novo nacionalismo agressivo de Putin. Não tem
um pingo de carisma, ao contrário do seu interlocutor americano. Mas ambos têm
em comum um intelecto capaz de analisar racionalmente cada desafio para
chegarem a uma decisão. “É a única líder que resta”, escreve Philip Stevens no
Financial Times. “Com a tempestade trumpiana a avançar pelo Atlântico, a
Alemanha e a Europa parecem inimagináveis sem ela”. Como a imprensa americana
sublinhou, talvez com algum exagero, ela é hoje “a mais forte advogada da
democracia liberal na cena internacional”. No seu encontro com Obama, ambos
foram os porta-vozes do comércio livre e da globalização, mesmo que
corrigida, e das instituições multilaterais.
2. E o que é mais curioso é que levaram
quase cinco anos para se entenderem, o que corresponde ao tempo que a
chanceler precisou para compreender a responsabilidade do seu país à escala
europeia e internacional. Foi em Berlim (2008) que o então candidato à Casa
Branca fez o seu mais impressionante discurso aos europeus, perante 200 mil
pessoas que o aplaudiram em delírio. Teve de fazê-lo junto à coluna do Anjo da
Vitória, porque Merkel recusou-lhe a Porta de Brandeburgo. Quando, em 2009,
regressou à Europa (para o G20 e a cimeira da NATO), a chanceler ainda não
parecia impressionada com o novo Presidente. A BBC recorda que ela “não
gostou da atmosfera que rodeava o fenómeno Obama”. Na Líbia, em 2011, a
Alemanha absteve-se no Conselho de Segurança (membro rotativo) ao lado da
China, da Rússia e do Brasil, contra os votos dos seus parceiros
euro-atlânticos. Muito se escreveu então sobre o seu comportamento de
“potência emergente” e os riscos que comportava. Ignorou a intervenção da
França no Mali. Os atentados terroristas em Paris fizeram-na rapidamente mudar
de opinião. Nem vale a pena falar da sua primeira reacção à bancarrota iminente
da Grécia. Via a relação transatlântica como mais económica do que militar. A
Rússia fê-la perceber o contrário. Sem ela, teria sido impossível uma
frente comum contra as tentações belicistas de Putin. Obama descreveu-a como
uma parceira “constante, firme e confiável”. Hoje, perante o terramoto
americano, o Presidente vê-a como uma corajosa defensora dos valores da
democracia, num mundo que, como ele próprio disse, está a tender perigosamente
para um concerto de “homens fortes”. Elogiou-a pela sua política de portas
abertas para os refugiados. Hoje, tropas alemães estão a ajudar a França no
Mali e a participar no combate ao Estado Islâmico na Síria. Soldados alemães
vão estacionar nos Bálticos, numa missão de dissuasão da NATO dirigida a
Moscovo.
3. Ninguém esperava que a última
visita de Obama à Europa fosse o que foi. Podia ter sido a de um Presidente
que sai da Casa Branca com uma popularidade apenas equivalente à de Reagan e
que os europeus continuam a adorar, como uma rara fonte de inspiração. Quis
publicamente tranquilizar os europeus sobre a manutenção da NATO e mostrar ao
seu sucessor que Putin não dispensa uma política firme do Ocidente. A chanceler
sabe que, sem o apoio americano, não conseguirá manter uma frente unida contra
as ambições de Moscovo. Nos últimos dias, não houve líder europeu que não
manifestasse a sua devoção à NATO. Nenhum deles imaginou, apesar da
retórica anti-americana de alguns, que podia chegar o dia em que EUA deixariam
de garantir a sua segurança. O Presidente, porventura com o pensamento virado
para a América, exortou os europeus a não darem a democracia e a paz como
certas e a lutarem por elas. A Europa enfrenta igualmente uma vaga de
nacionalismo e de populismo a que Trump acaba de dar uma nova vida. Mas o
brilho das suas ideias esteve sempre acompanhado pela sombra do Presidente
eleito. Não era esta a América que queria deixar. Foi um Obama cansado,
envelhecido e triste que se apresentou em Berlim.
