sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Descansemos na Bíblia, se pudermos



Um artigo curioso de Rui Tavares, que me faz pensar que o estudo torna as pessoas mais abertas a uma visualização dos factos históricos menos impregnada de utopia ou facciosismo cego. Julgo que a análise de Rui Tavares é disso prova, tentando pôr os pontos nos ii, equiparando os homens na sua avidez de domínio, no fundo, insinuantemente, lembrando o Iraque e a responsabilidade americana para desculpabilizar Putin e a sua responsabilidade em Alepo. E na onda panegírica, sobressai Guterres, o homem que quer salvar as vidas humanas custe o que custar. Há muito que os ensaios de infiltração terrorista dos difusores islamitas deixaram de estar na ordem do dia, a Europa tem que ser receptáculo de todos os que fogem desvairadamente, e com razão, da guerra e da fome. Guterres vai resolver esse caos, embora tenha abandonado o seu país no pântano, há quinze anos, segundo nos contam Maria Lopes e Sofia Rodrigues em “Há quinze anos, do pântano ao país de tanga  do artigo seguinte, saído hoje, que refere as opiniões de vários políticos sobre o tal abandono de Guterres de um país que se vai atamancando à medida das nossas facécias políticas.
Vou lavar-me destas preocupações, no café, com o primeiro volume da Bíblia que Frederico Lourenço está a traduzir directamente do grego e que contém os quatro Evangelhos. Que Deus dê muita vida a este grande português dos nossos tempos, para continuar a sua obra monumental de tão impecáveis traduções que nos tem dado dos monumentos literários gregos. Que Deus dê muita vida à minha irmã, que me ofereceu este primeiro volume bíblico como prenda de Natal.

Testes, trabalhos e tribulações
Rui Tavares
14 de Dezembro de 2016
 O mundo não pode silenciar algumas exigências simples perante o que se está a passar em Alepo.
Na crónica de segunda-feira mencionei uma universidade russa que tinha sido há uns anos fechada temporariamente pelos bombeiros, num aparente ato de pressão pelas autoridades do regime de Putin. Não disse o seu nome, não fosse o diabo tecê-las, mas já não teria sido preciso: a Universidade Europeia de São Petersburgo viu ser-lhe retirado o seu alvará e está à beira de fechar definitivamente pelo crime de ser independente.Advertisement
Quando me perguntam porque volto ao tema da Rússia de Putin, é por isto. Não pela Rússia e pelos russos, mas por Putin. Para impedir a normalização da sua arbitrariedade no meio das falsas equivalência morais, do “ai eles são todos iguais” e do “há hipocrisia em todo o lado”. Se forem todos iguais e houver hipocrisia em todo o lado, Putin e a normalização de Putin terão dado uma grande ajuda.
A história voltou com requintes de vingança, como disse António Guterres ao fazer o juramento da Carta das Nações Unidas para ser o próximo Secretário-Geral da ONU. O discurso de Guterres foi claro, foi preciso — nos dois sentidos do termos — e tudo menos cauteloso. Foi bom ver que o terramoto político que vivemos com Trump nos EUA não moderou Guterres entre o dia da sua eleição e o da sua tomada de posse. É bom que tenhamos também consciência de que isso pode fazer dele um Secretário-Geral de um mandato só. Não creio que ele o procure, mas também não me parece querer evitá-lo se o custo for demasiado alto. Precisamos dessa atitude também.
Nestes novos tempos da história não podemos esperar facilidades. Só podemos esperar testes, trabalhos e tribulações, como nas histórias bíblicas e nas cantigas de blues que eram a música sofrida dos escravos.
Os testes, trabalhos e tribulações de outras partes do mundo são incomparavelmente mais difíceis do que os nossos. Há quem escolha ignorá-los. Há quem escolha nem saber deles. Um candidato à presidência dos EUA, quando perguntado sobre o cerco e agora tomada de Alepo, na Síria, respondeu com sincera ingenuidade: “que coisa é Alepo?” — ele não sabia mesmo do que se estava a tratar.
