sábado, 7 de janeiro de 2017

Teresa de Sousa



Quatro artigos de Teresa de Sousa, do Público, que nos apresentam figuras do seu agrado - ou não - num desenvolvimento argumentativo que marcam, simultaneamente, os seus entusiasmos - por Angela Merkel, Obama e até mesmo António Costa, e uma leitura serena da realidade eleitoral francesa - e os bons conhecimentos que colheu nas leituras gradas do seu interesse, ou resultantes das suas próprias  convicções orientadas com uma inteligência isenta e clara. Um prazer de leitura:

I - Se não for ela, quem?
Público, 20 de Novembro de 2016
1. A quem devia o Presidente americano entregar o testemunho do mundo livre que os Estados Unidos lideram desde há mais de 70 anos? A resposta era simples, quanto mais não seja por exclusão de partes. A velha “relação especial” forjada na II Guerra já deixou de ser o que era. David Cameron nunca conseguiu conquistar a simpatia de Obama, que via nele um líder demasiado vazio de convicções. Tinha razão. O anterior primeiro-ministro ficará na História como o líder que levou o seu país a abandonar a Europa, não por convicção mas por oportunismo. Theresa May, cuja devoção europeia não é enorme, ainda não conseguiu descortinar um caminho para levar o "Brexit" a bom porto. O seu chefe da diplomacia, que infelizmente já ninguém respeita, considerou Trump uma oportunidade. Deve ter sido antes do recado que o Presidente eleito enviou a May: “Se vier aos EUA, dê-me um toque.” Para Obama, parar em Londres não faria grande sentido. Em Paris, o fantasma de François Hollande vagueia tristemente pelos belos salões do Eliseu. Foi um bom aliado de Obama, quando se tratou da Síria e do combate ao Estado Islâmico. Mas a França está em “intervalo” até às eleições da Primavera. Resta a chanceler que Obama definiu como “provavelmente, a minha mais próxima parceira internacional.” É a líder do país mais poderoso da Europa. Vai disputar um quarto mandato e não se vê quem lhe possa fazer sombra. Conseguiu até agora manter a zona euro intacta (mesmo com custos políticos e sociais enormes) contra a vontade de muita gente, incluindo no seu próprio governo. Sem ela e sem o seu entendimento com Obama, a Europa não tinha conseguido enfrentar o novo nacionalismo agressivo de Putin. Não tem um pingo de carisma, ao contrário do seu interlocutor americano. Mas ambos têm em comum um intelecto capaz de analisar racionalmente cada desafio para chegarem a uma decisão. “É a única líder que resta”, escreve Philip Stevens no Financial Times. “Com a tempestade trumpiana a avançar pelo Atlântico, a Alemanha e a Europa parecem inimagináveis sem ela”. Como a imprensa americana sublinhou, talvez com algum exagero, ela é hoje “a mais forte advogada da democracia liberal na cena internacional”. No seu encontro com Obama, ambos foram os porta-vozes do comércio livre e da globalização, mesmo que corrigida, e das instituições multilaterais.
2. E o que é mais curioso é que levaram quase cinco anos para se entenderem, o que corresponde ao tempo que a chanceler precisou para compreender a responsabilidade do seu país à escala europeia e internacional. Foi em Berlim (2008) que o então candidato à Casa Branca fez o seu mais impressionante discurso aos europeus, perante 200 mil pessoas que o aplaudiram em delírio. Teve de fazê-lo junto à coluna do Anjo da Vitória, porque Merkel recusou-lhe a Porta de Brandeburgo. Quando, em 2009, regressou à Europa (para o G20 e a cimeira da NATO), a chanceler ainda não parecia impressionada com o novo Presidente. A BBC recorda que ela “não gostou da atmosfera que rodeava o fenómeno Obama”. Na Líbia, em 2011, a Alemanha absteve-se no Conselho de Segurança (membro rotativo) ao lado da China, da Rússia e do Brasil, contra os votos dos seus parceiros euro-atlânticos. Muito se escreveu então sobre o seu comportamento de “potência emergente” e os riscos que comportava. Ignorou a intervenção da França no Mali. Os atentados terroristas em Paris fizeram-na rapidamente mudar de opinião. Nem vale a pena falar da sua primeira reacção à bancarrota iminente da Grécia. Via a relação transatlântica como mais económica do que militar. A Rússia fê-la perceber o contrário. Sem ela, teria sido impossível uma frente comum contra as tentações belicistas de Putin. Obama descreveu-a como uma parceira “constante, firme e confiável”. Hoje, perante o terramoto americano, o Presidente vê-a como uma corajosa defensora dos valores da democracia, num mundo que, como ele próprio disse, está a tender perigosamente para um concerto de “homens fortes”. Elogiou-a pela sua política de portas abertas para os refugiados. Hoje, tropas alemães estão a ajudar a França no Mali e a participar no combate ao Estado Islâmico na Síria. Soldados alemães vão estacionar nos Bálticos, numa missão de dissuasão da NATO dirigida a Moscovo.
