quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Um cidadão contente



Dois artigos de Manuel Carvalho que não entendo muito bem, de loas que se refutam, de omissões que me parecem graves. O primeiro texto louva os professores das escolas públicas e as exigências atribuídas a Maria de Lurdes Rodrigues e a Marçalo Grilo, mas não refere Nuno Crato que sempre me pareceu um honesto ministro da Educação que impôs um percurso de exigência educativa, quando em Maria de Lurdes Rodrigues vira antes uma exigência burocrática espalhafatosa e onerosa sobre os docentes, em reuniões contínuas impeditivas de um trabalho sério de formação eficaz, além de ser uma figura integrada num governo de esbanjamento desonesto, criando escolas para ricos, fechando os olhos àquelas a que faltam condições de trabalho decente. Esse facto de elogio de ministros socialistas e de omissão de Nuno Crato como responsável no processo que promove alunos portugueses segundo os dados do PISA 2015, além do apoio entusiástico às escolas públicas, leva-me a situá-lo naquela esquerda que levantou o problema do ensino público e do privado, este último para os meninos bem, o primeiro para a maioria dos assim-assim na questão económica. E este facto pôs em causa, quanto a mim, a honestidade e o equilíbrio do seu parecer, decididamente faccioso.
De facto, embora considerando heróicos os professores de hoje, sobretudo os do ensino público, em escolas sujeitas a vastas camadas de população escolar proveniente das mais diversas origens sociais, não posso deixar de referir, como responsáveis pela formação discente, os excelentes manuais de estudo que, a serem seguidos pelos alunos mais cumpridores, os farão certamente dar boa conta de si em exames futuros, sendo igualmente favoráveis à preparação docente. Foi, de resto, uma das «conquistas de Abril» essa da criação de compêndios escolares e respectivos exercícios de acompanhamento, que me deixam reconhecida às orientações educativas e aos professores criadores dos manuais.
O segundo texto, que concorda que «Provada a sua capacidade de sobrevivência política num quadro completamente novo, a verdade é que o Governo não sabe bem o que fazer» e «Já sabíamos também que António Costa é um mestre em embrulhar más notícias ou más decisões em discursos que parecem poemas de amor», faz, todavia, inebriante elogio à dupla PS e Esquerda : «Depois de 40 anos em lados opostos da barricada, o PS e o PCP conseguiram em 2016 descongelar a história e encontrar pontos de contacto; a liberdade que o Bloco e o PCP têm para deixar passar algumas medidas da governação, ao mesmo tempo que se podem dar ao luxo de chumbar outras, reforçou o parlamentarismo. E essa é uma boa notícia.»
Um homem satisfeito com as contradições do primeiro ministro, o qual nos vai encaminhando alegremente não sabemos se para o abismo, atamancando os discursos, embrulhando as contas, torpedeando os dados, seguindo em frente, a todos nós deixando tranquilos e pacíficos, que não somos bons em matemática.
Muitas palmas para as nossas escolas
Manuel Carvalho
Público, 6 de Dezembro de 2016
Em década e meia, o desempenho dos alunos portugueses passou da cauda para acima da média dos países ricos. Uma das melhores notícias dos últimos anos para o país.

O nosso Presidente-Rei que tanto se empenha em distribuir confiança a todos, medalhas a atletas e afagos a gestores devia fazer uma pausa na sua agenda para dedicar um dia inteirinho a enaltecer o extraordinário trabalho dos professores portugueses. Os resultados internacionais da avaliação TIMMS ou os dados do PISA de 2015 são a melhor notícia que recebemos como país em muitos meses de dúvidas e incertezas. E, desta vez, é ridículo cair no facciosismo partidário ou no ego insuflado deste ou daquele político ou ministro para encontrar a origem dessa boa notícia. Os alunos portugueses de 15 anos têm resultados melhores do que os congéneres dos países ricos porque beneficiam de um esforço colectivo, nacional, desenvolvido pela sociedade portuguesa como um todo.