O mundo não pode dar-se ao mesmo luxo. O mundo não pode silenciar algumas exigências simples perante o que se está a passar em Alepo. Pelo menos duas exigências simples: a organização de ajuda humanitária aos habitantes da cidade e a permissão de acesso a observadores independentes.
É já uma triste consequência do estado do mundo que até estas simples exigências sejam confundidas sob um manto de confusão e desconversa sobre quem tem mais culpas na Guerra da Síria e o que faz ou fez cada uma das partes em todas as guerras no médio-oriente desde o início do século. Tal como a Europa deve receber refugiados da Síria, por obrigações humanitárias, sem ter a ilusão de que isso resolva as raízes da guerra, também à Rússia deve ser exigido o respeito pelo direito internacional humanitário, ainda que nos seus mínimos, independentemente da visão global que tenhamos sobre o conflito.
E não, o facto de os americanos terem invadido o Iraque não faz diminuir o que deve ser a nossa exigência moral, política ou legal da Rússia. Pelo contrário; esse era o argumento — o de que os outros eram iguais ou piores — de quem defendia a Guerra do Iraque. Quem esteve na rua contra a Guerra do Iraque tem exatamente a mesma razão que tinha para protestar contra as violações do direito internacional na Síria.
Se isso era popular então e é impopular agora pouco importa. O que importa é que se está a passar no nosso tempo aquilo que sabemos ter acontecido no passado e que costumamos arquivar na memória coletiva sob as perguntas: “como é que deixaram acontecer? por que não houve mais indignação?”.
O teste que há a passar não é, porém, um teste de história mas um teste de moral. Depois dele, só virão mais trabalhos e tribulações. Se é assim o nosso tempo, perseveremos.

Há quinze anos, do pântano ao país de tanga
Hecatombe eleitoral autárquica do PS que motivou a demissão de António Guterres foi na noite de 16 de Dezembro de 2001. Que “pântano” era este que ainda hoje o termo se lhe cola à pele?
Público, 16 de Dezembro de 2016
Há quinze anos, o agora secretário-geral da ONU fechava a noite eleitoral autárquica a anunciar, de forma inesperada, quase à uma da manhã, em directo na televisão, que iria pedir ao Presidente da República a sua demissão do cargo de primeiro-ministro, depois de conhecida a hecatombe dos socialistas nas urnas. António Guterres justificou a sua saída com a necessidade de evitar que o país mergulhasse no “pântano”.
Recuando no tempo, a ministra da Saúde e da Igualdade dos executivos de Guterres, Maria de Belém, justifica tal decisão com a “incapacidade” do Governo de Guterres de aplicar políticas estratégicas de longo prazo, devido à geometria partidária pulverizada do Parlamento. O mesmo argumento é usado por um ministro do executivo de Durão Barroso, que se lhe seguiu: “Saímos de um país do pântano para o reconhecimento de um país de tanga”, lembra José Luís Arnaut.
Tal como a sua imagem titubeante, à porta dos Hospitais da Universidade de Coimbra, a tentar calcular 6% do PIB nacional, o termo “pântano” colou-se à pele de Guterres e talvez não tenha sido bem percebido pela opinião pública. Já a oposição aproveitou o termo para o acusar de “incapacidade de governar”, lembram Maria de Belém Roseira e Alberto Arons de Carvalho, secretário de Estado da Comunicação Social dos dois governos de Guterres.
Até certo ponto era, de facto, incapacidade – não por ignorância mas por falta de condições para governar. Com exactamente metade do Parlamento, 115 deputados, o PS conseguiu rechaçar três moções de censura, mas precisou da mão do CDS para aprovar o orçamento de 2000 e da do deputado Daniel Campelo (contra o resto do CDS) para o do ano seguinte. E não conseguia fazer passar políticas estratégicas, recorda Roseira. “Há mínimos denominadores comuns que é possível encontrar em muitas matérias e temos que estar unidos em questões de regime. Mas em muitos casos a política partidária parece que tem a cultura do futebol”, diz a ex-ministra, que acrescenta que a oposição “infernizou a vida” do Governo de Guterres. Lembra a ridicularização da “paixão pela educação”, quando foi lançada a rede do pré-escolar que hoje a direita considera essencial.
