Li o texto de António Bagão Félix, a
contrair-me no medo de avançar, na repugnância pela casta humana, cuja
inteligência o encaminha para exibir todas as sendas do Mal, da mesma forma que
o Bem é exposto, hoje, e disso não vem tanto mal ao Mundo, podendo servir de
exemplo a outras acções meritórias, embora seja comum citar-se o texto do “Sermão
na Montanha” no qual Jesus adverte contra o exibicionismo da esmola: (6:1-4):
«Tende o cuidado de não praticar as vossas boas acções à frente das pessoas
para serdes vistos por elas. Se assim não for, não tendes recompensa da parte
do vosso Pai que está nos céus. Quando praticares a dádiva de esmolas, não
mandes tocar trombetas à tua frente como fazem os hipócritas nas sinagogas e
nas ruas, para serem elogiados pelas pessoas. Amém vos digo: têm
a sua recompensa. Ao dares esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que
faz a direita, para que fique a tua esmola em segredo. E o teu Pai, que vê
no que está escondido, recompensar-te-á.» (Tradução de Frederico
Lourenço).
É claro que tal virtude de ocultação do Bem -
não tão Bem assim, porque afinal sempre na mira do prémio, que o próprio Cristo
certifica (como se não existisse, no próprio ser racional, a sua própria
consciência e livre arbítrio para optar pela via que entende certa, sem pensar
em recompensa ou castigo) - essa ocultação não é possível hoje, em que até
mesmo os supermercados a cada passo têm instaladas bancas para as causas da
nossa sensibilidade à dor, pedindo para o cancro, para as crianças, para os
animais, para os sem abrigo. Jesus, se vivesse hoje, sentir-se-ia ainda mais
chocado do que no seu tempo de trombetas a anunciar a prática da generosidade de
estardalhaço dos frequentadores da sinagoga.
Mas não é do Bem que trata o artigo de Bagão
Félix, mas sim da exibição do Mal em todo o esplendor do seu horror a ser
escarrado na face de quem quiser assistir.
É certo que muitas coisas extraordinárias de
calibre monstruoso de crueldade ou vileza passaram no mundo sempre, e continuam
a passar, na tropelia dos tempos, bonança e paz sempre alternando, o Mal só
mais tarde conhecido em toda a sua dimensão, como se houvesse pudor de o
revelar ou o receio do castigo imediato, os livros descrevendo-o em termos de
generalização abstracta ou de simbolismo transformado em arte.
Mas os meios audiovisuais, interesseiramente e
despudoradamente ruidosos, constroem hoje as realidades brutalmente despidas de
contenção, tudo servindo para trazer à tona os instintos mais perversos da
espécie humana, desde os filmes de violência e horror de que os próprios canais
para crianças estão recheados na técnica espectacular dos desenhos animados, de
par, é certo, com outros mais construtivos do carácter.
O texto de Bagão Félix, que não releio, na
indignação contra a espécie humana da mais absoluta e sinistra iniquidade, recebeu
excelente comentário que não posso deixar de transcrever:
De Henrique Ferreira: «Este
texto é um alerta extremamente importante sobre os limites da degradação da
natureza humana, que já todos conhecemos, e que, por isso, não é necessário
repetir ou recriar para gozo sádico de espectadores mais sádicos ou
inadvertidos. O risco de futuro mimetismo é elevado dado o poder da imitação no
comportamento humano, sobretudo quando dá retorno. De resto, a violência devia
estar excluída da TV e do Cinema pois ela tende a ser imitada e elevada à
categoria de valor justo e meio adequado para obter um fim. Definitivamente,
nestes tempos de pós-modernidade e de pós-verdade, caminhamos inexoravelmente
para a destruição de todas as categorias éticas de comportamento humano em
sociedade, sob o primado do relativismo e do subjectivismo, mesmo que
comunitários.»
Vale tudo, inclusive “tirar olhos”!
