Dois
artigos de Manuel Carvalho que não entendo muito bem, de loas que se refutam,
de omissões que me parecem graves. O primeiro texto louva os professores das
escolas públicas e as exigências atribuídas a Maria de Lurdes Rodrigues e a
Marçalo Grilo, mas não refere Nuno Crato que sempre me pareceu um honesto
ministro da Educação que impôs um percurso de exigência educativa, quando em
Maria de Lurdes Rodrigues vira antes uma exigência burocrática espalhafatosa e
onerosa sobre os docentes, em reuniões contínuas impeditivas de um trabalho
sério de formação eficaz, além de ser uma figura integrada num governo de
esbanjamento desonesto, criando escolas para ricos, fechando os olhos àquelas a
que faltam condições de trabalho decente. Esse facto de elogio de ministros
socialistas e de omissão de Nuno Crato como responsável no processo que promove
alunos portugueses segundo os dados do PISA 2015, além do apoio entusiástico às
escolas públicas, leva-me a situá-lo naquela esquerda que levantou o problema
do ensino público e do privado, este último para os meninos bem, o primeiro
para a maioria dos assim-assim na questão económica. E este facto pôs em causa,
quanto a mim, a honestidade e o equilíbrio do seu parecer, decididamente
faccioso.
De
facto, embora considerando heróicos os professores de hoje, sobretudo os do
ensino público, em escolas sujeitas a vastas camadas de população escolar
proveniente das mais diversas origens sociais, não posso deixar de referir,
como responsáveis pela formação discente, os excelentes manuais de estudo que,
a serem seguidos pelos alunos mais cumpridores, os farão certamente dar boa
conta de si em exames futuros, sendo igualmente favoráveis à preparação docente.
Foi, de resto, uma das «conquistas de Abril» essa da criação de compêndios
escolares e respectivos exercícios de acompanhamento, que me deixam reconhecida
às orientações educativas e aos professores criadores dos manuais.
O
segundo texto, que concorda que «Provada a sua capacidade de sobrevivência política num
quadro completamente novo, a verdade é que o Governo não sabe bem o que
fazer» e «Já sabíamos também que
António Costa é um mestre em embrulhar más notícias ou más decisões em
discursos que parecem poemas de amor», faz,
todavia, inebriante elogio à dupla PS e Esquerda : «Depois de 40 anos em lados opostos da
barricada, o PS e o PCP conseguiram em 2016 descongelar a história e encontrar
pontos de contacto; a liberdade que o Bloco e o PCP têm para deixar passar
algumas medidas da governação, ao mesmo tempo que se podem dar ao luxo de
chumbar outras, reforçou o parlamentarismo. E essa é uma boa notícia.»
Um
homem satisfeito com as contradições do primeiro ministro, o qual nos vai
encaminhando alegremente não sabemos se para o abismo, atamancando os
discursos, embrulhando as contas, torpedeando os dados, seguindo em frente, a
todos nós deixando tranquilos e pacíficos, que não somos bons em matemática.
Muitas palmas para as nossas escolas
Manuel
Carvalho
Público, 6 de Dezembro de 2016
Em década e meia, o desempenho dos alunos portugueses
passou da cauda para acima da
média dos países ricos. Uma das melhores notícias dos últimos anos para o país.
O
nosso Presidente-Rei que tanto se empenha em distribuir confiança a todos,
medalhas a atletas e afagos a gestores devia fazer uma pausa na sua agenda para
dedicar um dia inteirinho a enaltecer o extraordinário trabalho dos
professores portugueses. Os resultados internacionais da avaliação
TIMMS ou os dados do PISA de 2015 são a melhor notícia que recebemos
como país em muitos meses de dúvidas e incertezas. E, desta vez, é ridículo
cair no facciosismo partidário ou no ego insuflado deste ou daquele político ou
ministro para encontrar a origem dessa boa notícia. Os alunos portugueses de
15 anos têm
resultados melhores do que os congéneres dos países ricos porque
beneficiam de um esforço colectivo, nacional, desenvolvido pela sociedade
portuguesa como um todo.