Arons de Carvalho admite que as autárquicas foram o “espelho” da crise política parlamentar e que Guterres preferiu “clarificar” a questão do poder para evitar continuar com um país “paralisado e enfraquecido”. Até porque, considera, se Guterres prolongasse a tomada de decisão, o PS ficaria “ainda mais fragilizado quando tivesse que ir às eleições”.  
As legislativas antecipadas de Março de 2002 deram a vitória ao PSD de Durão Barroso que formou um Governo de coligação com o CDS. Nesse executivo, José Luís Arnaut foi ministro-adjunto do primeiro-ministro, depois de ter sido o coordenador autárquico do PSD nas eleições de 2001. O antigo governante recorda que “havia uma grande instabilidade do Governo socialista”, já que nem o PSD nem o PCP eram parceiros do executivo. “O PS começava a estar cansado”, diz.
Apontando o “pântano” como um previsível “impasse político”, José Luís Arnaut considera que o então primeiro-ministro “teve lucidez e interpretou as eleições como os portugueses interpretaram”, mostrando que “não estava apegado ao poder”. O antigo secretário-geral do PSD lembra que a situação económica “estava complicada” por não terem sido feitas as reformas necessárias como aconteceu em Espanha, por exemplo. Daí que o discurso do pântano se tivesse transformado num outro celebrizado por Durão Barroso: “Saímos de um país do pântano para o reconhecimento de um 'país de tanga'.”
Outro ministro desse Governo de Durão Barroso, Luís Marques Mendes, também atribui a demissão de Guterres à falta de condições de governabilidade. Mas lembra que as leituras nacionais de eleições autárquicas não devem ser a regra. Para o antigo ministro dos Assuntos Parlamentares, o “pântano” existia desde que Guterres tinha sido reeleito em 1999 sem maioria parlamentar: “Não há situação mais pantanosa do que o Orçamento do Queijo Limiano”.
O cansaço e o desgaste de um executivo minoritário são também os motivos apontados por outro membro do então Governo PSD/CDS para justificar a atitude de Guterres. “O eng. António Guterres tinha perdido a mão no Governo e no partido”, afirma Nuno Magalhães, na altura secretário de Estado da Administração Interna, indicado pelo CDS. O actual líder da bancada centrista considera que o então primeiro-ministro fez uma “boa leitura” dos resultados eleitorais. Essa derrota foi compreendida por Guterres “como pessoa inteligente que é” e foi “o pretexto de que precisava”, observa Nuno Magalhães.
Esta é também a leitura do politólogo António Costa Pinto, que diz que foi uma maneira airosa de Guterres preservar algum capital para o seu futuro político – ainda que tenha acabado por preferir, até agora, uma carreira exclusivamente internacional. O “pântano” a que se referia Guterres era a soma da sua falta de capacidade de manobra parlamentar com a crise internacional que se adivinhava à porta e que exigia, disse então, “uma resposta denodada”. E o então primeiro-ministro, com Almeida Santos, Ferro Rodrigues e António Vitorino, foi explícito naquela noite: se ele passasse pelas eleições como se nada fosse, “o país cairia inevitavelmente num pântano político que minaria as relações de confiança entre governantes e governados que são indispensáveis para que Portugal possa vencer os desafios que tem pela frente”.
Costa Pinto diz que o pântano foi o “grande exemplo da extrema dificuldade do PS de formar governos maioritários à esquerda” e lembra que Guterres “encerrou o ciclo virtuoso da adesão à CEE e subsequente desenvolvimento económico e mudança social e abriu o ciclo da estagnação”, ou seja, o tal pântano que dizia querer evitar. Se evitou o pântano político, acabou por não evitar o económico. 

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