4. Não foi a Berlim para entregar
a Merkel o testemunho da liderança do mundo livre, como a imprensa americana
escreveu. Mas entregou-lhe o dever de manter a Europa unida, para fazer frente
à inevitável deriva americana para o isolacionismo e o proteccionismo. O que já
não é pouco. Não o fez com condescendência excessiva. Lembrou o papel crucial
dos Estados Unidos para resgatar a Alemanha do opróbrio, reconstruir a sua
economia e para mantê-la segura nos piores anos da Guerra Fria e, de novo, o
seu papel crucial para uma reunificação sem convulsões e no seio da Europa e da
NATO. A Alemanha continua a ser perseguida pela sua condição geopolítica:
demasiado grande para a Europa e demasiado pequena para o mundo. Não tem nem a
força, nem a vontade, nem a capacidade para liderar o mundo livre. As suas
forças armadas não intimidam ninguém. A sua liderança política tem sobretudo a
ver com a ausência total de alternativas. E, sobretudo, não está preparada para
pagar o custo elevado que acompanha a liderança e que a América sempre pagou.
Acresce que as crises tendem sempre a invocar o passado e o passado da Alemanha
foi demasiado invocado, nesta crise europeia. É uma limitação do seu poder que
Joshka Fischer resumiu numa frase. Disse ele, citado pela Economist, que há uma
coisa que os alemães nunca poderão dizer: “Vamos fazer a Alemanha grande
outra vez”. E não é só isso. Escreve Hans Kundnani, do German Marshall Fund: “A
Europa está dividida pela crise do euro. Como pode agora unir-se sob liderança
alemã?” Boa pergunta.
Poderá
a Europa sobreviver a Trump? Poderá tentar manter viva a chama dos valores que
unem o Ocidente? Foi o que Obama veio, mais modestamente, pedir a Merkel. Não
vale a pena sermos demasiado optimistas. São péssimas as notícias que nos
chegam da Trump Tower. E a Europa vai entrar numa montanha russa eleitoral que
corre o risco de nem sequer chegar ao fim.
27
de Novembro de 2016
1. Enquanto a direita chega ao fim da
batalha para escolher o seu candidato ao Eliseu, à esquerda os jogos ainda não
estão feitos. Os candidatos reais ou potenciais começam a marcar terreno, do
actual primeiro-ministro, Manuel Valls, ao seu ex-ministro da Economia Emmanuel
Macron, passando por Jean-Luc Mélenchon, da esquerda radical. Falta a
clarificação de François Hollande que o Presidente teima em adiar até ao último
minuto. Mas à esquerda, tal como à direita, não há vencedores à partida, num
cenário político que, como se viu com François Fillon, passou a ter um grau de
imprevisibilidade muito elevado. Haverá, também à esquerda, um candidato
“escondido” capaz de operar uma reviravolta inesperada? É pouco provável, a
não ser o próprio Hollande. As primárias dos socialistas são já em Janeiro. O
quadro ficará finalmente completo para as presidenciais de 23 de Abril
(primeira volta).
François
Hollande foi um erro de casting que não deixará saudades. A sua popularidade é
mínima. Se quiser candidatar-se, terá de sujeitar-se às primárias socialistas.
Só isto representa uma humilhação, única na V República, em que os presidentes
eram livres de se candidatar a um segundo mandato. O mais afectado pelo seu
silêncio é Manuel Valls, amarrado (ainda) pela sua lealdade ao Presidente.
Hollande foi eleito porque os franceses queriam “tudo menos Sarkozy”. Nunca
conseguiu afirmar-se com brilho próprio e preencher o molde que De Gaulle
formatou para quem lhe sucedesse no Eliseu.
2. Entretanto, a Europa e o mundo
estão em mudança acelerada, com consequências imprevisíveis, que se reflectem
necessariamente na paisagem política francesa. À direita regressou a França
burguesa e conservadora, baralhando o jogo das primárias que termina hoje com a
vitória mais do que provável de François Fillon. Dizem alguns analistas que
ele pode ser o pior cenário para Marine Le Pen, cuja candidatura continua a
liderar as sondagens. À esquerda Emmanuel Macron já está
implantado no terreno. Abandonou o Governo em Agosto, criou o seu próprio
movimento (En Marche), adoptou uma nova linguagem para tentar colocar a
sua candidatura fora do sistema partidário, que considera “bloqueado” e incapaz
de responder às exigências do século XXI. “A França é governada com ideias
do anos 80”, disse ao Monde. Os “elefantes” do PS detestam-no. Gostariam
que se submetesse às primárias, a única forma de poder controlá-lo. Ele já
disse que não. Rejeita a dicotomia esquerda-direita no país que inventou o
conceito. Apresenta-se como um outsider. Frequentou as mesmas escolas de elite
por onde passa quase toda a classe dirigente francesa. Mas fez um intervalo
para trabalhar num banco de investimento (dos Rothschild), orgulhando-se de ter
acumulado um pé-de-meia que lhe garante a independência da política. Era o mais
popular dos ministros do Governo de Valls.
