segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Não é pequena a alma




Não há que negar: Vasco Pulido Valente zurze com força em cima de nós, os indígenas, de que ele naturalmente se exclui. Ou talvez não, não se exclua. Afinal, quando analisamos o mundo que nos envolve, do ponto de vista psicológico, sobretudo, é que talvez nos revejamos segundo o olhar dos outros e sintamos complexos. Mas já o Sartre também dizia (na sua peça “Huis Clos”) que “l’enfer, c’est les autres” e não as caldeiras de enxofre a arder, e ao olho acutilante de Vasco Pulido Valente nada escapa do que nos vai na alma porque ele próprio muitas vezes se sentirá deprimido pelo que vai na sua ou que julga que os outros pensam que vai. Era o caso do Garcin, e da Estelle e da Inès, bem mortos num espaço fechado, torturando-se mutuamente com a revelação dos erros dos parceiros, mau grado as tentativas de cada um de os esconderem dos outros e era esse o verdadeiro inferno, porque nos amesquinha no nosso amor próprio (diz-se auto-estima hoje), imperfeitos mas sempre orgulhosos, defeito do machismo enraizado por uma consciência poderosa. Daí vêm as depressões em que o Álvaro de Campos foi mestre, na sua fase depressiva, mas esse é um introvertido e por isso deve ter sido tantas vezes inferno de si próprio, analisando-se com tanta acutilância e a fazer-nos a nós sentir as suas próprias dores, que seriam as nossas se fôssemos assim tão capazes como ele de as definir. Mas Vasco Pulido Valente não vai em psicanálises, que o tempo do Freud era mais da época do nosso  vasto poeta - embora ainda hoje esse Freud seja muito acarinhado e mesmo responsável pelas nossas mazelas psicanalíticas, acho - mas o historiador prefere analisar-nos do ponto de vista intelectual e é aí que a porca torce o rabo, porque o faz a partir do seu muito saber, debruçado num passado histórico nosso muito somítico na questão cultural, com excepção dos grandes homens que por cá houve. E todo o seu discurso negativo tem graça e ofende, mas é preenchido de um tal conhecimento humanístico e de linguagem que só podemos agradecer por nos abrir os olhos com tanta elegância  e contenção de estilo.