Se
devemos muito a ministros como Marçal Grilo ou Maria de Lurdes Rodrigues, a
primeiros-ministros que declararam a sua “paixão” pela educação, ou a
académicos que se empenharam em discutir a educação, a maior coroa da glória
não cabe às elites administrativas, intelectuais ou políticas: cabe aos
alunos, aos pais e, principalmente, aos professores. Fazer o que eles
fizeram nos últimos dez anos, perante um nítido envelhecimento
da classe, num quadro de permanente instabilidade institucional, com
cargas de trabalho não lectivo acrescidas, com as carreiras paralisadas, com
perda de parte do seu salário por força das políticas de ajustamento, face a um
ministério centralista, burocrático, opressivo e normalizador, num ambiente
social tantas vezes degradado e com impactos directos na disciplina na sala de
aula, não é pouco. É muitíssimo.
Não
há razões para cairmos num estado agudo de ufania, nem de acreditar que tudo
está ganho, mas, por um dia, vale a pena celebrar. Porque os resultados do
estudo PISA não são mais uma catrefada de números avulsos condenados ao
esquecimento até uma próxima vaga. O
que está em causa é um estudo sério, profundo, que mobiliza milhares
de especialistas, alunos e professores em 72 países e que oferece conclusões
habitualmente despidas de grandes contestações. Por isso, os dados do PISA têm
uma enorme importância na imagem que os países projectam para o exterior – os
principais relatórios internacionais sobre a competitividade ou a capacidade de
atracção de investimento externo concedem-lhes ampla atenção. E obrigam os
países envolvidos a fazerem introspecção, discutirem o que está mal ou bem e
encontrar soluções para melhorar. Ora, foi exactamente o que Portugal fez na
última década e meia. Depois de, em 2000, se situar numa posição vexatória (era
o antepenúltimo no ranking dos 35 países da OCDE), o país discutiu, reuniu
forças, introduziu mudanças, e chegou agora a uma posição que o coloca acima da
média na avaliação global em literacia científica e no domínio da língua
portuguesa e muito perto da média a matemática. Se isto não é um exemplo capaz
de nos dar confiança, não vejo nada melhor nos últimos anos para lá chegar.
Os
resultados do PISA obrigam o país a rever muitas das ideias feitas sobre a
docência, sobre os objectivos da educação e fundamentalmente sobre o grau de
exigência que devemos ter sobre nós próprios enquanto país. Nada disto se
faria sem os professores – sem a sua competência e, fundamentalmente, sem a sua
capacidade de resistir; nada disto aconteceria se os pais não continuassem a
acreditar que a educação é o mais poderoso factor de sucesso para o futuro dos
filhos. Mas nada disto seria igualmente possível se, nos últimos anos, não
tivesse havido uma alteração no discurso sobre o que o país pode e deve esperar
do seu sistema educativo. Sem o combate ao eduquês politicamente correcto que
olha para as crianças e os jovens com a placidez hippie de
um eterno bom selvagem, dificilmente Portugal poderia ser apontado como um
exemplo de sucesso. Sem a convicção de que a aposta no desenvolvimento integral
das crianças e jovens deve contemplar muita exigência no ensino da Matemática
ou do Português, dificilmente a educação teria melhorado. Sem o contributo de
vários ministros que apostaram na formação de professores, que criaram exames
de avaliação regular, que tentaram premiar os professores que mais se
destacassem no seu desempenho, que forçaram a publicação de
rankings onde se podem ler tendências (nunca verdades absolutas)
sobre a qualidade das escolas, nada disto teria sido possível.
Com
a globalização da economia, a educação tornou-se ainda mais um factor de
integração social e de desenvolvimento económico. Formar jovens com capacidades
para poderem sobreviver num mundo onde a concorrência pelos empregos se faz
mais à escala internacional, no mercado nacional ou lá fora, é uma obrigação da
escola. Na era da economia digital, ter competências e saberes ao nível dos
melhores é crucial para o futuro dos portugueses e do país. Os nossos jovens
não se batem com os de Singapura e talvez não queiramos que alguma vez isso
seja possível – um jovem de 15 anos com o mundo reduzido a equações matemáticas
pode ser um bom engenheiro, mas dificilmente será um bom cidadão. Mas
compararmos favoravelmente com os espanhóis ou os franceses mostra que, quando
o país é desafiado, tem nervo, potencial e responde positivamente.