3. Ninguém esperava que a última visita de Obama à Europa fosse o que foi. Podia ter sido a de um Presidente que sai da Casa Branca com uma popularidade apenas equivalente à de Reagan e que os europeus continuam a adorar, como uma rara fonte de inspiração. Quis publicamente tranquilizar os europeus sobre a manutenção da NATO e mostrar ao seu sucessor que Putin não dispensa uma política firme do Ocidente. A chanceler sabe que, sem o apoio americano, não conseguirá manter uma frente unida contra as ambições de Moscovo. Nos últimos dias, não houve líder europeu que não manifestasse a sua devoção à NATO. Nenhum deles imaginou, apesar da retórica anti-americana de alguns, que podia chegar o dia em que EUA deixariam de garantir a sua segurança. O Presidente, porventura com o pensamento virado para a América, exortou os europeus a não darem a democracia e a paz como certas e a lutarem por elas. A Europa enfrenta igualmente uma vaga de nacionalismo e de populismo a que Trump acaba de dar uma nova vida. Mas o brilho das suas ideias esteve sempre acompanhado pela sombra do Presidente eleito. Não era esta a América que queria deixar. Foi um Obama cansado, envelhecido e triste que se apresentou em Berlim.
4. Não foi a Berlim para entregar a Merkel o testemunho da liderança do mundo livre, como a imprensa americana escreveu. Mas entregou-lhe o dever de manter a Europa unida, para fazer frente à inevitável deriva americana para o isolacionismo e o proteccionismo. O que já não é pouco. Não o fez com condescendência excessiva. Lembrou o papel crucial dos Estados Unidos para resgatar a Alemanha do opróbrio, reconstruir a sua economia e para mantê-la segura nos piores anos da Guerra Fria e, de novo, o seu papel crucial para uma reunificação sem convulsões e no seio da Europa e da NATO. A Alemanha continua a ser perseguida pela sua condição geopolítica: demasiado grande para a Europa e demasiado pequena para o mundo. Não tem nem a força, nem a vontade, nem a capacidade para liderar o mundo livre. As suas forças armadas não intimidam ninguém. A sua liderança política tem sobretudo a ver com a ausência total de alternativas. E, sobretudo, não está preparada para pagar o custo elevado que acompanha a liderança e que a América sempre pagou. Acresce que as crises tendem sempre a invocar o passado e o passado da Alemanha foi demasiado invocado, nesta crise europeia. É uma limitação do seu poder que Joshka Fischer resumiu numa frase. Disse ele, citado pela Economist, que há uma coisa que os alemães nunca poderão dizer: “Vamos fazer a Alemanha grande outra vez”. E não é só isso. Escreve Hans Kundnani, do German Marshall Fund: “A Europa está dividida pela crise do euro. Como pode agora unir-se sob liderança alemã?” Boa pergunta.
Poderá a Europa sobreviver a Trump? Poderá tentar manter viva a chama dos valores que unem o Ocidente? Foi o que Obama veio, mais modestamente, pedir a Merkel. Não vale a pena sermos demasiado optimistas. São péssimas as notícias que nos chegam da Trump Tower. E a Europa vai entrar numa montanha russa eleitoral que corre o risco de nem sequer chegar ao fim.