Não
conseguiu reformar grande coisa, mas pode sempre alegar que não o deixaram. Já
tem uma estrutura com quase 100 mil inscritos e organizações em praticamente
todas as regiões da França. Com a mais que provável saída de cena de Alain
Juppé, abre-se-lhe algum espaço ao centro. Acaba de publicar um
livro, Revolução, que, mais do que um programa, serve para o situar no
devir histórico da França do pós-guerra. É difícil catalogá-lo com os critérios
habituais. Liberal? Sim, ma non troppo. Social-democrata? Também.
Populista? O necessário. Falta-lhe gravitas, mas tem 38 anos e pode olhar para
o futuro, se não for esta a sua vez. No livro regressa a De Gaulle, o
Presidente que simbolizou a “grandeza” da França, mas que teve, ao mesmo tempo,
a coragem de acabar com o domínio colonial francês, para poder salvar a sua
parte europeia. Reclama a linhagem de Michel Rocard, o líder da “segunda
esquerda” que chegou a ser primeiro-ministro de Mitterrand (embora se
considerasse o seu oposto), defendendo o “rigor” das contas públicas e o
parler vrai. Desde que saiu do Governo, Macron mantém com Manuel Valls
uma “guerra fria”, escreve a AFP, que aquecerá quando o actual
primeiro-ministro apresentar a sua candidatura. Percebe-se porquê. Valls
ocupou durante muito tempo o posto de iconoclasta entre os socialistas,
situando-se à direita, mais liberal na economia e sem medo de encarar de frente
os problemas reais da imigração e da sua perigosa mistura com os deserdados da
globalização (que alimentam a Frente Nacional), sem medo de dizer algumas
verdades que incomodam normalmente a esquerda. Vê agora a sua “marca de origem”
roubada por Macron. Os seus apoiantes vão deixando cair que será
candidato, quer Hollande queira, quer não queira. As críticas que o actual
Presidente lhe faz, no seu polémico livro de confissões a dois jornalistas do
Monde, aumentam a sua margem de manobra. Já disse que não tenciona ir colar
cartazes para Hollande. Diz normalmente o que os seus adversários socialistas
não dizem: que Marine Le Pen pode ganhar o Eliseu e que a Europa pode implodir.
Ainda não definiu qual vai ser a direcção da sua candidatura: unir a esquerda
ou continuar a olhar para o centro. Trump e Macron baralharam-lhe as voltas.
Arnaud de Montebourg, que representa a ala esquerda do PS, já disse que irá às
primárias. Jean-Luc Mélenchon, o candidato da esquerda radical, consegue um
score razoável (13 a 15 por cento), beneficiando do impasse entre os
socialistas. Como noutros países europeus e nos EUA, o seu discurso prova que
os extremos, se não se tocam, pelo menos aproximam-se. Simpatiza com Putin, não
gosta de acordos comerciais, como Trump, e já chegou a reconhecer que os
imigrantes tiram trabalho aos franceses.
Quer
acabar com a V República, com a ideia peregrina de convocar uma
assembleia constituinte cujos membros serão tirados à sorte entre todos os
franceses. A Europa, a não ser para os que não gostam dela, como Le Pen ou
Mélenchon, ainda não entrou a fundo na campanha. Ou entrou por vias travessas. O
sinal mais preocupante talvez seja a presença de Trump e de Putin na definição
política dos candidatos, como nunca se tinha visto até agora. O Presidente
russo já “participou” nas eleições americanas. Agora, “participa” nas
francesas, como um bom amigo de François Fillon e um bom companheiro de Le Pen.