O próprio Miguel Torga, é certo, também regista essa idiossincrasia de povo que ora entoa loas patrióticas ora se apaga humilhado pela superioridade alheia: “Num sentimento de náusea íntima, como se ouvisse eructações familiares, ia meditando no estranho fenómeno: ou ardíamos na fogueira dum patriotismo descabelado ou nos envergonhávamos da condição. O Tavares confessara-me em Paris que muitas vezes se fazia passar por italiano ou jugoslavo….. Nenhum de nós aceitava a pátria naturalmente, singelamente. Nas vozes que a exaltavam ou denegriam vibrava o mesmo despeito, a mesma humilhação, o mesmo sentimento de inferioridade. Passávamos a vida a confrontá-la. Media-se o génio de um escritor pelo número de traduções, o talento de uma cantadeira pelos aplausos que recebia lá fora…. À semelhança do que acontecia na vida, que também nos é imposta e a que temos de dar sentido, assumindo-a, apenas num idêntico assenhoreamento voluntário e corajoso do berço o poderíamos justificar. Mas só agora, de regresso de terras ricas de tudo ou do mais essencial, via dificuldade de atingir a tal nobreza de alma. Muito poucos o conseguiam. De aí os ditirambos e os sarcasmos, lados do mesmo desespero. A impressiva evidência da crosta impedia uma visão compreensiva da medula. Serras anãs, rios de poldras, aldeias neolíticas… Uma arte desconfiada da sua originalidade, uma técnica em segunda mão, uma economia de pedintes… Que orgulho resistia a semelhante sudário?,,, (“A Criação do Mundo”, IV)
Porém, eu acredito que podemos melhorar, por muito pequenos que sejamos entre os outros, que tiveram educações mais racionais. Estou a assistir ao programa The Voice Portugal e sinto quanto todo um trabalho extraordinário está por trás de actuações de rapazes e raparigas perfeitamente assombrosas, trabalho dos seus quatro mentores, e dos próprios acompanhantes externos formando trios de uma perfeita harmonia que me deixam extasiada. Mas não serão só as canções. Vejo - na Sic - actuações de actores novos e velhos em telenovelas de grande criatividade e naturalidade de desempenho, próprio de quem estudou certamente no Conservatório e isso é gratificante. E um mundo de gente que trabalha e observa, e um mundo de gente nova que faz por estudar – apesar dos condicionalismos resultantes de políticas adversas – levam-me a ter mais confiança numa população que afinal descende de gente empreendedora e valente, que muito fez pelo seu país, que tão bonito é. 
O Diário de Vasco Pulido Valente
Observador
 18 de Dezembro, 2016
A defesa da democracia, quase histérica, que apareceu ultimamente nos jornais, na televisão e na net, com ou sem pretextos relevantes, significa uma única coisa: que as pessoas sentem o risco cada vez mais próximo de ela acabar. Não se defende um regime que se considera garantido e nem os perigos da “Europa” (a que nunca de facto pertencemos) justificam a universalidade e a veemência da defesa do que já temos prática e constitucionalmente. A questão é outra. É o sentimento geral de que a democracia está em risco. E está em risco porquê? Porque a ditadura atrai o cidadão comum na razão inversa da insegurança. Como sempre acontece nos países pobres, os portugueses põem a segurança acima de qualquer valor. Daí a atracção pelo funcionalismo (inamovível) e a desconfiança do emprego privado (por definição, imprevisível). Mas também, e apesar de tudo, pela ordem tradicional. O indígena, que vive na miséria ou perto dela, precisa de acreditar na estabilidade da família, do emprego, da reforma e da assistência médica; precisa de ver os filhos bem “encaminhados”; e os ladrões na cadeia. Numa palavra, precisa de acreditar na autoridade e hoje basta ligar a televisão para constatar que a autoridade democrática dia a dia se desfaz. O Estado faliu, os banqueiros faliram (ou andam lá perto), o desemprego continua, as criancinhas do 5.º ano de escolaridade vão ser instruídas nas realidades do aborto e da contracepção, o PC e o Bloco proclamam a urgência de tornar Portugal numa espécie de Albânia e o governo vive da mão para a boca. No meio disto, naturalmente, o cidadão treme e, no fundo, começa a pensar que a sua paz de espírito vale um pouco de tirania. Não vale. Mas cada vez mais parece que vale. Salazar não chegou onde chegou, senão por isso. E não lhe custou muito.
Portugal e a Europa
O que escrevo hoje parece contradizer o que escrevi a semana passada. Mas não contradiz. Se a Europa não suportará a instalação em Portugal de uma ditadura de direita ou de esquerda, não está obviamente disposta – como se vê na Hungria – a impedir um regime autoritário, disfarçado com meia dúzia de ornamentos da democracia. Por uma razão muito simples, que a maioria de nós sempre se recusou a reconhecer: Portugal não faz parte da Europa. Se há ainda um sentido em falar de Europa (a não ser como expressão geográfica), só pode ser no sentido de cultura europeia. Mais precisamente a cultura europeia do século XVIII até meados do século XX. Ora Portugal só muito marginalmente participou nessa cultura, que ligava a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Holanda e a Bélgica, parte da Áustria e parte de Itália. Este país periférico e desconhecido não passava de um assunto para livros de viagem. Nada saiu daqui que tivesse uma real influência para além de Badajoz: Está fora da consciência e da história moderna da Europa, como a Bulgária ou a Roménia. Quando os melhores copiavam com zelo a França (em vernáculo ou em calão, como se lamentava Eça) e nunca atraíram a atenção de ninguém. Para o alemão ou o inglês medianamente educado, Portugal (fora Ronaldo – que vive em Espanha – e o turismo) é um vácuo: pobre ou rico, oprimido ou livre, não o preocupa, excepto pelo dinheiro que lhe gasta. O governo e o Presidente da República apregoam os nossos méritos isso não comove uma cultura que existe por si própria e, desde 1919, pela universal influência da cultura americana. E quando os pobres políticos locais resolvem ameaçar com “murros na mesa” ou a “renegociação” da dívida não são considerados mais do que um pequeno incómodo. Sei bem que isto custa a ouvir aos nacionalistas de profissão ou convicção. Mesmo assim, não deixa de ser a verdade.

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