Chegados
aqui, vale a pena olhar para a extraordinária notícia da educação como um
exemplo: se não quisermos ser uma Albânia do extremo ocidental da Europa, temos
de aceitar as regras do jogo do mundo contemporâneo e reunir trunfos para lhe
resistir e sobreviver. E nos dias de hoje não há trunfos mais importantes do
que os da educação. Se hoje, apesar da crise, dos desmandos dos banqueiros e
das incúrias dos políticos, temos perspectivas de futuro, é porque
colectivamente somos uma sociedade (e, em
parte, uma economia) mais culta e desenvolvida. Com mais
competências. Manter o discurso de exigência que muitos ministros, professores,
pais ou académicos fizeram em favor de uma educação mais focada e avaliável é
fundamental. Recusar e combater o discurso da educação delico-doce, com
muito floreado zen e poucas ciências, que despreza
a aprendizagem e a avaliação é fundamental.
Uma
outra lição para todos está relacionada com a capacidade da escola pública em
dar resposta ao que o país dela espera e precisa. O relatório do
PISA ontem revelado é um poderoso argumento para todos os que defendem o
reforço da escola pública. Se o sistema público é capaz de providenciar bens de
qualidade à sociedade garantindo a equidade e a integração social, deixa de
haver razão para discutir a sua natureza e o seu papel. Os resultados do
PISA são a prova cabal de que a “liberdade
de escolha” que o anterior Governo preconizava para fazer avançar
uma privatização travestida é um erro e um perigo. A escola pública, se for bem
gerida, com responsabilidade e exigência, responde como respondeu. Colocando os
nossos alunos ao nível dos melhores da Europa.
A “geringonça 2.0” não vem aí
Manuel Carvalho
Público, 28 de Dezembro de 2016
Provada a sua capacidade de sobrevivência política num
quadro completamente novo, a verdade é
que o Governo não sabe bem o que fazer.
Virar
os olhos aos problemas, varrer o lixo para debaixo do tapete, tergiversar ou
adiar foram práticas do final do mandato de Pedro Passos Coelho que arrasaram a
sua imagem de determinação e o seu tantas vezes proclamado compromisso com a
verdade. António Costa não precisou de tanto tempo para seguir esse
caminho. Como para ele (e bem) um político que quer que “se lixem as eleições”
há-de ser talvez hipócrita, começa a habituar-se a torcer a verdade com
transparência e frontalidade. Ora veja-se o que aconteceu com o episódio
dos lesados do BES: na última quinta-feira, António Costa declarou aos
deputados que a probabilidade de os contribuintes terem de pagar a
conta era “diminuta”. Não foi preciso esperar mais do que
um dia para que ficássemos a saber que essa declaração foi um monumento à
propaganda. Na sexta-feira, Ricardo
Ferreira Reis, coordenador do trabalho da Universidade Católica que
enquadrou a solução, dizia ao PÚBLICO que “a impressão que o estudo
deixa é que vai ser difícil esta solução escapar totalmente ao défice e mais
vale que o valor seja logo assumido, transparente, prudente e respeitando a
convenção da substância sobre a forma”.
Nós
já suspeitávamos que a conta nos seria apresentada — por mau hábito ou por
tradição. Já sabíamos também que António Costa é um mestre em embrulhar
más notícias ou más decisões em discursos que parecem poemas de amor. Mas,
desta vez, vale a pena pegar neste episódio, relacioná-lo com outros das
últimas semanas e começar a suspeitar que a gestão corrente e a criatividade
das mensagens do Governo vieram para ficar. Os que viram na impaciência e
irritação do PCP e do Bloco de Esquerda em relação às negociações do salário
mínimo um prenúncio de tensão neste Governo paz e amor, desenganem-se. A
patranha dos lesados do BES ou o inenarrável discurso de Natal do
primeiro-ministro (um monumento à banalidade)
prenunciam que no horizonte não há vislumbre de qualquer espécie de “geringonça
2.0”. O surpreendente sucesso do “perdão fiscal” vai
permitir um suplemento de ar fresco no momento em que se souber que o défice
público deste ano vai ficar aí por volta dos 2,2 ou 2,3%, iniciativas como a da
descentralização ou a repetição da ancestral lengalenga da educação vão levar
boa parte do país a supor que, depois de virar a página à austeridade e de
devolver rendimentos aos portugueses, o Governo está de facto a governar.
A
verdade, porém, é que provada a sua capacidade de sobrevivência política num
quadro completamente novo, o Governo não sabe bem o que fazer.