A direita francesa, formatada por De Gaulle, manteve sempre viva uma forte
tendência antiamericana. Como noutras ocasiões, são os socialistas que percebem
melhor até que ponto a relação transatlântica é importante para a Europa.
Mitterrand foi a prova disso (da crise dos mísseis SS20 à primeira guerra do
Golfo), embora tenha sido Sarkozy a decidir o regresso da França à estrutura
militar da Aliança, de onde o general a retirara. François Hollande não foi
excepção. Nem Valls nem Macron falam de qualquer aproximação a Moscovo, ao
contrário de Fillon. Juppé sempre foi um europeísta, enquanto o seu rival
se inclinava para uma posição mais reservada.
3. As eleições francesas, daqui a cinco meses, terão um efeito profundo no futuro da Europa. As hipóteses de o candidato de centro-esquerda, seja ele quem for, chegar à segunda volta continuam a ser pequenas. Os socialistas têm hoje plena consciência de que só um milagre ou um “cisne negro” que não veremos chegar podem abrir-lhes de novo as portas do Eliseu. Não é ainda possível avaliar o efeito Fillon na repartição dos votos da direita com Marine. Mas este é também um factor fundamental para fazer as contas das presidenciais. Marine é dada como certa. O problema é que cinco meses passaram a ser, nos dias que correm, uma eternidade. Tudo pode sempre acontecer.
3. As eleições francesas, daqui a cinco meses, terão um efeito profundo no futuro da Europa. As hipóteses de o candidato de centro-esquerda, seja ele quem for, chegar à segunda volta continuam a ser pequenas. Os socialistas têm hoje plena consciência de que só um milagre ou um “cisne negro” que não veremos chegar podem abrir-lhes de novo as portas do Eliseu. Não é ainda possível avaliar o efeito Fillon na repartição dos votos da direita com Marine. Mas este é também um factor fundamental para fazer as contas das presidenciais. Marine é dada como certa. O problema é que cinco meses passaram a ser, nos dias que correm, uma eternidade. Tudo pode sempre acontecer.
III - Abraço do urso? Puro engano
11 de Dezembro de 2016
1. Qual é a estratégia de
poder do primeiro-ministro para o médio prazo? A pergunta surgiu agora,
com o primeiro aniversário do Governo, porque, para muita gente, a experiência
teria sempre de correr mal, dada a absoluta incompatibilidade entre os
compromissos de António Costa com a Europa e os seus compromissos com o PCP e o
Bloco. Hoje, já se caiu no exagero oposto. A própria oposição de direita
já diz que o Governo não vai cair e que, portanto, o melhor é aceitar esse facto
e tirar partido dele, em vez de esperar sentado pela sua queda. Nem
tanto ao mar, nem tanto à terra. O Governo do PS atravessa os mesmos riscos
de qualquer governo europeu, dos quais a incerteza é certamente o maior. As
coisas podem estar a correr bem por cá, mas somos demasiado frágeis para evitar
que um qualquer acontecimento europeu ou internacional altere radicalmente a
situação portuguesa. Apenas um exemplo, mesmo que extremo. Só nos últimos
dias, dois colunistas tão reputados como Timothy Garton Ash e Gideon Rachman
escreveram que a hipótese de Marine Le Pen ganhar as eleições francesas não
deve ser totalmente descartada.
A
segunda questão em debate sobre o que vai na cabeça do primeiro-ministro é
igualmente interessante. Para alguns analistas, o que o líder socialista
quer é apenas estar em condições de ganhar uma maioria absoluta e dispensar os
outros dois elementos da coligação que sustenta o seu Governo no Parlamento.
É legítimo que os partidos de governo queiram ganhar maiorias que lhes permitam
pôr em prática os seus programas. Mas é não conhecer o primeiro-ministro pensar
que ele só quer as alianças para chegar onde não conseguiu nas últimas
eleições. António Costa acredita mesmo que estava na hora de pôr em prática
uma experiência de governo que acabasse com a “bipolarização imperfeita” que
dominou a política nacional nas primeiras décadas da democracia, quando o PS
teve de derrubar a tentativa comunista de tomar conta do poder em Portugal,
substituindo uma ditadura por outra. É uma alteração estrutural e não
meramente táctica, e só o futuro dirá quais serão as suas consequências.