A organização pretende
que seja uma réplica real dos livros e do filme da saga “Os Jogos da Fome”.
António Bagão Félix
Público, 6 de Janeiro
de 2017
Foi
notícia fugaz
em meados de Dezembro. No meio da enxurrada comunicacional, soube-se que, na
distante Sibéria, vai haver um “reality show” onde tudo (não) vale. Um
“big brother” no grau mais superlativo da indignidade. “Um jogo
para testar a capacidade de sobrevivência”, anunciou o empresário russo
da iniciativa. Trinta concorrentes viverão na estepe siberiana,
durante nove meses em condições extremas de penúria e frio, enfrentando
muitas adversidades, desde animais e flora selvagens (ursos, cobras, cogumelos
venenosos…) até às indomáveis intempéries climáticas.
Vai
valer tudo, disse o russo. Desde “coisas irrelevantes” como lutar e
embriagar-se, até “coisas menos banais” como violar e matar! Na
apresentação pública foi dito que está previsto que “cada concorrente
consinta que pode ficar mutilado ou até ser morto “. Para se municiarem
para a luta pela sobrevivência, os concorrentes (já há uma fila de
candidatos!) podem levar até 100 quilos de equipamento, incluindo armas
brancas. Haverá 2.000 câmaras nas árvores espalhadas por 900 hectares e
câmaras que cada concorrente terá consigo. Perante a hipótese de tudo poder
acontecer, os concorrentes têm de assinar um termo de responsabilidade em
que reconhecem o perigo de vida que correm ao participar no ignominioso
divertimento.
Vão
poder candidatar-se quaisquer pessoas adultas e – repare-se neste pormenor
sádico – “mentalmente sãs”! De acordo com o noticiado, serão
preparadas por ex-militares da tropa de elite russa, e o vencedor receberá um
prémio de 1,6 milhões de euros.
A
organização pretende que seja uma réplica real dos livros e do filme da saga
“Os Jogos da Fome”, ao mesmo tempo que sublinha que o programa será
monitorizado pela polícia, de modo a assegurar o cumprimento da lei.
Ou
seja, tudo é permitido, excepto o que não sendo proibido lá dentro é proibido
cá fora. Um golpe de marketing ou um incitamento insidioso para ultrapassar a
mais vermelha das linhas da vida? A distância entre crime e vitória (ou
castigo?) é, aqui, perturbadoramente próxima.
Não
deixa de ser curiosa a comparação entre a “regra maioritária” na ex-URSS (tudo
era proibido, mesmo o que fosse tido como permitido) e a lógica deste abjecto
jogo de vidas (tudo é permitido, mesmo o que possa ser considerado proibido).
Neste
jogo, o coração da dignidade da pessoa é esventrado de uma maneira
inimaginavelmente sórdida. Os concorrentes serão incitados a se transformarem
em infra animais. Sim, porque os animais têm códigos de conduta que sempre
respeitam.
É
nisto que desemboca a ideia da pessoa como objecto, do mal como instrumento
para combater o niilismo e a ausência de sentido de muitas vidas, da
banalização levada aos mais insuportáveis limites de violência gratuita e de
morte, da falsa e efémera vitória da fama nem que seja pelos piores motivos, da
expressão selvagem do egoísmo e da consequente negação do Homem como ser
eminentemente social e relacional, da ditadura das audiências num brutal
curto-circuito entre o dinheiro e o mercado da lama humana.
São
estas permutas relativistas que põe pessoas a caminhar sobre algodão movediço,
que anestesiam comportamentos letais e que igualizam, moralmente, fins e meios.
Sempre
se poderá contrapor que esta “estória” é lá nos confins do Mundo e é uma
insignificante ilhota de degradação da ecologia humana. Bom seria que assim
fosse. Não me admira, porém, que face ao “sucesso” desta siberiana ideia, no
futuro, com mais ou menos amaciamento, tenhamos concursos semelhantes no mundo
ocidental.
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