27 de Novembro de 2016
1. Enquanto a direita chega ao fim da batalha para escolher o seu candidato ao Eliseu, à esquerda os jogos ainda não estão feitos. Os candidatos reais ou potenciais começam a marcar terreno, do actual primeiro-ministro, Manuel Valls, ao seu ex-ministro da Economia Emmanuel Macron, passando por Jean-Luc Mélenchon, da esquerda radical. Falta a clarificação de François Hollande que o Presidente teima em adiar até ao último minuto. Mas à esquerda, tal como à direita, não há vencedores à partida, num cenário político que, como se viu com François Fillon, passou a ter um grau de imprevisibilidade muito elevado. Haverá, também à esquerda, um candidato “escondido” capaz de operar uma reviravolta inesperada? É pouco provável, a não ser o próprio Hollande. As primárias dos socialistas são já em Janeiro. O quadro ficará finalmente completo para as presidenciais de 23 de Abril (primeira volta).
François Hollande foi um erro de casting que não deixará saudades. A sua popularidade é mínima. Se quiser candidatar-se, terá de sujeitar-se às primárias socialistas. Só isto representa uma humilhação, única na V República, em que os presidentes eram livres de se candidatar a um segundo mandato. O mais afectado pelo seu silêncio é Manuel Valls, amarrado (ainda) pela sua lealdade ao Presidente. Hollande foi eleito porque os franceses queriam “tudo menos Sarkozy”. Nunca conseguiu afirmar-se com brilho próprio e preencher o molde que De Gaulle formatou para quem lhe sucedesse no Eliseu.
2. Entretanto, a Europa e o mundo estão em mudança acelerada, com consequências imprevisíveis, que se reflectem necessariamente na paisagem política francesa. À direita regressou a França burguesa e conservadora, baralhando o jogo das primárias que termina hoje com a vitória mais do que provável de François Fillon. Dizem alguns analistas que ele pode ser o pior cenário para Marine Le Pen, cuja candidatura continua a liderar as sondagens. À esquerda Emmanuel Macron já está implantado no terreno. Abandonou o Governo em Agosto, criou o seu próprio movimento (En Marche), adoptou uma nova linguagem para tentar colocar a sua candidatura fora do sistema partidário, que considera “bloqueado” e incapaz de responder às exigências do século XXI. “A França é governada com ideias do anos 80”, disse ao Monde. Os “elefantes” do PS detestam-no. Gostariam que se submetesse às primárias, a única forma de poder controlá-lo. Ele já disse que não. Rejeita a dicotomia esquerda-direita no país que inventou o conceito. Apresenta-se como um outsider. Frequentou as mesmas escolas de elite por onde passa quase toda a classe dirigente francesa. Mas fez um intervalo para trabalhar num banco de investimento (dos Rothschild), orgulhando-se de ter acumulado um pé-de-meia que lhe garante a independência da política. Era o mais popular dos ministros do Governo de Valls.
Não conseguiu reformar grande coisa, mas pode sempre alegar que não o deixaram. Já tem uma estrutura com quase 100 mil inscritos e organizações em praticamente todas as regiões da França. Com a mais que provável saída de cena de Alain Juppé, abre-se-lhe algum espaço ao centro. Acaba de publicar um livro, Revolução, que, mais do que um programa, serve para o situar no devir histórico da França do pós-guerra. É difícil catalogá-lo com os critérios habituais. Liberal? Sim, ma non troppo. Social-democrata? Também. Populista? O necessário. Falta-lhe gravitas, mas tem 38 anos e pode olhar para o futuro, se não for esta a sua vez. No livro regressa a De Gaulle, o Presidente que simbolizou a “grandeza” da França, mas que teve, ao mesmo tempo, a coragem de acabar com o domínio colonial francês, para poder salvar a sua parte europeia. Reclama a linhagem de Michel Rocard, o líder da “segunda esquerda” que chegou a ser primeiro-ministro de Mitterrand (embora se considerasse o seu oposto), defendendo o “rigor” das contas públicas e o parler vrai. Desde que saiu do Governo, Macron mantém com Manuel Valls uma “guerra fria”, escreve a AFP, que aquecerá quando o actual primeiro-ministro apresentar a sua candidatura. Percebe-se porquê. Valls ocupou durante muito tempo o posto de iconoclasta entre os socialistas, situando-se à direita, mais liberal na economia e sem medo de encarar de frente os problemas reais da imigração e da sua perigosa mistura com os deserdados da globalização (que alimentam a Frente Nacional), sem medo de dizer algumas verdades que incomodam normalmente a esquerda. Vê agora a sua “marca de origem” roubada por Macron. Os seus apoiantes vão deixando cair que será candidato, quer Hollande queira, quer não queira. As críticas que o actual Presidente lhe faz, no seu polémico livro de confissões a dois jornalistas do Monde, aumentam a sua margem de manobra. Já disse que não tenciona ir colar cartazes para Hollande. Diz normalmente o que os seus adversários socialistas não dizem: que Marine Le Pen pode ganhar o Eliseu e que a Europa pode implodir. Ainda não definiu qual vai ser a direcção da sua candidatura: unir a esquerda ou continuar a olhar para o centro. Trump e Macron baralharam-lhe as voltas. Arnaud de Montebourg, que representa a ala esquerda do PS, já disse que irá às primárias. Jean-Luc Mélenchon, o candidato da esquerda radical, consegue um score razoável (13 a 15 por cento), beneficiando do impasse entre os socialistas. Como noutros países europeus e nos EUA, o seu discurso prova que os extremos, se não se tocam, pelo menos aproximam-se. Simpatiza com Putin, não gosta de acordos comerciais, como Trump, e já chegou a reconhecer que os imigrantes tiram trabalho aos franceses.