Mas uma é imediatamente evidente. Enquanto esta solução funcionar, Portugal
evita o populismo de esquerda, que afecta sobretudo os nossos parceiros do Sul.
Até
agora, o primeiro-ministro conseguiu gerir as dificuldades da coligação com uma
facilidade que ninguém previa, mas que também tem os seus custos, ao diluir a
visão do PS para o país. Com a aprovação do Orçamento para 2017, os seus dois
parceiros tiveram ganhos suficientes para apresentar às suas bases de apoio. No
futuro, essa tranquilidade pode ser posta à prova de forma mais radical.
2. Na outra frente de
batalha, em Bruxelas, as coisas também correram razoavelmente. Melhor agora
do que com a negociação do primeiro Orçamento, apesar da má vontade política
que se mantém em Berlim, com Wolfgang Schäuble a passar todos os limites. António
Costa apostou em demonstrar a Bruxelas que o seu compromisso com o euro (e com
a Europa) era a sério. Foi o que fez até agora. Se Portugal sair do processo de
défice excessivo (o que deverá acontecer) e se cumprir as metas negociadas,
terá uma maior legitimidade à mesa do Conselho Europeu para fazer valer as suas
posições num debate sobre o futuro da Europa que é urgente fazer. A maior
dificuldade é que, em meia dúzia de meses, viu os seus parceiros socialistas
tombar estrondosamente. François Hollande vai sair de cena sem
grandeza nem prestígio. Pedro Sánchez teve o mesmo destino, provando a
sua incapacidade para gerir a crise política que manteve a Espanha quase um ano
sem governo, depois de duas eleições. A ascensão do Podemos transformou-se
numa séria ameaça à sobrevivência dos socialistas. Mas, ao mesmo tempo, a
crise revelou um partido (irmão do Bloco) onde o tacticismo e o oportunismo são
ainda maiores do que nos partidos democráticos tradicionais. Na Itália,
Matteo Renzi, um reformista e um bulldozer que decidiu
arriscar tudo para levar em frente uma das suas reformas políticas mais
importantes, acaba de cair com estrondo e grande preocupação para a Europa.
Costa vai ter de esperar até às eleições alemãs, em Setembro do próximo ano,
para colocar sobre a mesa questões que hoje ainda são “proibidas” (como a
dívida). Terá os seus parceiros à perna, criando um ruído de fundo incómodo
para o PS e para o Governo. Terá de navegar à vista perante uma Europa que está
a jogar o seu futuro e que, também ela, deixou em boa medida de ser previsível.
Com a agitação no PSD, que não deverá acabar tão cedo, também tem de ter
atenção à instabilidade que pode criar na política interna. O populismo tem a
particularidade de se introduzir nos interstícios dos partidos do sistema, às
vezes sem que ninguém dê conta.
3. A segunda prova que
este Governo passou com distinção diz respeito à política externa e europeia,
que se distingue totalmente dos seus dois parceiros de coligação. Não
tergiversou um milímetro. O mérito cabe em boa medida ao ministro dos Negócios
Estrangeiros, que conseguiu manter acima de qualquer discussão as grandes
linhas pelas quais o PS se cose nesta frente essencial. Augusto Santos Silva
não se afastou da tradicional visão euro-atlântica da Europa: privilegiar a
NATO. O que não quer dizer que Portugal não apoie uma iniciativa
franco-alemã com pés e cabeça que reforce a capacidade militar da Europa, num
tempo em que tudo muda à sua volta, inclusivamente em Washington. Em
matéria de comércio livre (sobretudo nas negociações do TTIP), o Governo
manteve a mesma posição, fiel à abertura dos mercados como factor essencial de
crescimento das economias europeias — muito longe de qualquer tentação
proteccionista. Não é preciso lembrar que, para o PCP, a Europa é uma
organização capitalista e militarista, para já não falar da NATO. É chocante
ver um Congresso dos comunistas declarar o seu apoio ao regime de Damasco. Mas
o PCP consegue fazer isso, recorrendo à velha regra de Cunhal que, quando
alguém lhe perguntava pelo Gulag, respondia que o que interessava era Portugal.