Se devemos muito a ministros como Marçal Grilo ou Maria de Lurdes Rodrigues, a primeiros-ministros que declararam a sua “paixão” pela educação, ou a académicos que se empenharam em discutir a educação, a maior coroa da glória não cabe às elites administrativas, intelectuais ou políticas: cabe aos alunos, aos pais e, principalmente, aos professores. Fazer o que eles fizeram nos últimos dez anos, perante um nítido envelhecimento da classe, num quadro de permanente instabilidade institucional, com cargas de trabalho não lectivo acrescidas, com as carreiras paralisadas, com perda de parte do seu salário por força das políticas de ajustamento, face a um ministério centralista, burocrático, opressivo e normalizador, num ambiente social tantas vezes degradado e com impactos directos na disciplina na sala de aula, não é pouco. É muitíssimo.
Não há razões para cairmos num estado agudo de ufania, nem de acreditar que tudo está ganho, mas, por um dia, vale a pena celebrar. Porque os resultados do estudo PISA não são mais uma catrefada de números avulsos condenados ao esquecimento até uma próxima vaga. O que está em causa é um estudo sério, profundo, que mobiliza milhares de especialistas, alunos e professores em 72 países e que oferece conclusões habitualmente despidas de grandes contestações. Por isso, os dados do PISA têm uma enorme importância na imagem que os países projectam para o exterior – os principais relatórios internacionais sobre a competitividade ou a capacidade de atracção de investimento externo concedem-lhes ampla atenção. E obrigam os países envolvidos a fazerem introspecção, discutirem o que está mal ou bem e encontrar soluções para melhorar. Ora, foi exactamente o que Portugal fez na última década e meia. Depois de, em 2000, se situar numa posição vexatória (era o antepenúltimo no ranking dos 35 países da OCDE), o país discutiu, reuniu forças, introduziu mudanças, e chegou agora a uma posição que o coloca acima da média na avaliação global em literacia científica e no domínio da língua portuguesa e muito perto da média a matemática. Se isto não é um exemplo capaz de nos dar confiança, não vejo nada melhor nos últimos anos para lá chegar.
Os resultados do PISA obrigam o país a rever muitas das ideias feitas sobre a docência, sobre os objectivos da educação e fundamentalmente sobre o grau de exigência que devemos ter sobre nós próprios enquanto país. Nada disto se faria sem os professores – sem a sua competência e, fundamentalmente, sem a sua capacidade de resistir; nada disto aconteceria se os pais não continuassem a acreditar que a educação é o mais poderoso factor de sucesso para o futuro dos filhos. Mas nada disto seria igualmente possível se, nos últimos anos, não tivesse havido uma alteração no discurso sobre o que o país pode e deve esperar do seu sistema educativo. Sem o combate ao eduquês politicamente correcto que olha para as crianças e os jovens com a placidez hippie de um eterno bom selvagem, dificilmente Portugal poderia ser apontado como um exemplo de sucesso. Sem a convicção de que a aposta no desenvolvimento integral das crianças e jovens deve contemplar muita exigência no ensino da Matemática ou do Português, dificilmente a educação teria melhorado. Sem o contributo de vários ministros que apostaram na formação de professores, que criaram exames de avaliação regular, que tentaram premiar os professores que mais se destacassem no seu desempenho, que forçaram a publicação de rankings onde se podem ler tendências (nunca verdades absolutas) sobre a qualidade das escolas, nada disto teria sido possível.
Com a globalização da economia, a educação tornou-se ainda mais um factor de integração social e de desenvolvimento económico. Formar jovens com capacidades para poderem sobreviver num mundo onde a concorrência pelos empregos se faz mais à escala internacional, no mercado nacional ou lá fora, é uma obrigação da escola. Na era da economia digital, ter competências e saberes ao nível dos melhores é crucial para o futuro dos portugueses e do país. Os nossos jovens não se batem com os de Singapura e talvez não queiramos que alguma vez isso seja possível – um jovem de 15 anos com o mundo reduzido a equações matemáticas pode ser um bom engenheiro, mas dificilmente será um bom cidadão. Mas compararmos favoravelmente com os espanhóis ou os franceses mostra que, quando o país é desafiado, tem nervo, potencial e responde positivamente.