Quer acabar com a V República, com a ideia peregrina de convocar uma assembleia constituinte cujos membros serão tirados à sorte entre todos os franceses. A Europa, a não ser para os que não gostam dela, como Le Pen ou Mélenchon, ainda não entrou a fundo na campanha. Ou entrou por vias travessas. O sinal mais preocupante talvez seja a presença de Trump e de Putin na definição política dos candidatos, como nunca se tinha visto até agora. O Presidente russo já “participou” nas eleições americanas. Agora, “participa” nas francesas, como um bom amigo de François Fillon e um bom companheiro de Le Pen. A direita francesa, formatada por De Gaulle, manteve sempre viva uma forte tendência antiamericana. Como noutras ocasiões, são os socialistas que percebem melhor até que ponto a relação transatlântica é importante para a Europa. Mitterrand foi a prova disso (da crise dos mísseis SS20 à primeira guerra do Golfo), embora tenha sido Sarkozy a decidir o regresso da França à estrutura militar da Aliança, de onde o general a retirara. François Hollande não foi excepção. Nem Valls nem Macron falam de qualquer aproximação a Moscovo, ao contrário de Fillon. Juppé sempre foi um europeísta, enquanto o seu rival se inclinava para uma posição mais reservada.
3. As eleições francesas, daqui a cinco meses, terão um efeito profundo no futuro da Europa. As hipóteses de o candidato de centro-esquerda, seja ele quem for, chegar à segunda volta continuam a ser pequenas. Os socialistas têm hoje plena consciência de que só um milagre ou um “cisne negro” que não veremos chegar podem abrir-lhes de novo as portas do Eliseu. Não é ainda possível avaliar o efeito Fillon na repartição dos votos da direita com Marine. Mas este é também um factor fundamental para fazer as contas das presidenciais. Marine é dada como certa. O problema é que cinco meses passaram a ser, nos dias que correm, uma eternidade. Tudo pode sempre acontecer.

III - Abraço do urso? Puro engano
11 de Dezembro de 2016
1. Qual é a estratégia de poder do primeiro-ministro para o médio prazo? A pergunta surgiu agora, com o primeiro aniversário do Governo, porque, para muita gente, a experiência teria sempre de correr mal, dada a absoluta incompatibilidade entre os compromissos de António Costa com a Europa e os seus compromissos com o PCP e o Bloco. Hoje, já se caiu no exagero oposto. A própria oposição de direita já diz que o Governo não vai cair e que, portanto, o melhor é aceitar esse facto e tirar partido dele, em vez de esperar sentado pela sua queda. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O Governo do PS atravessa os mesmos riscos de qualquer governo europeu, dos quais a incerteza é certamente o maior. As coisas podem estar a correr bem por cá, mas somos demasiado frágeis para evitar que um qualquer acontecimento europeu ou internacional altere radicalmente a situação portuguesa. Apenas um exemplo, mesmo que extremo. Só nos últimos dias, dois colunistas tão reputados como Timothy Garton Ash e Gideon Rachman escreveram que a hipótese de Marine Le Pen ganhar as eleições francesas não deve ser totalmente descartada.