Já o Bloco é outra coisa. O modelo é a Venezuela, que não é propriamente simpático
de nenhum ponto de vista: democrático, económico, social. E que hoje se
transformou num total desastre. A Europa que defendem não é bem esta, mas
também não é bem aquela. Ainda não conseguiram apresentar uma alternativa
consistente, preferindo uma constante “guerrilha” que crie alguma tensão e
alguma atenção. A sua lógica não tem nada que ver com o PCP. Querem entrar no
PS para o transformar por dentro. É um sonho legítimo que outros antes deles
também tiveram, mas por enquanto muito longínquo. Com o Orçamento aprovado,
espera-se que a sua agenda política não seja demasiado desestabilizadora.
Mas
desiludam-se os que pensam que Costa só está à espera do melhor momento para
acabar com a coligação e fazer-se eleger com muito mais conforto. A sua ideia é
a oposta: governar o tempo suficiente para ver o país voltar ao crescimento
económico e a uma sociedade menos desigual, deixando ao mesmo tempo um sistema
político assente em duas pernas de força equivalente. É por isso que António
Costa quer tempo, dispensando um “abraço de urso” que elimine a concorrência.
IV - Trump depois de Obama? A História dirá quem
prevaleceu .
31/12/16
1-Num documentário sobre o “legado de
Obama”, transmitido pela CNN na segunda-feira, Fared Zakaria, o célebre
jornalista americano autor de dois livros quase premonitórios — The Post-American World, 2008, e The Future of Freedom: iliberal democracy, home
and abroad, 2003 —, passa em revista os grandes momentos,
incluindo êxitos e fracassos, dos seus dois mandatos confrontando o Presidente
com cada um deles e com as declarações tweetadas por Donald Trump quase
diariamente sobre a sua intenção de lhes pôr fim. Desde o Obamacare,
o mais polémico dos legados de Obama, que sete presidentes democratas tentaram
antes dele, até ao acordo nuclear com Teerão, da liberdade total de
porte de arma ao abandono de qualquer responsabilidade internacional, a não ser
aquela que beneficie directamente os Estados Unidos. A ruptura não podia ser
mais radical, nos antípodas da doutrina que Obama elaborou nos seus oito anos
intensos de mandato: uma nova forma de liderança americana capaz de incluir
as profundas mudanças desencadeadas pelo fim da Guerra Fria e pela era da
globalização.
A
direita republicana (incluindo velhos atlantistas moderados como
John MacCain, que olham para Trump com horror) acusa-o de ter
enfraquecido a América no mundo, lesando o respeito (ou, talvez, o medo) de
adversários e aliados perante a única superpotência mundial. Obama
chegou a Washington com a intenção de provar que havia outro significado
para a palavra “forte”, para além da rapidez com que a nação americana está
disposta a apertar o gatilho, mas em muitos outros factores, entre eles a
economia e a sua capacidade de cooperar com os aliados ou estender a mão aos
inimigos, se estes abrirem o punho. Disse-o no seu primeiro discurso
inaugural. Cumpriu-o em Teerão e em Havana. Retirou do Iraque, mas aumentou
a força americana no Afeganistão. Foi pragmático e realista tanto quanto foi
necessário. Sairá provavelmente com a mágoa profunda de ver Donald Trump
suceder-lhe na Casa Branca. Ainda não é um balanço. A despedida começa
agora.
Nos
últimos dias, uma outra entrevista do Presidente, desta vez ao seu principal
estratego eleitoral, David Axelroad, agora a trabalhar num think-tank de
Chicago, dominou a agenda mediática. Obama disse que, se lhe fosse permitido
um terceiro mandato, acreditava que o poderia ganhar. Era uma figura de
retórica para sublinhar que haverá ainda uma maioria de americanos que
concordam com aquilo que fez. O que disse tem alguma razão de ser. Sai com
uma popularidade invejável para qualquer Presidente em fim de carreira.
Ligeiramente superior à de Reagan, muitíssimo superior à de Bush (filho), que
lhe deixou uma das mais pesadas heranças que um Presidente pode receber de
outro, desde uma economia em colapso até duas guerras sem fim e já sem
objectivo. Apenas Bill Clinton abandonou a presidência com uma popularidade
superior, mas o mundo parecia ainda um mar tranquilo no qual o 42.º Presidente
tinha sabido navegar.