Limita-se a viver de rendimentos. Que não são poucos. António Costa tem o
extraordinário mérito de ter aberto um novo capítulo na vida política nacional.
Aconteça o que acontecer a seguir, a experiência colectiva que vivemos
dinamitou muitas das certezas que tínhamos sobre o sistema partidário, abriu um
novo leque de oportunidades para o funcionamento do regime e deixou sob
suspeita verdades que a dureza dos anos da troika davam como
absolutas na área da economia. Entre todas as reacções na Europa aos efeitos da
crise e da terapia que se lhe seguiu, Portugal deu a resposta mais original e
seguramente a mais sensata. Não tivemos populismos como o do Podemos ou o de
Beppe Grillo, não se vislumbram sinais da extrema-direita, o nacionalismo é
culto exclusivo de meia dúzia de arruaceiros e não tivemos hiatos na governação
de meses como em Espanha.
Para
aqui chegar, foi preciso reler as possibilidades do sistema político e partidário,
fazer tábua rasa do passado, enterrar estigmas e desconfianças, identificar
um inimigo externo para reunir o povo da esquerda (a direita da dupla
Passos/Portas), construir pontes e abrir uma nova alternativa política. Não foi
coisa pouca. Foi, pelo contrário, uma revolução. Que, como seria de esperar,
deu uma enorme força ao Governo e aos partidos que o apoiam e acabou por mudar
tudo ou quase tudo na política. Depois de 40 anos em lados opostos da
barricada, o PS e o PCP conseguiram em 2016 descongelar a história e encontrar
pontos de contacto; a liberdade que o Bloco e o PCP têm para deixar passar
algumas medidas da governação, ao mesmo tempo que se podem dar ao luxo de
chumbar outras, reforçou o parlamentarismo. E essa é uma boa notícia. O simples
facto de, na actual sessão legislativa, ter havido incerteza quando ao sentido
de voto das bancadas, negociação e procura de consensos é um bálsamo para o
Parlamento. Aconteça o que acontecer, quebrou-se um ciclo, os deputados (até os
do PS) experimentaram pelo menos a ideia de que não estão condenados a ser
câmaras de eco de São Bento e só isso é muito bom.
O
problema é que o encontro de uma solução gerou nos seus promotores um tal
ataque de auto-estima que se esqueceram de que há um país em crise a precisar
de respostas. Resistir e sobreviver em equilíbrio precário tornou-se o
princípio de todas as coisas. A complacência, a tese de que devolver
rendimentos ou “virar a página à austeridade” é um fim em si mesmo seja qual
for a realidade, ou a recusa em aceitar um sentido de urgência na definição de
políticas para o futuro, criaram um modelo de governação que se sustenta na
inércia, em medidas anódinas ou no branqueamento da responsabilidade política.
Para governar ao centro em questões sensíveis como a política de salários e
rendimentos, António Costa
tem de entrar num território hostil ao Bloco e ao PCP. Para
cumprir promessas como a dos lesados do BES, tem de ter de enfrentar críticas e
descontentamento dos contribuintes. O Governo, limitado no Parlamento e
seduzido pelo maravilhoso mecanismo que o sustenta, não faz uma coisa, nem
outra. Dedica-se a dizer lugares comuns sobre a educação.
As
sondagens dizem que em 2016 houve no ar o perfume da distensão e que o PS é
quem mais ganha com isso. A euforia do consumo, a sensação de
que o país regressou à normalidade, o delírio de promessas que forçam mais
aumentos salariais, mais férias e mais direitos são a prova de que os portugueses
gostam mesmo de acreditar no Pai Natal. António Costa não os defraudará. Pelo
menos para já. Mal passe o espírito da quadra, ver-se-á se ele e os seus pares
vão sobreviver na “feira de gado” e, perante um
orçamento tão ou mais difícil do que o de 2016 e num mundo cada vez mais
enlouquecido, como irão ser capazes de nos dizer que ou o país recupera um
pouco da tensão e energia dos anos recentes, ou estará condenado a ouvir
discursos como o da noite de Natal enquanto se dedica a surfar na maionese. Não
é por nada, mas tanto amor e carinho, dissimulação e cócegas no umbigo começam
a fazer uma narrativa um tudo ou nada aborrecida.
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