A segunda questão em debate sobre o que vai na cabeça do primeiro-ministro é igualmente interessante. Para alguns analistas, o que o líder socialista quer é apenas estar em condições de ganhar uma maioria absoluta e dispensar os outros dois elementos da coligação que sustenta o seu Governo no Parlamento. É legítimo que os partidos de governo queiram ganhar maiorias que lhes permitam pôr em prática os seus programas. Mas é não conhecer o primeiro-ministro pensar que ele só quer as alianças para chegar onde não conseguiu nas últimas eleições. António Costa acredita mesmo que estava na hora de pôr em prática uma experiência de governo que acabasse com a “bipolarização imperfeita” que dominou a política nacional nas primeiras décadas da democracia, quando o PS teve de derrubar a tentativa comunista de tomar conta do poder em Portugal, substituindo uma ditadura por outra. É uma alteração estrutural e não meramente táctica, e só o futuro dirá quais serão as suas consequências. Mas uma é imediatamente evidente. Enquanto esta solução funcionar, Portugal evita o populismo de esquerda, que afecta sobretudo os nossos parceiros do Sul.
Até agora, o primeiro-ministro conseguiu gerir as dificuldades da coligação com uma facilidade que ninguém previa, mas que também tem os seus custos, ao diluir a visão do PS para o país. Com a aprovação do Orçamento para 2017, os seus dois parceiros tiveram ganhos suficientes para apresentar às suas bases de apoio. No futuro, essa tranquilidade pode ser posta à prova de forma mais radical.
2. Na outra frente de batalha, em Bruxelas, as coisas também correram razoavelmente. Melhor agora do que com a negociação do primeiro Orçamento, apesar da má vontade política que se mantém em Berlim, com Wolfgang Schäuble a passar todos os limites. António Costa apostou em demonstrar a Bruxelas que o seu compromisso com o euro (e com a Europa) era a sério. Foi o que fez até agora. Se Portugal sair do processo de défice excessivo (o que deverá acontecer) e se cumprir as metas negociadas, terá uma maior legitimidade à mesa do Conselho Europeu para fazer valer as suas posições num debate sobre o futuro da Europa que é urgente fazer. A maior dificuldade é que, em meia dúzia de meses, viu os seus parceiros socialistas tombar estrondosamente. François Hollande vai sair de cena sem grandeza nem prestígio. Pedro Sánchez teve o mesmo destino, provando a sua incapacidade para gerir a crise política que manteve a Espanha quase um ano sem governo, depois de duas eleições. A ascensão do Podemos transformou-se numa séria ameaça à sobrevivência dos socialistas. Mas, ao mesmo tempo, a crise revelou um partido (irmão do Bloco) onde o tacticismo e o oportunismo são ainda maiores do que nos partidos democráticos tradicionais. Na Itália, Matteo Renzi, um reformista e um bulldozer que decidiu arriscar tudo para levar em frente uma das suas reformas políticas mais importantes, acaba de cair com estrondo e grande preocupação para a Europa. Costa vai ter de esperar até às eleições alemãs, em Setembro do próximo ano, para colocar sobre a mesa questões que hoje ainda são “proibidas” (como a dívida). Terá os seus parceiros à perna, criando um ruído de fundo incómodo para o PS e para o Governo. Terá de navegar à vista perante uma Europa que está a jogar o seu futuro e que, também ela, deixou em boa medida de ser previsível. Com a agitação no PSD, que não deverá acabar tão cedo, também tem de ter atenção à instabilidade que pode criar na política interna. O populismo tem a particularidade de se introduzir nos interstícios dos partidos do sistema, às vezes sem que ninguém dê conta.
