domingo, 11 de dezembro de 2016

Amália Antiga



Não sei bem porquê, o texto de Vasco Pulido Valente levou-me a um passado que a própria Amália reproduzia na sua voz inimitável, o passado da penúria honrada, que é esse que ficou para sempre descrito nas prosas e poemas dos escritores de intervenção, segundo a visão maniqueísta do Bem pertencente ao humilde, o Mal ao poderoso, e daí não saímos. Um certo passadismo, pois, que se nos cola à pele, ao ler V.P.V., tal como o xaile e o lenço ou o bigode das caricaturas brasileiras sobre os portugueses, de sabor a ranço. Vale sempre a pena escutar Amália:
Perseguição
Se de mim, nada consegues,
Não sei por que me persegues
Constantemente na rua!
Sabes bem que sou casada
Que fui sempre dedicada
E que não posso ser tua!
Lá por que és rico e elegante,
Queres que eu seja a tua amante,
Por capricho ou presunção?
Eu tenho o marido pobre
Que tem uma alma nobre,
E é toda a minha paixão!
Rasguei as cartas sem ler,
E nunca quis receber
Jóias ou flores que trouxesses!
Não me vendo, nem me dou,
Pois já dei tudo o que sou
Com o amor que não conheces!

Vasco Pulido Valente trouxe-nos à mente esse “quando tudo começou”, de um partido desejoso de reformular as coisas, bem aconchegadinho às velhas teorias da igualdade, fraternidade e liberdade, que se despenharam sobre a nação sem o reforço de uma educação primacial. Eles aí estão, a pretender inovar-se, atidos aos preconceitos de sempre, como às convicções de sempre. Não deixam de ser necessários, com mais ou menos conhecimento das ideologias que lhes estão na base e que a própria Internet ajuda a percepcionar hoje, tal como nos fornece o fado da Amália. Mas parece que quanto mais se aspira à igualdade mais as discrepâncias se acentuam, os espertos enchendo as panças sem dar cavaco, apesar da gritaria em seu redor. A entrada na União Europeia ajudou muito, é inegável, a uns mais do que a outros, a igualdade é coisa utópica, sabe-se.  Mas convém que haja esse partido a lembrar as velhas teorias que Cristo já defendera, embora a atribuir outro Reino aos desvalidos.
O DIÁRIO de Vasco Pulido Valente
11 de Dezembro, 2016
Observador, 11/12/2016, 0:01
A velhice do PCP
Era a última campanha do velho Cunhal e, por isso, pedi ao Paulo Portas para ir ver. E lá fui na “caravana” (um método de propaganda hoje felizmente em desuso) pelo arquipélago comunista no Alentejo e margem sul. Tudo se passou na melhor ordem e nos jantares, que as militantes faziam, até se comia bem. Durante os comícios, a assistência conversava sobre a única questão que verdadeiramente a levara ali: o Álvaro. Estava o Álvaro mais magro? mais gordo? mais cansado? mais fresco? com um ar mais velho? com um ar mais novo? A missa que o dito Álvaro recitava no palanque não a interessava nada. Aquilo parecia uma família que vinha visitar o avô, ninguém queria saber de política ou do partido que putativamente a representava. No Seixal, se não me engano, houve um convívio. As senhoras puseram as mesas e trouxeram as bebidas e os bolos. Por acaso uma delas resolveu falar comigo, depois de um naco de doce de ovos. Perguntou qual seria o resultado do PC: 11 por cento, 15 por cento? Respondi que 8 ou 9 por cento. Ela choramingou: “Ai que desgosto que isso vai dar ao Álvaro!”.
Muita gente se intriga com a durabilidade dos Comunistas. Não os percebem. Primeiro são poucos (pela última contagem, 50 000) — num país pequeno, em terras pequenas, nos bairros em que nasceram e cresceram. Segundo, vivem entre si: o partido não gosta que os militantes tenham amigos fora de casa. Terceiro, o grau de endogamia é muito alto. Entre os mais velhos (que são quase todos) a família chega de facto a ser uma família. E com isto, claro, vem uma grande dose de nepotismo, de compadrio, de protecção e de complacência. Os comunistas não deixam o Partido (com maiúscula). Não admira. Quando saiu do PCF, por causa da invasão da Hungria, Claude Roy disse: mesma coisa. Em Portugal, podem ficar só três, sentados numa pedra, que, para eles, tudo continua.
A precaução de Soares
Soares costumava contar uma história muito interessante. Quando se começou a discutir se Portugal devia “entrar” ou não na CEE, ele chamou um grupo de economistas (portugueses) de grande reputação. Todos lhe disseram que “entrar” seria um desastre para a economia e que nós só podíamos, razoavelmente, ficar de fora, à espera de crescer e aparecer. Soares não se impressionou e disse a esses prudentes sábios que, apesar de tudo, ele tinha decidido “entrar” e por muito boas razões. Razões políticas. Como é de ver. Soares achava, e achava bem, que a “Europa”, sob que forma fosse, nos protegia de dois males maiores. Primeiro, numa época em que o regime não estava ainda sólido, de um pronunciamento militar: Bruxelas correria à má cara com o primeiro capitão (ou general) que lá fosse pedir dinheiro. Segundo, Bruxelas também nunca aceitaria um governo de “esquerda” que saísse das suaves normas da Internacional Socialista e, por isso, o PC ficava definitivamente fora do poder (o Bloco, nesse bom tempo, não existia). O famoso “arco da governação” ficava assim definido e garantido por uma ou duas gerações.
A União Europeia e a moeda única, a que o dr. Cavaco se agarrou para meter algum juízo financeiro na cabeça dos seus compatriotas, apertaram a malha. Agora, Jerónimo de Sousa, Louçã, Catarina e congéneres protestam por aí contra a infame armadilha da “Europa”. Só que ela não nasceu ontem, nasceu em 1984 ou 85 e foi feita deliberadamente contra eles. O dr. Soares sempre soube com que linhas essa doce gente se cosia e deixou Portugal bem amarrado. Nenhum argumento económico pesa contra a força, a não ser que a força por ela própria se desfaça.

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