Chegados aqui, vale a pena olhar para a extraordinária notícia da educação como um exemplo: se não quisermos ser uma Albânia do extremo ocidental da Europa, temos de aceitar as regras do jogo do mundo contemporâneo e reunir trunfos para lhe resistir e sobreviver. E nos dias de hoje não há trunfos mais importantes do que os da educação. Se hoje, apesar da crise, dos desmandos dos banqueiros e das incúrias dos políticos, temos perspectivas de futuro, é porque colectivamente somos uma sociedade (e, em parte, uma economia) mais culta e desenvolvida. Com mais competências. Manter o discurso de exigência que muitos ministros, professores, pais ou académicos fizeram em favor de uma educação mais focada e avaliável é fundamental. Recusar e combater o discurso da educação delico-doce, com muito floreado zen e poucas ciências, que despreza a aprendizagem e a avaliação é fundamental.  
Uma outra lição para todos está relacionada com a capacidade da escola pública em dar resposta ao que o país dela espera e precisa. O relatório do PISA ontem revelado é um poderoso argumento para todos os que defendem o reforço da escola pública. Se o sistema público é capaz de providenciar bens de qualidade à sociedade garantindo a equidade e a integração social, deixa de haver razão para discutir a sua natureza e o seu papel. Os resultados do PISA são a prova cabal de que a “liberdade de escolha” que o anterior Governo preconizava para fazer avançar uma privatização travestida é um erro e um perigo. A escola pública, se for bem gerida, com responsabilidade e exigência, responde como respondeu. Colocando os nossos alunos ao nível dos melhores da Europa.     

A “geringonça 2.0” não vem aí
Manuel Carvalho
Público, 28 de Dezembro de 2016
Provada a sua capacidade de sobrevivência política num quadro completamente novo, a verdade é que o Governo não sabe bem o que fazer.

Virar os olhos aos problemas, varrer o lixo para debaixo do tapete, tergiversar ou adiar foram práticas do final do mandato de Pedro Passos Coelho que arrasaram a sua imagem de determinação e o seu tantas vezes proclamado compromisso com a verdade. António Costa não precisou de tanto tempo para seguir esse caminho. Como para ele (e bem) um político que quer que “se lixem as eleições” há-de ser talvez hipócrita, começa a habituar-se a torcer a verdade com transparência e frontalidade. Ora veja-se o que aconteceu com o episódio dos lesados do BES: na última quinta-feira, António Costa declarou aos deputados que a probabilidade de os contribuintes terem de pagar a conta era “diminuta”. Não foi preciso esperar mais do que um dia para que ficássemos a saber que essa declaração foi um monumento à propaganda. Na sexta-feira, Ricardo Ferreira Reis, coordenador do trabalho da Universidade Católica que enquadrou a solução, dizia ao PÚBLICO quea impressão que o estudo deixa é que vai ser difícil esta solução escapar totalmente ao défice e mais vale que o valor seja logo assumido, transparente, prudente e respeitando a convenção da substância sobre a forma”. 
Nós já suspeitávamos que a conta nos seria apresentada — por mau hábito ou por tradição. Já sabíamos também que António Costa é um mestre em embrulhar más notícias ou más decisões em discursos que parecem poemas de amor. Mas, desta vez, vale a pena pegar neste episódio, relacioná-lo com outros das últimas semanas e começar a suspeitar que a gestão corrente e a criatividade das mensagens do Governo vieram para ficar. Os que viram na impaciência e irritação do PCP e do Bloco de Esquerda em relação às negociações do salário mínimo um prenúncio de tensão neste Governo paz e amor, desenganem-se. A patranha dos lesados do BES ou o inenarrável discurso de Natal do primeiro-ministro (um monumento à banalidade) prenunciam que no horizonte não há vislumbre de qualquer espécie de “geringonça 2.0”. O surpreendente sucesso do “perdão fiscal” vai permitir um suplemento de ar fresco no momento em que se souber que o défice público deste ano vai ficar aí por volta dos 2,2 ou 2,3%, iniciativas como a da descentralização ou a repetição da ancestral lengalenga da educação vão levar boa parte do país a supor que, depois de virar a página à austeridade e de devolver rendimentos aos portugueses, o Governo está de facto a governar.