3. A segunda prova que este Governo passou com distinção diz respeito à política externa e europeia, que se distingue totalmente dos seus dois parceiros de coligação. Não tergiversou um milímetro. O mérito cabe em boa medida ao ministro dos Negócios Estrangeiros, que conseguiu manter acima de qualquer discussão as grandes linhas pelas quais o PS se cose nesta frente essencial. Augusto Santos Silva não se afastou da tradicional visão euro-atlântica da Europa: privilegiar a NATO. O que não quer dizer que Portugal não apoie uma iniciativa franco-alemã com pés e cabeça que reforce a capacidade militar da Europa, num tempo em que tudo muda à sua volta, inclusivamente em Washington. Em matéria de comércio livre (sobretudo nas negociações do TTIP), o Governo manteve a mesma posição, fiel à abertura dos mercados como factor essencial de crescimento das economias europeias — muito longe de qualquer tentação proteccionista. Não é preciso lembrar que, para o PCP, a Europa é uma organização capitalista e militarista, para já não falar da NATO. É chocante ver um Congresso dos comunistas declarar o seu apoio ao regime de Damasco. Mas o PCP consegue fazer isso, recorrendo à velha regra de Cunhal que, quando alguém lhe perguntava pelo Gulag, respondia que o que interessava era Portugal. Já o Bloco é outra coisa. O modelo é a Venezuela, que não é propriamente simpático de nenhum ponto de vista: democrático, económico, social. E que hoje se transformou num total desastre. A Europa que defendem não é bem esta, mas também não é bem aquela. Ainda não conseguiram apresentar uma alternativa consistente, preferindo uma constante “guerrilha” que crie alguma tensão e alguma atenção. A sua lógica não tem nada que ver com o PCP. Querem entrar no PS para o transformar por dentro. É um sonho legítimo que outros antes deles também tiveram, mas por enquanto muito longínquo. Com o Orçamento aprovado, espera-se que a sua agenda política não seja demasiado desestabilizadora.
Mas desiludam-se os que pensam que Costa só está à espera do melhor momento para acabar com a coligação e fazer-se eleger com muito mais conforto. A sua ideia é a oposta: governar o tempo suficiente para ver o país voltar ao crescimento económico e a uma sociedade menos desigual, deixando ao mesmo tempo um sistema político assente em duas pernas de força equivalente. É por isso que António Costa quer tempo, dispensando um “abraço de urso” que elimine a concorrência.

IV - Trump depois de Obama? A História dirá quem prevaleceu .
31/12/16
1-Num documentário sobre o “legado de Obama”, transmitido pela CNN  na segunda-feira, Fared Zakaria, o célebre jornalista americano autor de dois livros quase premonitórios — The Post-American World, 2008, e The Future of Freedom: iliberal democracy, home and abroad, 2003 —, passa em revista os grandes momentos, incluindo êxitos e fracassos, dos seus dois mandatos confrontando o Presidente com cada um deles e com as declarações tweetadas por Donald Trump quase diariamente sobre a sua intenção de lhes pôr fim. Desde o Obamacare, o mais polémico dos legados de Obama, que sete presidentes democratas tentaram antes dele, até ao acordo nuclear com Teerão, da liberdade total de porte de arma ao abandono de qualquer responsabilidade internacional, a não ser aquela que beneficie directamente os Estados Unidos. A ruptura não podia ser mais radical, nos antípodas da doutrina que Obama elaborou nos seus oito anos intensos de mandato: uma nova forma de liderança americana capaz de incluir as profundas mudanças desencadeadas pelo fim da Guerra Fria e pela era da globalização.
A direita republicana (incluindo velhos atlantistas moderados como John MacCain, que olham para Trump com horror) acusa-o de ter enfraquecido a América no mundo, lesando o respeito (ou, talvez, o medo) de adversários e aliados perante a única superpotência mundial. Obama chegou a Washington com a intenção de provar que havia outro significado para a palavra “forte”, para além da rapidez com que a nação americana está disposta a apertar o gatilho, mas em muitos outros factores, entre eles a economia e a sua capacidade de cooperar com os aliados ou estender a mão aos inimigos, se estes abrirem o punho. Disse-o no seu primeiro discurso inaugural. Cumpriu-o em Teerão e em Havana. Retirou do Iraque, mas aumentou a força americana no Afeganistão. Foi pragmático e realista tanto quanto foi necessário. Sairá provavelmente com a mágoa profunda de ver Donald Trump suceder-lhe na Casa Branca. Ainda não é um balanço. A despedida começa agora.
Nos últimos dias, uma outra entrevista do Presidente, desta vez ao seu principal estratego eleitoral, David Axelroad, agora a trabalhar num think-tank de Chicago, dominou a agenda mediática. Obama disse que, se lhe fosse permitido um terceiro mandato, acreditava que o poderia ganhar. Era uma figura de retórica para sublinhar que haverá ainda uma maioria de americanos que concordam com aquilo que fez. O que disse tem alguma razão de ser. Sai com uma popularidade invejável para qualquer Presidente em fim de carreira. Ligeiramente superior à de Reagan, muitíssimo superior à de Bush (filho), que lhe deixou uma das mais pesadas heranças que um Presidente pode receber de outro, desde uma economia em colapso até duas guerras sem fim e já sem objectivo. Apenas Bill Clinton abandonou a presidência com uma popularidade superior, mas o mundo parecia ainda um mar tranquilo no qual o 42.º Presidente tinha sabido navegar.
