Por umas letrinhas apenas, informa Nuno Pacheco
no título do seu texto, que segue, mais uma pedrada no charco da nossa tola
ignorância e subserviência. Por umas letrinhas apenas, se dá uma cambalhota na língua
portuguesa, consolidada e enriquecida pelos anos fora, com o manejo dos seus
escritores. É o que, em síntese, significa esse título, corolário de outras
cambalhotas há muito perpetradas, sem respeito nem amor pátrio, a que esse tal
de Acordo Ortográfico vem dar o reforço final do menoscabo e desprezo pelo
pobre país, que, apesar de tudo, tanta riqueza nos deu de gente com real valor.
Ainda bem que existem Nunos Pachecos, que de vez em quando elevam o seu grito
de protesto, esperançados no provérbio da água mole. Mas o nosso empedrado
encefálico, é mais duro do que o da calçada portuguesa, que, esse, fura mesmo,
e resvala e esburaca, onde tombamos a cada passo. Não, nenhuma água nela penetra, do saber e do respeito
pátrio, na nossa pedra encefálica.
Mas ainda bem que existem
Nunos Pachecos. A lembrar. E a lastimar.
Conquanto que, por cá, as
lástimas mais reconhecidas sejam as do fado – do antigo – e das caridadezinhas
dos PêCêPês da nossa virtude. E o resvalar da língua para o como se fala até
vem dar mais achegas de poder ao povo da vila morena, por vezes mesmo destituído
das primeiras letras. Como o fazem sentir os tais do Acordo.
Por umas letrinhas apenas
Público, 27/10/2016
Os ingleses não são
loucos e sabem, como também deveríamos saber, que a escrita e a fala são
disciplinas distintas.
Não foi há muito tempo. No dia 10 de Outubro, na Gulbenkian,
na sessão de atribuição dos prémios do património cultural (a mesma sessão onde
foram distinguidos Eduardo Lourenço e Plantu), uma das oradoras, ao explicar as
actividades que justificavam o prémio, disse por várias vezes “actividades”
sublinhando o C. Não foi engano, porque nunca disse “âtividadej”, como faz a
maioria, disse sempre “âktividadej”. Falará ela “à antiga”, como por aí se diz?
Ou pura e simplesmente tem da palavra o sentido primeiro, próximo do étimo
latino? A discussão pode parecer uma bizarria, mas não é. Porque quando
se instituiu que o acordo ortográfico de 1990 era mesmo para ser imposto, um
dos grandes argumentos que o sustentavam, além da pretensa “simplificação” da
escrita, era a “facilitadora” submissão à oralidade em detrimento da
etimologia. “Não se lê, não se escreve” ou “o que não se pronuncia não se
escreve!” foram regras que andaram insistentemente a soprar-nos aos ouvidos.
Mas como é possível pôr alguém que diz “aktividade” a escrever “atividade”?
Escreve o C porque o diz? Ou altera a fonética?
Isto
passa-se com inúmeras palavras, às vezes de forma caricata. Por exemplo: há
quem diga "expectativas", sublinhando o C, e quem diga
"expétâtivas". O que faz o acordo? Fácil, permite dupla grafia, coisa
que já existia antes, mas só de país para país. Agora é transfronteiriça. O
mesmo com "características", onde muita gente pronuncia o C em ct, ou
"carácter", onde é generalizada a omissão desse mesmo C.
E
a regra da fonética, quando é que se aplica? Na verdade, a regra da fonética é
pura tolice, como facilmente se comprovará. A ser assim, o verbo
"Estar" teria de mudar. Ninguém diz, em voz corrente, "estou a
almoçar" ou "estás a aprender muito devagar" ou "estamos
fechados, volte mais tarde"; diz-se ‘tou, ‘tás, ‘tamos. Se a regra da fonética
fosse para valer, teríamos o verbo Tar: Eu tou, Tu tás, ele tá, nós tamos,
vós tais, eles tão. Bonito? Há pior. Querem ver como se altera o som de uma
palavra pela escrita? Veja-se, por exemplo, "co-adopção".
Assim, lê-se "cô (de ‘com’, daí a acentuação do "o")
âdóção". Se retirarmos o P, leremos por impulso "cô-adução";
mas se tirarmos o hífen leremos "cuadução", porque nas palavras onde
o "co" perdeu vida própria essa é a tendência vocálica dominante.
Um
exemplo inglês, que andou por aí muito em voga devido ao nome de um clube.
Leicester, como Worcester ou Gloucester, perde na fala o “ce” do meio. Lê-se
Leister, Worster, Glouster. Pelo extraordinário acordo português, mudariam de
grafia. Só que os ingleses não são loucos e sabem, como também deveríamos
saber, que a escrita e a fala são disciplinas distintas.
Por
cá, há quem vá percebendo isso. Até quem menos se esperava. Na sua reunião
de 2010, em Sintra, a CPLP fez questão de reafirmar que o acordo ortográfico
era “um dos fundamentos da Comunidade e um instrumento essencial para a unidade
da Língua Portuguesa.” Agora, o ainda secretário executivo da CPLP, o
moçambicano Murade Murargy, disse há dias em entrevista à Agência Brasil
o seguinte: “Não me preocupo se estou a aplicar [o acordo ortográfico] ou não.
Se as pessoas me entendem, vamos em frente”. E disse mais: “Quanto ao acordo
ortográfico, muita gente não está de acordo, há muitos intelectuais,
jornalistas, que não aplicam, pois acham que não traz vantagens. Não há uma
unanimidade sobre se valeu a pena, ou não, o tanto de dinheiro que se gastou.
As implicações financeiras da aplicação do acordo são grandes”. Um problema que
ele realçou foi o dos manuais escolares. “Acredito que devemos concentrar-nos
no que é fundamental para permitir que os outros [países-membros] possam se
desenvolver”.
Querem
traduzir isto para uma fala simplificada e mais fonética? Eu traduzo: vão para
o diabo mais as normas de um acordo que não unifica (há mais palavras
diferentes agora do que havia antes), não padroniza, não simplifica, não
melhora nem torna mais “internacionalizável” a língua portuguesa. Alguns já
perceberam a fraude há muito tempo, outros têm vindo a percebê-la com o passar
dos meses e dos anos. Falta apenas uma coisa: coragem para acabar com isto.
Um comentário:
Na verdade, até hoje, o PCP foi o único partido que não votou a favor do Acordo Ortográfico, absteve-se. Todos os outros votaram a favor. É também o único partido com assento parlamentar que não aplica o acordo. Justiça lhe seja feita.
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