2. Onde está hoje
o “skinny little kid with a
funny name”, como recorda a Economist, que se despede
com o cabelo cada vez mais grisalho e as rugas mais vincadas, mas ainda
igualmente elegante, jovem (em comparação com Trump, quinze anos mais velho) e
com o mesmo sorriso contagiante com que maravilhou o mundo em 2008, apenas
ensombrado por uma vaga mas indisfarçável tristeza? No documentário
de Fared Zakaria há dois momentos em que o Presidente não consegue conter as
lágrimas. Quando fala sobre a escola primária de Newton onde 21 crianças entre
os cinco e os dez anos foram abatidas a tiro por um adolescente. Ou
quando, em Charleston, Agosto de 2015, um outro jovem disposto a “iniciar uma
guerra racial” matou sete pessoas de origem afro-americana numa igreja
metodista. “Nenhum dos 43 presidentes que o precederam podia ter feito o que
ele fez”, diz Nick Bryant, da BBC. “Soou como um sermão nalguns momentos, como
um discurso do estado da União noutros (...), parecia que estávamos a ouvir
Martin Luther King através da sua voz.” Nesta cerimónia comovente, Obama junta,
num poderoso e raro discurso sobre o conflito racial, duas das suas maiores
mágoas: a impotência face à liberdade de porte de arma; o resultado
frustrante (não para ele, que nunca esperou outra coisa) da sua eleição, vista
pela comunidade afro-americana como uma esperança que afinal não foi. Os
confrontos recorrentes entre essas comunidades e a polícia recrudesceram. Obama
procurou sempre uma atitude moderada, que muitos viram como distante. Há dois livros
fundamentais para iniciar o balanço da sua presidência, agora que é preciso
olhar para ela como um todo. O que o revelou a milhões de pessoas que, de
repente, quiseram saber quem era aquele “skinny little kid” com uma capacidade
oratória capaz de electrizar qualquer audiência. Dreams of My Father, uma
autobiografia imensamente bem escrita na qual conta a sua história americana,
desde o ajuste de contas com a raça para escolher a sua verdadeira identidade
aos anos de aprendizagem nos bairros pobres de Chicago ou na Harvard Law School
onde o seu intelecto fez dele uma figura dominante. O segundo, The Audacity of
Hope, é a visão com que se apresentará às eleições, mesmo estando ainda a
uma longa distância de lá chegar, incluindo um olhar crítico sobre a sociedade
americana, com as suas enormes oportunidades e as suas
profundas injustiças, e do lugar e do papel do seu país no mundo, o único
ainda capaz de fazer a diferença. O terceiro vértice deste triângulo que o
define é o seu célebre discurso de Boston, no Verão de 2004, quando pura e
simplesmente arrebatou a Convenção Democrata que escolheria John Kerry para
desafiar o segundo mandato de Bush. Ainda não era sequer senador federal, mas
apenas do estado do Illinois, o mesmo de onde Lincoln partira.
Mudou
a forma de decidir o uso da força? Só o futuro o dirá. Mudou o modo de liderar
da América? Depende do que Trump fizer. Mas Obama não foi um Presidente
pacifista.