2. Onde está hoje o “skinny little kid with a funny name”, como recorda a Economist, que se despede com o cabelo cada vez mais grisalho e as rugas mais vincadas, mas ainda igualmente elegante, jovem (em comparação com Trump, quinze anos mais velho) e com o mesmo sorriso contagiante com que maravilhou o mundo em 2008, apenas ensombrado por uma vaga  mas indisfarçável tristeza? No documentário de Fared Zakaria há dois momentos em que o Presidente não consegue conter as lágrimas. Quando fala sobre a escola primária de Newton onde 21 crianças entre os cinco e os dez anos foram abatidas a tiro por um adolescente. Ou quando, em Charleston, Agosto de 2015, um outro jovem disposto a “iniciar uma guerra racial” matou sete pessoas de origem afro-americana numa igreja metodista. “Nenhum dos 43 presidentes que o precederam podia ter feito o que ele fez”, diz Nick Bryant, da BBC. “Soou como um sermão nalguns momentos, como um discurso do estado da União noutros (...), parecia que estávamos a ouvir Martin Luther King através da sua voz.” Nesta cerimónia comovente, Obama junta, num poderoso e raro discurso sobre o conflito racial, duas das suas maiores mágoas: a impotência face à liberdade de porte de arma; o resultado frustrante (não para ele, que nunca esperou outra coisa) da sua eleição, vista pela comunidade afro-americana como uma esperança que afinal não foi. Os confrontos recorrentes entre essas comunidades e a polícia recrudesceram. Obama procurou sempre uma atitude moderada, que muitos viram como distante. Há dois livros fundamentais para iniciar o balanço da sua presidência, agora que é preciso olhar para ela como um todo. O que o revelou a milhões de pessoas que, de repente, quiseram saber quem era aquele “skinny little kid” com uma capacidade oratória capaz de electrizar qualquer audiência. Dreams of My Father, uma autobiografia imensamente bem escrita na qual conta a sua história americana, desde o ajuste de contas com a raça para escolher a sua verdadeira identidade aos anos de aprendizagem nos bairros pobres de Chicago ou na Harvard Law School onde o seu intelecto fez dele uma figura dominante. O segundo, The Audacity of Hope, é a visão com que se apresentará  às eleições, mesmo estando ainda a uma longa distância de lá chegar, incluindo um olhar crítico sobre a sociedade americana, com as suas enormes oportunidades e as suas profundas injustiças, e do lugar e do papel do seu país no mundo, o único ainda capaz de fazer a diferença. O terceiro vértice deste triângulo que o define é o seu célebre discurso de Boston, no Verão de 2004, quando pura e simplesmente arrebatou a Convenção Democrata que escolheria John Kerry para desafiar o segundo mandato de Bush. Ainda não era sequer senador federal, mas apenas do estado do Illinois, o mesmo de onde Lincoln partira.
Mudou a forma de decidir o uso da força? Só o futuro o dirá. Mudou o modo de liderar da América? Depende do que Trump fizer. Mas Obama não foi um Presidente pacifista.
