O artigo de António Barreto está o máximo de
eficiência discursiva, quer ao nível da mensagem, e a sua sucessiva progressão argumentativa,
quer ao nível do estilo, simultaneamente pausado e arrebatado de virulência crítica,
e uma ironia de exaltação quase épica, em que um motivo de ignorância generalizada,
desta vez aos repórteres televisivos, ou aos críticos partidários é acentuado,
na referência à banalidade excitada e monocordicamente repetida e grotesca dos
assuntos excitantes, a lembrar o Hissope de António Dinis da Cruz e
Silva e a “espantosa guerra” que ele “excitou na Igreja de Elvas”,
por uma questão de indigente e sebáceo motivo de ausência da conveniente
vassalagem a um bispo visitante da Sé, a quem foi negada a deferência da
aspersão com o hissope.
Não, não vale a pena confirmar. António Barreto
diz tudo o que devia ser dito, de forma literariamente trabalhada, em que a
acumulação dos elementos analíticos, de contrastes e paralelismos acompanham um
pensamento de indignação impotente, que é pena não surta efeito nos programadores televisivos, nem nos repórteres jornalísticos,
que aparentemente tiraram um curso superior para se revelarem na mais completa
e atrevida penúria expositiva que a frase seguinte resume: “Os
directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço.
Por tudo e nada, sai um directo.”
Por isso, melhor será relermos Garrett, na sua
paixão de tormenta, como escape à indignação exposta magistralmente por António
Barreto, pela escassez da notícia do mundo nas nossas televisões - a
menos que ela seja vultosa em mortes e suas repercussões - e com isso
ignorarmos as questões políticas ou noticiosas, tratadas, na nossa casa
pobrezinha, sem o necessário estudo e mestria.
É apenas um escape, a leitura de um poema de paixão,
na sua sequência emotiva, de um presente dolorosamente sofrido, transformado em
“inferno de amar”, na primeira estrofe, um passado pacífico sem arrebatamento amoroso
na estrofe seguinte, o passado próximo do encontro fatal com a pessoa do
trocadilho luz, transmissora da vida verdadeiramente significativa, na terceira
estrofe. Simplicidade e arte, neste escape veemente de um poeta intimista que,
usando os truques jornalísticos noticiosos dos interrogativos quem, como, quando, nos põe igualmente a nós, a interrogar-nos sobre o porquê da
nossa constante e cada vez mais perversa penúria, nos tais “directos”
televisivos:
Este Inferno de Amar
Este
inferno de amar - como eu amo! -
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?
Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?
Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei... Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?
Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?
Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei... Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'
As notícias na televisão
magistral
António Barreto
DN, 25/1/17 - Sem Emenda
É
simplesmente desmoralizante. Ver e ouvir os serviços de notícias das três ou
quatro estações de televisão é pena capital. A banalidade reina. O lugar-comum
impera. A linguagem é automática. A preguiça é virtude. O tosco é arte. A
brutalidade passa por emoção. A vulgaridade é sinal de verdade. A boçalidade é
prova do que é genuíno. A submissão ao poder e aos partidos é democracia. A
falta de cultura e de inteligência é isenção profissional.
Os
serviços de notícias de uma hora ou hora e meia, às vezes duas, quase únicos no
mundo, são assim porque não se pode gastar dinheiro, não se quer ou não sabe
trabalhar na redacção, porque não há quem estude nem quem pense. Os
alinhamentos são idênticos de canal para canal. Quem marca a agenda dos
noticiários são os partidos, os ministros e os treinadores de futebol. Quem
estabelece os horários são as conferências de imprensa, as inaugurações, as
visitas de ministros e os jogadores de futebol.
Os
directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço.
Por tudo e nada, sai um directo. Figurão no aeroporto,
comboio atrasado, treinador de futebol maldisposto, incêndio numa floresta,
assassinato de criança e acidente com camião: sai um directo, com jornalista
aprendiz a falar como se estivesse no meio da guerra civil, a fim de dar emoção
e fazer humano.
Jornalistas
em directo gaguejam palavreado sobre qualquer assunto: importante e humano é o
directo, não editado, não pensado, não trabalhado, inculto, mal dito, mal
soletrado, mal organizado, inútil, vago e vazio, mas sempre dito de um só
fôlego para dar emoção! Repetem-se quilómetros de filme e horas de conversa
tosca sobre incêndios de florestas e futebol. É o reino da preguiça e da
estupidez.
É
absoluto o desprezo por tudo quanto é estrangeiro, a não ser que haja muitos
mortos e algum terrorismo pelo caminho. As questões políticas internacionais
quase não existem ou são despejadas no fim. Outras, incluindo científicas e
artísticas, são esquecidas. Quase não há comentadores isentos, ou especialistas
competentes, mas há partidários fixos e políticos no activo, autarcas,
deputados, o que for, incluindo políticos na reserva, políticos na espera e
candidatos a qualquer coisa! Cultura? Será o ministro da dita. Ciência? Vai ser
o secretário de Estado respectivo. Arte? Um director-geral chega.
Repetem-se
as cenas pungentes, com lágrima de mãe, choro de criança, esgares de pai e
tremores de voz de toda a gente. Não há respeito pela privacidade. Não há
decoro nem pudor. Tudo em nome da informação em directo. Tudo supostamente por
uma informação humanizada, quando o que se faz é puramente selvagem e predador.
Assassinatos de familiares, raptos de crianças e mulheres, infanticídios,
uxoricídios e outros homicídios ocupam horas de serviços.
A
falta de critério profissional, inteligente e culto é proverbial. Qualquer tema
importante, assunto de relevo ou notícia interessante pode ser interrompido por
um treinador que fala, um jogador que chega, um futebolista que rosna ou um
adepto que divaga.
Procuram-se
presidentes e ministros nos corredores dos palácios, à entrada de tascas, à
saída de reuniões e à porta de inaugurações. Dá-se a palavra passivamente a
tudo quanto parece ter poder, ministro de preferência, responsável partidário a
seguir. Os partidos fazem as notícias, quase as lêem e comentam-nas. Um
pequeno partido de menos de 10% comanda canais e serviços de notícias.
A
concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada
por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode
repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo
dos papagaios no seu melhor!
Uma
consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os
canais de televisão.
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