3. Oito anos depois, é um
Presidente pragmático e realista que abandona a Casa Branca, à espera de que a
História lhe faça justiça. Queria concentrar-se nas reformas domésticas,
mas o mundo nunca o deixou descansado, exigindo-lhe uma atenção permanente e
decisões extremamente difíceis. Chegou para acabar com as duas guerras de Bush,
mas, como lembra a Economist, esteve em guerra durante todos os anos dos seus
mandatos. Considerou que os EUA gastavam demasiado capital político e
diplomático num Médio Oriente incapaz de se modernizar. O Médio Oriente não o
deixou em paz. Olhou sempre para a Rússia como uma mera potência regional em
decadência, com um arsenal nuclear demasiado grande. Putin tentou
demonstrar-lhe o contrário na crise ucraniana (à qual conseguiu responder com a
firmeza necessária e o apoio europeu) e na tragédia da Síria. É o lado mais controverso
da sua política externa, uma consequência das Primaveras Árabes que não viu
chegar, embora fossem de algum modo o resultado do seu célebre discurso do
Cairo, incentivando os jovens a lutar pelo seu futuro. O seu objectivo, quando
venceu as eleições pela primeira vez, não era apenas terminar a guerra do
Iraque, à qual se opôs publicamente (um dos raros democratas a fazê-lo). Era
muito mais do que isso. Era mudar a forma de pensar das elites de Washington
sobre a relação da América com o mundo, fossem elas mais liberais ou mais
conservadoras. Queria libertá-las de um modelo binário que resumia as suas
opções entre bombardear ou não fazer nada. Quase todas as suas decisões de
política externa foram avaliadas por este critério, incluindo aquelas em que
aceitou o uso da força mas entregou aos aliados a liderança da guerra. Aconteceu
na Líbia, quebrando um outro tabu: nunca entregar a ninguém a liderança de uma
operação militar que envolva tropas americanas. Na Líbia, entregou o
comando ao Reino Unido e à França, mas garantiu as operações militares para as
quais os europeus não tinham capacidade (antes dos raides aéreos, a frota naval
americana tratou de eliminar as defesas líbias com os seus mísseis tomahawk a
um milhão de dólares por disparo). No seu último discurso na ONU, lamentou
publicamente o facto de ninguém, a começar por ele, se ter preocupado com o
que se seguiria após a eliminação de Khadafi. Na Síria, resolveu a
questão das armas químicas, que tinha definido como a linha vermelha que Assad
não poderia atravessar, aceitando a intermediação de Putin. As armas
foram todas retiradas e destruídas. O objectivo estava cumprido e Obama não
tencionava abrir outra frente de guerra no Médio Oriente. Centrou o objectivo
militar no combate ao Estado Islâmico. Contou com o apoio dos aliados europeus.
O Daesh pode hoje estar enfraquecido, mas isso não evitou a tragédia de
Alepo, apenas a mais visível. Será difícil provar que havia outra solução
melhor, se Obama tivesse decidido colocar botas no terreno. Porém, os analistas
convergem em que se criou um vazio que Moscovo tratou de preencher e Teerão
também.
4. O uso da força apenas como último
recurso foi uma componente fundamental da sua doutrina de segurança e defesa.
Pode não ter tido muito êxito, mas colocou as decisões em parâmetros novos.
Sabia que, em algumas ocasiões, era necessária e sabia também que era
dissuasora. Provou-o no Irão. Partiu do princípio de que, se todas
as anteriores tentativas de pôr cobro ao programa nuclear iraniano tinham
falhado, era a altura de experimentar um nova, desafiando Teerão a negociar.
Washington temia uma qualquer loucura de Israel. Ao contrário dos
republicanos, cuja estratégia foi sempre a do quanto pior, melhor, valorizava
os ganhos políticos dos moderados do regime. Contou com a ajuda preciosa dos
europeus, mas também de Moscovo e de Pequim. Bush não fizera nada. Ele
começou pelas sanções (Clinton dizia que eram para “aleijar”), que atingiram
duramente a economia iraniana. Chamou os generais e disse-lhes que
tinham de pôr de pé uma força militar capaz de mostrar in loco a Teerão que o
uso da força continuava em cima da mesa. O Pentágono fez o que pôde. Foi uma
negociação extremamente difícil, mas fundamental para impedir uma impensável
corrida à bomba atómica numa das regiões mais instáveis do mundo. O resultado
pode não ser perfeito. Nenhuma negociação pode ter essa pretensão. Mas abriu as
portas a uma verificação internacional transparente. O Presidente correu um
enorme risco ao manter secretos os primeiros meses da negociação. Se houvesse
uma fuga, o processo acabava e Obama ficaria numa posição de enorme
fragilidade. Não houve. Os republicanos viram neste acordo mais uma “fraqueza”.
Trump anunciou que acabaria com ele. Em Havana, Obama seguiu o mesmo modelo,
sem necessidade de dissuasão militar. Uma inesperada troca de palavras com Raúl
Castro no funeral de Mandela foi o sinal de que alguma coisa se passava. Mudou
a forma de decidir o uso da força? Só o futuro o dirá. Mudou o modo de liderar
da América? Depende do que Trump realmente fizer. Mas Obama não foi um
Presidente pacifista, nem o conceito de “retraimento estratégico” pode ser
aplicada sem nuances à sua presidência.
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