A verdade, porém, é que provada a sua capacidade de sobrevivência política num quadro completamente novo, o Governo não sabe bem o que fazer. Limita-se a viver de rendimentos. Que não são poucos. António Costa tem o extraordinário mérito de ter aberto um novo capítulo na vida política nacional. Aconteça o que acontecer a seguir, a experiência colectiva que vivemos dinamitou muitas das certezas que tínhamos sobre o sistema partidário, abriu um novo leque de oportunidades para o funcionamento do regime e deixou sob suspeita verdades que a dureza dos anos da troika davam como absolutas na área da economia. Entre todas as reacções na Europa aos efeitos da crise e da terapia que se lhe seguiu, Portugal deu a resposta mais original e seguramente a mais sensata. Não tivemos populismos como o do Podemos ou o de Beppe Grillo, não se vislumbram sinais da extrema-direita, o nacionalismo é culto exclusivo de meia dúzia de arruaceiros e não tivemos hiatos na governação de meses como em Espanha.
Para aqui chegar, foi preciso reler as possibilidades do sistema político e partidário, fazer tábua rasa do passado, enterrar estigmas e desconfianças, identificar um inimigo externo para reunir o povo da esquerda (a direita da dupla Passos/Portas), construir pontes e abrir uma nova alternativa política. Não foi coisa pouca. Foi, pelo contrário, uma revolução. Que, como seria de esperar, deu uma enorme força ao Governo e aos partidos que o apoiam e acabou por mudar tudo ou quase tudo na política. Depois de 40 anos em lados opostos da barricada, o PS e o PCP conseguiram em 2016 descongelar a história e encontrar pontos de contacto; a liberdade que o Bloco e o PCP têm para deixar passar algumas medidas da governação, ao mesmo tempo que se podem dar ao luxo de chumbar outras, reforçou o parlamentarismo. E essa é uma boa notícia. O simples facto de, na actual sessão legislativa, ter havido incerteza quando ao sentido de voto das bancadas, negociação e procura de consensos é um bálsamo para o Parlamento. Aconteça o que acontecer, quebrou-se um ciclo, os deputados (até os do PS) experimentaram pelo menos a ideia de que não estão condenados a ser câmaras de eco de São Bento e só isso é muito bom.
O problema é que o encontro de uma solução gerou nos seus promotores um tal ataque de auto-estima que se esqueceram de que há um país em crise a precisar de respostas. Resistir e sobreviver em equilíbrio precário tornou-se o princípio de todas as coisas. A complacência, a tese de que devolver rendimentos ou “virar a página à austeridade” é um fim em si mesmo seja qual for a realidade, ou a recusa em aceitar um sentido de urgência na definição de políticas para o futuro, criaram um modelo de governação que se sustenta na inércia, em medidas anódinas ou no branqueamento da responsabilidade política. Para governar ao centro em questões sensíveis como a política de salários e rendimentos, António Costa tem de entrar num território hostil ao Bloco e ao PCP. Para cumprir promessas como a dos lesados do BES, tem de ter de enfrentar críticas e descontentamento dos contribuintes. O Governo, limitado no Parlamento e seduzido pelo maravilhoso mecanismo que o sustenta, não faz uma coisa, nem outra. Dedica-se a dizer lugares comuns sobre a educação. 
As sondagens dizem que em 2016 houve no ar o perfume da distensão e que o PS é quem mais ganha com isso. A euforia do consumo, a sensação de que o país regressou à normalidade, o delírio de promessas que forçam mais aumentos salariais, mais férias e mais direitos são a prova de que os portugueses gostam mesmo de acreditar no Pai Natal. António Costa não os defraudará. Pelo menos para já. Mal passe o espírito da quadra, ver-se-á se ele e os seus pares vão sobreviver na “feira de gado” e, perante um orçamento tão ou mais difícil do que o de 2016 e num mundo cada vez mais enlouquecido, como irão ser capazes de nos dizer que ou o país recupera um pouco da tensão e energia dos anos recentes, ou estará condenado a ouvir discursos como o da noite de Natal enquanto se dedica a surfar na maionese. Não é por nada, mas tanto amor e carinho, dissimulação e cócegas no umbigo começam a fazer uma narrativa um tudo ou nada aborrecida.  

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