Julgo que o texto de João Taborda da Gama, um
pouco ambíguo - ou sou eu que não o entendo bem - pretende, no seu título, (que
acho de mau gosto, chamando a atenção para um facto que qualquer pessoa de bom
senso achará improvável, fazendo parte do boatério indecoroso resultante de
mesquinhez, vingança ou pura maldade - e foram muitos os que tiveram razões de
queixa contra Mário Soares, pela forma descontraída com que participou na
destruição pátria). Todavia, jamais acharia essa acção possível em alguém que
foi educado a respeitar os símbolos da sua nação, como significativos da mesma,
a não ser metaforicamente, e nesse ponto não tenho dúvidas de que a acção de
Mário Soares e seus seguidores não significou mais do que um rasgar de todos
esses símbolos do respeito pátrio.
Mas o que me parece ambígua é a posição de João
Taborda da Gama, que escrupulosamente, ressalva a acção dos parceiros mais à
direita como pertencentes ao grupo que igualmente democratizou o país - e mais
o faria, não tivessem sido mortos alguns dos grandes de que trata, que
trabalhavam numa dinâmica de governação mais equilibrada - Sá Carneiro e
Amaro da Costa - e em todo o caso parece desculpabilizar o tal gesto do
pisar a bandeira, caso tenha sido cometido, servindo-se para isso do filme do
Scorsese, que, ao que parece, põe o homem perante a alternativa da apostasia para
salvação, ou da recusa em pisar a imagem sagrada e condenação por isso. É
sempre necessário actuar, a indiferença, a inércia é que são desprezíveis. Também
foi assim que actuaram as “mães” do Salomão: uma pelo “cortar do filho ao meio”,
outra pela renúncia ao filho, deixando-o viver. Mas foi esta mãe que recusou a
morte do filho, que foi a premiada com ele. Mário Soares não se importou de “pisar
a bandeira”, na minha opinião, apenas metaforicamente. Foi galardoado por
isso. Creio que João Taborda da Gama o aprecia por esse motivo, mas de uma forma
elegante, sem chegar a afirmar que é o seu herói. Com ambiguidade, pois, nem
sim nem sopas. Aristocraticamente.
Vou traduzir o Dante - Inferno, Canto III,
33 e segs,, do seu exemplo. E prevenir os castigos divinos, tomando sempre
posição. Senza speranza, contudo.
Começa o Canto III com os
dizeres que Dante, acompanhado de Virgílio, encontrou inscritos na porta do
Inferno: “PER ME SI VA NELLA CITTÀ DOLENTE… /… LASCIATE OGNI SPERANZA,
VOI CH’ENTRATE”. Perante o sofrimento expresso em prantos,
gritos, desesperos, em línguas várias, Dante, horrorizado, pergunta a Virgílio:
«Mestre, o que estou
ouvindo? / E que gente é esta que parece submersa em dor?” / E ele explicou: “Esta
mísera maneira / apresentam as almas tristes daqueles / Que viveram sem infâmia
e sem louvor. / Estão misturados com aquele triste coro / dos
anjos que não foram rebeldes / nem fiéis a Deus, mas ficaram neutros. / O céu
os expulsou, para não ficar menos perfeito / nem o inferno profundo os recebe /
para não ficar maculado na beleza. / E eu: “Mestre, que dor é tão grave que os
faz lamentar-se assim? / Respondeu: Dir-to-ei sucintamente: / Estes não têm
esperança de morte, e a sua obscura vida é tão abjecta / que mesmo os invejosos
têm outro fim. / Fama deles o mundo não permite que dure ;/ a misericórdia e
justiça divinas os desdenha: / Não falemos deles, mas olha e passa.»
Pisar a bandeira
João
Taborda da Gama
DN,
15/1/17
Abaixo
os falsos defensores da liberdade. Vivi muitos anos num rés--do-chão com
esta frase pintada por debaixo da janela do meu quarto. A frase, pintada nos
tórridos anos setenta, dirigida ao meu pai, tinha a assinatura clara da
esquerda não democrática (mais tarde veio-se a saber quem a pintou). Para
essa esquerda, o PS tinha travado a verdadeira liberdade, a liberdade de um
qualquer socialismo não democrático. Era um bairro onde conviviam esses
grafitos de esquerda com famílias de direita traumatizadas por Abril, que
andaram de luto quanto Soares ganhou em 86, que celebraram a morte de Zeca
Afonso em 87, que juravam várias vezes que Soares tinha pisado a bandeira de
Portugal. Aliás, era um tempo em que era impossível andar de táxi sem ouvir o
boato de Soares a pisar a bandeira.
Lembro-me muitas vezes dessa frase pintada por debaixo
da janela do meu quarto, que me lembra um tempo que não vivi, um tempo em que
já havia liberdade para que se pintassem paredes, mas não havia a certeza de
que essa liberdade fosse amadurecer e perdurar, e foi por isso que me lembrei
ainda mais dela agora na morte de Mário Soares.