3. Oito anos depois, é um Presidente pragmático e realista que abandona a Casa Branca, à espera de que a História lhe faça justiça. Queria concentrar-se nas reformas domésticas, mas o mundo nunca o deixou descansado, exigindo-lhe uma atenção permanente e decisões extremamente difíceis. Chegou para acabar com as duas guerras de Bush, mas, como lembra a Economist, esteve em guerra durante todos os anos dos seus mandatos. Considerou que os EUA gastavam demasiado capital político e diplomático num Médio Oriente incapaz de se modernizar. O Médio Oriente não o deixou em paz. Olhou sempre para a Rússia como uma mera potência regional em decadência, com um arsenal nuclear demasiado grande. Putin tentou demonstrar-lhe o contrário na crise ucraniana (à qual conseguiu responder com a firmeza necessária e o apoio europeu) e na tragédia da Síria. É o lado mais controverso da sua política externa, uma consequência das Primaveras Árabes que não viu chegar, embora fossem de algum modo o resultado do seu célebre discurso do Cairo, incentivando os jovens a lutar pelo seu futuro. O seu objectivo, quando venceu as eleições pela primeira vez, não era apenas terminar a guerra do Iraque, à qual se opôs publicamente (um dos raros democratas a fazê-lo). Era muito mais do que isso. Era mudar a forma de pensar das elites de Washington sobre a relação da América  com o mundo, fossem elas mais liberais ou mais conservadoras. Queria libertá-las de um modelo binário que resumia as suas opções entre bombardear ou não fazer nada. Quase todas as suas decisões de política externa foram avaliadas por este critério, incluindo aquelas em que aceitou o uso da força mas entregou aos aliados a liderança da guerra. Aconteceu na Líbia, quebrando um outro tabu: nunca entregar a ninguém a liderança de uma operação militar que envolva tropas americanas. Na Líbia, entregou o comando ao Reino Unido e à França, mas garantiu as operações militares para as quais os europeus não tinham capacidade (antes dos raides aéreos, a frota naval americana tratou de eliminar as defesas líbias com os seus mísseis tomahawk a um milhão de dólares por disparo). No seu último discurso na ONU, lamentou publicamente o facto de ninguém, a começar por ele, se ter preocupado com o que se seguiria após a eliminação de Khadafi. Na Síria, resolveu a questão das armas químicas, que tinha definido como a linha vermelha que Assad não poderia atravessar, aceitando a intermediação de Putin. As armas foram todas retiradas e destruídas. O objectivo estava cumprido e Obama não tencionava abrir outra frente de guerra no Médio Oriente. Centrou o objectivo militar no combate ao Estado Islâmico. Contou com o apoio dos aliados europeus. O Daesh pode hoje estar enfraquecido, mas isso não evitou a tragédia de Alepo, apenas a mais visível. Será difícil provar que havia outra solução melhor, se Obama tivesse decidido colocar botas no terreno. Porém, os analistas convergem em que se criou um vazio que Moscovo tratou de preencher e Teerão também.
4. O uso da força apenas como último recurso foi uma componente fundamental da sua doutrina de segurança e defesa. Pode não ter tido muito êxito, mas colocou as decisões em parâmetros novos. Sabia que, em algumas ocasiões, era necessária e sabia também que era dissuasora. Provou-o no Irão. Partiu do princípio de que, se todas as anteriores tentativas de pôr cobro ao programa nuclear iraniano tinham falhado, era a altura de experimentar um nova, desafiando Teerão a negociar. Washington temia uma qualquer loucura de Israel. Ao contrário dos republicanos, cuja estratégia foi sempre a do quanto pior, melhor, valorizava os ganhos políticos dos moderados do regime. Contou com a ajuda preciosa dos europeus, mas também de Moscovo e de Pequim. Bush não fizera nada. Ele começou pelas sanções (Clinton dizia que eram para “aleijar”), que atingiram duramente a economia iraniana. Chamou os generais e disse-lhes que tinham de pôr de pé uma força militar capaz de mostrar in loco a Teerão que o uso da força continuava em cima da mesa. O Pentágono fez o que pôde. Foi uma negociação extremamente difícil, mas fundamental para impedir uma impensável corrida à bomba atómica numa das regiões mais instáveis do mundo. O resultado pode não ser perfeito. Nenhuma negociação pode ter essa pretensão. Mas abriu as portas a uma verificação internacional transparente. O Presidente correu um enorme risco ao manter secretos os primeiros meses da negociação. Se houvesse uma fuga, o processo acabava e Obama ficaria numa posição de enorme fragilidade. Não houve. Os republicanos viram neste acordo mais uma “fraqueza”. Trump anunciou que acabaria com ele. Em Havana, Obama seguiu o mesmo modelo, sem necessidade de dissuasão militar. Uma inesperada troca de palavras com Raúl Castro no funeral de Mandela foi o sinal de que alguma coisa se passava. Mudou a forma de decidir o uso da força? Só o futuro o dirá. Mudou o modo de liderar da América? Depende do que Trump realmente fizer. Mas Obama não foi um Presidente pacifista, nem o conceito de “retraimento estratégico” pode ser aplicada sem nuances à sua presidência.

Nenhum comentário: