De um jovem com uma cabeça arrumada, céptico em
relação a este país cada vez mais endividado, a pagar juros cada vez elevados,
a descrer de dois governantes que distribuem sorrisos e simpatia com um
optimismo tonto ou cínico, num país de ovelhas dóceis, conhecedoras do provérbio
“tristezas não pagam dívidas”. Mas as alegrias também não as pagam, donde se
segue que, no rebanho de que fazemos parte, o pagamento das dívidas é coisa de
somenos importância. Descuidos de educação, talvez. Regressemos aos poetas. A
Torga, por exemplo, para iniciar 2017, a caminho do carnaval de sempre, com a
única certeza do nada:
Coimbra, 5 de
Abril de 1956
Carnaval
Tempo…
Invisível tecido que nos veste.
Inconsúteis, os dias vão cobrindo
De translúcidas túnicas de nada
A nudez do começo
até que envoltos nesse espesso
Manto
Sem espessura,
Múmias do desencanto
Enfaixadas de transparência
Povoamos o túmulo da vida.
Arlequins da existência
Que a morte há-de despir, deusa despida.
(Diário, VIII)
A
minha previsão: vão falhar todas as previsões
O desafio mais interessante não é tanto adivinhar o
que se irá passar de melhor ou de pior, mas antes tentar averiguar se o país
está preparado para o caso de as coisas correrem mal.
João Miguel Tavares
27 de Dezembro de 2016
A
minha grande previsão para 2017 é que ninguém vai acertar nas suas previsões
para 2017. A imprevisibilidade é a única certeza ao nosso alcance, pelo que o
desafio mais interessante não é tanto adivinhar o que se irá passar de melhor
ou de pior, mas antes tentar averiguar se o país está preparado para o caso
de as coisas correrem mal, e de o famoso diabo resolver aparecer numa manhã de
enxofre, com alguns meses de atraso. A esta hipótese já consigo dar uma
resposta firme, até porque não é preciso ser grande pitonisa para vislumbrar
tal futuro: o país não está preparado. Portugal passou 2016 a fazer
trabalho de cigarra quando devia tê-lo passado a fazer trabalho de formiga, e
por isso, tal como na fábula, não está em condições de enfrentar qualquer
espécie de Inverno.
Quando
falo em Inverno não estou sequer a referir-me à possibilidade de nevar no
Algarve — uma qualquer ventania mais prolongada irá novamente deitar abaixo a
frágil estrutura económica do país. Essa ventania poderá tomar a forma do “Brexit”,
das eleições francesas, das eleições alemãs, de Donald Trump e do seu cada vez
mais evidente desejo de enfrentar a China e limitar a liberdade dos mercados,
poderá tomar a forma do terrorismo islâmico ou de um conflito aberto com a
Turquia na questão dos refugiados, ou ainda das tendências expansionistas da
Rússia. O que não falta pelo mundo são luzes de alerta a piscar, numa
espécie de árvore de Natal virada do avesso e deixada nas mãos de um “angry
Grinch” sem vontade de se converter às amenidades liberais.
Ou
pode nada disto acontecer, e nem sequer ser preciso um momento preciso e
trágico para nos enviar para novo colapso. A própria banalidade dos dias é
nossa inimiga. Voltámos a ter como principal ocupação andar distraídos:
a dívida continua a crescer, as famílias voltaram a consumir o que não
conseguem pagar, a esperança de vida continua a aumentar, o crescimento dos
custos com a Segurança Social e com a Saúde irá manter-se. Uma última previsão
para 2017? A Terra vai continuar a rodar. Só que a simples rotação da Terra
conspira contra nós.
Já posso crispar-me outra vez?
Nós estamos há um ano a gostar de ser enganados pelos
actuais governantes. Garantem que é possível safarmo-nos assim, com um
regoverno cheio de reversões e falho de reformas.
João Miguel Tavares
7
de Janeiro de 2017
O
Presidente da República ficou desgostoso por os portugueses terem elegido “geringonça”
como palavra do ano. Ele teria optado por “descrispação”. É
uma escolha surpreendente de Marcelo, desde logo porque a palavra não existe.
Porto Editora, Houaiss, Aurélio, Academia – nenhum dicionário cá de casa a
reconhece. Mas o que em Cavaco seria ignorância, em Marcelo é imaginação, e
“descrispação” está em linha com a bonita mensagem que nos deixou na passagem
do ano, quando elogiou o “clima menos tenso, menos dividido, menos negativo cá
dentro e uma imagem mais confiável lá fora”.
Estamos
mais descrispados, de facto, e descrispámo-nos graças a um trabalho conjunto
de Marcelo e António Costa, um a dar beijos e abraços, o outro a distribuir
sorrisos, numa autêntica suruba de afectos. O resultado de tanta energia
positiva está à vista. Clima menos tenso? Confere. Menos dividido? Confere.
Menos negativo? Confere. Uma imagem mais confiável lá fora? Não confere.
Ups, há qualquer coisa que falha nesta narrativa. Ninguém pode sinceramente
dizer que o país está em 2017 com uma imagem “mais confiável lá fora”, e a
prova disso é que os juros a 10 anos da nossa dívida não param de crescer.
Acabámos de passar a barreira psicológica dos 4%, e nada indica que fiquem por
aí. E é neste ponto preciso que a história da descrispação e do clima menos
tenso, menos dividido e menos negativo se revela aquilo que realmente é: uma
autêntica e descabelada fraude.
Desta
fraude, nem António Costa, nem Marcelo Rebelo de Sousa, devem ser considerados
inocentes no dia em que o diabo chegar – porque ele, acreditem, não vai falhar
à chamada. Nós estamos há um ano a gostar de ser enganados pelos actuais
governantes. Garantem que é possível safarmo-nos assim, com
um regoverno cheio de reversões e falho de reformas. Muitos acreditam
nisso. Mas não é possível. Quando falo em “fraude” não estou a dizer que a
descrispação não exista. Pelo contrário: ela existe. Estou a dizer que não deveria
existir, tendo em conta o estado lastimável em que Portugal se encontra e a sua
dependência total de decisões sobre as quais não tem qualquer controlo – seja o
fim do programa de compra de dívida do BCE, seja a subida de juros nos EUA.
O primeiro-ministro e o Presidente da República uniram as mãos para
anestesiar o país: um colocou a máscara e o outro abriu o oxigénio.
Portugal,
contudo, não deixa de estar deitado na mesa de operações, dependente, incapaz
de tomar decisões difíceis, semi-comatoso. Ninguém está a fazer nada por ele. A
esta anestesia sem intervenção cirúrgica tem-se chamado “descrispação”. Mas
serve para muito pouco e está longe de ser qualquer coisa próxima de uma cura.
É mesmo só um entorpecimento momentâneo, que nos distrai e alivia. Uma
bebedeira de facilidades. Uma alienação dos problemas que nunca deixaram de
existir. Eles permanecem lá todos, e nem sequer estão adormecidos – o simples
passar do tempo agrava os seus efeitos.
Agora
que os juros chegaram aos 4% que alegadamente assustam as agências
de rating, e António Costa se vê obrigado a reafirmar a sua confiança no
país a partir da Índia, convinha começar a substituir o optimismo descerebrado
pelo realismo lúcido, e admitir que a “descrispação” é apenas um novo nome para
uma velha prática: adiar ao máximo a resolução dos problemas difíceis. Querem
um conselho, caros leitores? Vejam se se apressam a crisparem-se outra vez,
porque nada de bom aguarda este país.
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