E
lembrei-me nesta semana da história de Soares pisar a bandeira ao ver o filme Silêncio,
de Martin Scorsese. Silêncio conta a história de dois jovens padres jesuítas
portugueses que no século XVII, numa época de forte perseguição aos cristãos,
vão ao Japão saber de um outro padre mais velho que teria apostatado,
renunciando a fé cristã, o que se fazia simbolicamente pisando uma imagem de
Jesus, ou de Nossa Senhora.
Soares
simboliza uma geração que defendeu a democracia da mera alternância de regimes
não democráticos, uma geração que se confunde com o PS mas que só conseguiu
triunfar porque também havia PSD e CDS (cuja história para a consolidação da
democracia teria sido outra sem as mortes de Sá Carneiro, Amaro da Costa e Mota
Pinto). Mas não foi apenas por isto que o PS simboliza mais o Portugal
democrático, nem apenas porque por lá militavam mais e mais relevantes
antifascistas: é porque coube ao PS estar na frente de combate ao totalitarismo
que tentava forçar pelo flanco esquerdo, como só um partido de esquerda
democrática podia fazer, por posição e convicção. Foi essa separação visceral
uma marca fundante da nossa democracia, que levou, aliás, a que Soares tenha
sido o único líder socialista a (ter de? poder? querer? conseguir?) governar
com outros partidos, em concreto com o CDS e depois com o PSD quando isso era,
aos olhos dessa esquerda, uma traição à revolução socialista, à verdadeira
liberdade. Foi preciso por isso defender a Constituição e a Constituinte, a
República e o República, os sindicatos do sindicato, abrir à Europa e à
América, e não ao Leste ou ao Camboja, defender o PS do próprio PS e das
derivas à esquerda para fora da democracia, sempre com essa esquerda a zurzir,
a sugerir traição.
O boato da bandeira nunca deve ter preocupado muito
Soares, mas percebe-se onde queria atingi-lo, antes de 74 apontando para um
traidor a uma pátria que morria nas colónias, e depois de 74, aproveitado
sinistramente também pela esquerda, servia para construir um perfil de
oportunismo e egocentrismo que cumpria abater.
Embora
religião e política tenham ambas dimensões interiores e exteriores, na política
de nada vale eu ser um democrata em pensamento se não faço da liberdade o meu
combate exterior. Não há democratas não praticantes. Roosevelt, Kennedy e
Luther King citaram Dante dizendo que o inferno tem um lugar especialmente
tórrido para aqueles que em tempo de crise moral se mantêm neutrais. Parece que
Dante não disse a coisa desta forma, mas a ideia dos anjos neutrais está
lá, aqueles miseráveis que não foram nem fiéis nem rebeldes, que em vida nem
mereceram glória nem infâmia (Inferno, Canto 3, 33 e seguintes). Na
religião há sempre um momento, um plano, de encontro a sós com Deus. Posso
pisar uma imagem e continuar católico? Talvez. Mas não posso, em tempo de
ditadura, ser um democrata e fazer a vidinha como de costume, ou numa jovem
democracia calar perante quem a quer abafar.
No
filme, o desconforto é esse: a apostasia com forma de salvação de si e de
outros, e a possibilidade de mais um dia na terra, ou recusa de pisar a imagem,
e a morte certa. No filme, Deus quebra o silêncio e diz para pisar, para
pisar que não faz mal pisar. Mas seria Deus?
Há
uns anos convidámos para padrinho de uma das nossas filhas o Hans, alemão,
protestante, amigo da família. Tinha vindo para Portugal como funcionário da
Fundação Friedrich Ebert logo depois do vinte cinco de Abril apoiar a transição
para uma social-democracia, ficou amigo também de Mário Soares, de Portugal, do
seu passado e futuro. É também ao Hans e a muitos outros estrangeiros que
nessa altura para cá vieram que devemos o rumo da nossa democracia, história
pouco contada, mas que nos livrou de um futuro bem pior. Tal como os
missionários no Japão, acredito que esses estrangeiros também tenham sido
olhados por alguns, no Portugal ideológico dos anos setenta, com desconfiança.
Um dia, por ocasião do tal batizado, o Hans ofereceu-me um livro de que nunca
tinha ouvido falar, o Silêncio, de Shusaku Endo.
Apenas verdadeiramente honramos o passado, as suas
figuras, aquelas que viveram infâmia e glória, quando os incorporamos como
critério de discernimento e decisão presentes. E eu, teria ido ao Japão, teria
pisado a imagem? E eu, teria defendido sempre a verdadeira liberdade, apesar da
prisão, da tortura, das frases por debaixo da janela do quarto do meu filho, da
calúnia da bandeira? Ou teria ouvido um Deus que diz pisa, pisa, um Deus que
diz não te metas nisso, deixa-te estar sossegado?
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