O conto Natal de Miguel Torga (de “Novos Contos da Montanha”) é
uma narrativa curta, em que alternam - sobretudo na 1ª parte
- o plano dos dados informativos, pelo narrador
omnisciente e heterodiegético (=não participante na acção), e o plano
dos monólogos interiores. Quanto à sua estrutura interna,
o conto divide-se em duas partes: A 1ª parte até (“e dar graças!”), a 2ª parte (a partir de “Entrou
no alpendre”, do parágrafo seguinte).
Os dados informativos da 1ª parte incidem
sobre a personagem central (única) – o mendigo Garrinchas - e
sobre a localização gradual no espaço e no tempo, acompanhados
do descritivo exterior, à medida da progressão na acção, de ritmo
lento, (a subida de uma serra para consoar na sua terra natal – Lourosa
). O plano dos monólogos interiores dá conta do pensamento de
Garrinchas a respeito das suas experiências de vida e sua visão do
mundo.
Na 2ª parte, com maior relevância do
narrador heterodiegético, a alternância de planos cede o lugar a uma narrativa
de ritmo mais rápido e dinâmico,
com a interrupção do objectivo
inicial (chegada a Lourosa) e o desvio a meio do
caminho para a reconstrução do conchego de Garrinchas – com as tentativas sucessivas
deste para obtenção do seu bem-estar - a criação da fogueira (com a urgueira
imprestável, o papel de jornal forrando uma gaveta da capela, o andor
escavacado), os preparativos da ceia, a escolha de companhia para
a sua ceia de Natal.
Os oponentes da acção são
a idade avançada de Garrinchas (75 anos), o frio
e a neve que começa a cair e o anoitecer. Os adjuvantes
são a força de vontade do
protagonista de chegar a Lourosa (I parte) e de ter uma ceia confortável
(II parte).
Trata-se de uma narrativa de sentido humorístico,
que nos mostra uma personagem rústica mas com experiência de vida,
com os seus conceitos de vida simultaneamente de compreensão e revolta, obtidos
através de uma vida penosa de mendicidade, nem sempre bem sucedida, que o fez
alargar os seus espaços para sobrevivência, longe da sua terra - Lourosa.
As expressões populares que
ressaltam do seu monólogo, por vezes arremedando quem lhe recusava esmola “Tenha
paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser”, são marca dos seus
estados de espírito de indignação, de quem se considera credor de todos os
apoios: “E beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras!” Finório
e hipócrita para merecer a simpatia, reza para melhor eficácia de
colheita, com a interferência divina, que satisfará os anseios espirituais dos doadores
da esmola. Na realidade, ele próprio não acredita muito em rezas, pouco
respeitador das convenções: “Lá se tinha fé na oração, isso era outra
conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas,
tirassem daí o sentido”.
A sua irreligiosidade não
impede a simpatia pelas histórias bíblicas e os ícones que as recriam. Daí
a cena final de grande pureza, de um Garrinchas armado em patriarca bíblico, ou apenas no próprio
S. José – “embora indigno” – numa cena de humanização do sagrado,
que alia o realismo à desmistificação, a simplicidade despida de convenções
do presente, à simplicidade mística dos tempos passados do Antigo Testamento,
onde Jeová ou os seus representantes dialogavam, sobretudo com os “justos”. “Justo”
é também Garrinchas, que é um homem determinado, activo, com experiência de
vida, que o ajudou a diminuir as dificuldades próprias, sem olhar a meios – no
caso presente, o desfazer do andor, para a fogueira necessária ao seu bem-estar.
A acção, de narrador não particiante e discurso
indirecto livre, vai, pois, progredindo, desde a apresentação
inicial, sempre em andamento paralelo com a subida da serra (I parte), à
medida que se vai definindo o carácter da personagem pelo seu próprio
monólogo, cheio de referências passadas, ou de pontos de vista pessoais sobre a
vida e as gentes, ou, na segunda parte, a descrição dos seus trabalhos e
aflições, com a bem-aventurança final do desfecho: uma ceia bem servida, na
companhia adequada.
Muitas expressões são marcas do monólogo interior,
subjectivo, de quem vai falando com os seus botões, em linguagem popular - as
frases ou expressões exclamativas – “A
coisa fia mais fino!”; “Derreadinho!”; “Caía sim senhor!”; “Bonito!”;
“E dar graças!”; “Não lucrava nada!”; “Vá lá!”; “Olarila!” as
frases interrogativas sem destinatário: “Mas vamos ao caso que pegasse a
valer?”; “Aborrecer-se para quê?”; o uso de interjeições: ”Adeus,
noite de Natal em Lourosa”, de imperativos a destinatários
imaginários: “Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido!”,
“tirassem daí o sentido”, além de outras expressões populares
de sentido metafórico::”só dando ao canelo”; “à manjedoira
nativa”-
Outros pormenores gramaticais ou de estilo são, na primeira parte, o predomínio dos verbos no pretérito
imperfeito ou no presente do indicativo, conforme se trata de descrição
(da paisagem ou da personagem)
ou dos conceitos da vida, no monólogo interior. Na segunda
parte predominam os pretéritos perfeitos específicos do processo
narrativo de avanço na acção - na referência aos diversos trabalhos de
Garrinchas.
O estilo é simples mas elegante, com
uma ou outra expressão metafórica: “matar o sono naquele santuário
colectivo da fome”; “batia-lhe na taipa do peito”; “rompendo a chuva de pétalas”,
“o palanquim”, “o arcanho” ou comparações originais: “Os penedos
lembravam penitentes”; ou personificações: “alguma alma pecadora”;
“o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada”.
Uma narrativa, em suma,
simples e expressiva. Como é a poesia de Miguel Torga, “Os
Bichos” e, afinal toda a sua prosa, lúcida e firme.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário