quinta-feira, 10 de novembro de 2016

«Veneno de Cobra»





É o que me vem à ideia - o filme com Peter Ustinov, que creio ter visto nos anos 50, com um prazer de gargalhada fácil e algum suspense. Mas são as pinceladas de V.P.V. - claras, amplas, ao modo impressionista, incisivas, não repudiando os recônditos  menos fascinantes da nossa caricatura como povo, numa troça sem comedimento, provocando, naturalmente, zanga, mas a admiração e o riso fácil e um tanto cúmplice dos seus leitores. Venenoso, Vasco Pulido Valente. Mas muito sabiamente, em apanhados de um Diário sem rebuço.

Observador, 23/10/2016


Segunda-feira.
Quando a dra. Mariana Mortágua, no fim de uma vulgaríssima conferência sobre o neo-liberalismo, incitou as massas (150 pessoas?) a demolir a capitalismo, uma certa direita perdeu a cabeça. Apareceu gente a falar em revolução, em comunismo e até em marxismo. Parecia que a simpática jovem, como diria o meu avô, tinha deitado labaredas pela boca; e não tardou de facto que ela propusesse o “imposto Mortágua”, como quem assalta o Palácio de Inverno. Admitindo que a menina não tinha uma tão maléfica intenção e sabe, embora enevoadamente, do que está a falar, convém fazer notar à direita indígena, para sua tranquilidade e saúde, que anda a sonhar com fantasmas. A dra. Mariana Mortágua não ameaçou a ordem estabelecida com a luta de classes, com a classe operária ou sequer com os terríveis trabalhadores do Bloco. Já educada nas frustrações do tempo, ficou por uma referência melancólica à inexplicável existência de pobres e de ricos, como um romântico versejador de 1830, à maneira de Enjolras e outros galãs de Vítor Hugo. Mas se “Les Miz” é um óptimo musical não consigo sinceramente ver o dr. António Costa a guiar o povo às barricadas. Além disso, hoje as ruas são alcatroadas.
Terça-feira.
O Orçamento explica a grande alegria da queda do suposto “muro” que separava o PS da franja revolucionária, desde sempre inimiga e fraterna. Esta história, sim, começou com Lenine e morreu agora. O sr. ministro Mário Centeno disse que o Orçamento era de Esquerda e a sra. coordenadora do Bloco – sempre essa fatal mulher – disse que não era. Têm os dois razões e nenhum tem razão. Excepto pelo funcionalismo público e outros dependentes do Estado, o Orçamento não define um grupo de beneficiários, que o poder tenha decidido proteger, nem um grupo de privilegiados, que tenha decidido perseguir. O governo socialista dividiu laboriosamente os portugueses em dezenas de categorias – de empregados, de contribuintes, de pensionistas – e tratou cada membro desta clientela à sua maneira. Em vez de estabelecer a igualdade por que tanto se baba fortificou as divisões que já existiam e estabeleceu outras. Não há qualquer coesão social na esquerda e esta estapafúrdia aliança que nos pastoreia é ao mesmo tempo o sintoma e a consagração do caos. É claro que, do PC ao PS, toda a gente sonha promover a igualdade entre os portugueses (para já não mencionar a humanidade inteira), mas ninguém menciona o pequeno problema do dinheiro. Os românticos nunca se preocupam com os meios, sempre lhes chegou o sentimento: por Elvira ou pela fraternidade.
Quarta-feira
O último debate entre Trump e Clinton tratou entre outras coisas de política fiscal. Clinton seguiu humildemente a cartilha da “esquerda”: vai reforçar os serviços sociais” e, como a dra. Mortágua, vai “buscar o dinheiro onde ele estiver”, ou seja, aos “mais ricos”. Se os “mais ricos” deixarem, evidentemente. Esta internacionalização do disparate não anima ninguém.
Quinta-feira
O ordenado do presidente da Caixa-Geral de Depósitos provocou por toda a parte uma explosão de invejas. Como são irresponsáveis os jovens cabecilhas do PS e do Bloco não percebem o preço da responsabilidade e devem gostar de brandir o seu novo poder, já que não ganham muito e nem carro lhes dão. Não por acaso as grandes revoluções foram sempre feitas por esta espécie de gente: ambiciosa, bem-falante e semiletrada.
Sexta-feira
Ontem houve um debate na TVI, fatalmente sobre o Orçamento. Os convidados eram, entre outros, João Galamba, Pedro Braz Teixeira e Adolfo Mesquita Nunes. Não se percebeu nada de coisa nenhuma. João Galamba falou mais do que toda a gente junta (de facto, berrou quase sozinho durante todo o tempo), interrompeu, não permitiu que ninguém acabasse um argumento e muitas vezes nem sequer uma frase. O sr. Galamba não tem boas maneiras ou educação: ninguém iria jantar com ele ou o convidaria para casa. Mas, como a sua insignificância é absoluta, não valeria uma linha se os moderadores de televisão, que constantemente o chamam, não o deixassem livremente disparatar à nossa custa e à custa deles. Quinta-feira na TVI, Pedro Pinto foi uma desgraça. Por que raio protegeu ele o abominável Galamba? São ordens da estação? Representa esse demagogo de feira o PS oficial ou directamente o governo? Seria bom que isto se esclarecesse ou que se impedisse o indivíduo de uma vez para sempre de maçar as pessoas.
Sábado
31 de Outubro a 5 de Novembro, 2016
6/11/2016,
Segunda-feira
Dizem que por pressão de Angola e dos negócios do petróleo, Portugal aceitou a Guiné Equatorial (um antigo protectorado espanhol) na CPLP. A Guiné Equatorial é uma ditadura, governada desde 1979 à maneira norte-coreana, por um indivíduo chamado Teodoro Obiang e pelo filho Teodorino Obiang, um gangster internacional procurado pela polícia francesa. Neste paraíso dos direitos do homem continua a existir pena de morte e a máquina de repressão que produz para o pai Teodoro maiorias de 98 por cento dos votos. Muito bem, não se pode pedir perfeição a toda gente. Mas talvez se pudesse pedir ao Estado português, que se rege teoricamente por outros princípios, que não admitisse a Guiné Equatorial na CPLP, tanto mais que a população só fala francês, vagamente espanhol e umas tantas línguas tribais. Não foi esse o parecer das cabecinhas que nos pastoreiam. Pior ainda, sem discutir a coisa (e nem sequer a revelar), o primeiro-ministro e o Presidente da República resolveram agora, por sua alta recriação, propor que, como na Commonwealth, os naturais de qualquer país da CPLP gozassem em Portugal dos mesmos direitos dos portugueses (incluindo o direito à residência). Não é preciso ser bruxo para perceber que esta enormidade (que viola Schengen e vai irritar profundamente a “Europa”) tresanda a petróleo ou a negócios de petróleo. Nós sempre vivemos numa pobreza envergonhada. O dr. Costa e o dr. Marcelo perderam a vergonha.
Quinta-feira
É celebrado este ano o centenário de uma pessoa de que hoje ninguém se lembra e que ninguém lê, Mário Dionísio. Foi um mau poeta, um mau romancista, um mau pintor de fim-de-semana e, principalmente, um mau crítico. Mas no cume do antifascismo, logo a seguir à guerra, foi também o “controleiro” do PC para o “sector intelectual”. Quando Cunhal, já preso, exigiu aos pobres literatos portugueses o estrito acatamento do “realismo socialista” de Jdanov, Mário Dionísio saiu do partido, mas ficou até ao fim da vida um “simpatizante” convicto. Conheci muito bem o indivíduo. Primeiro, como professor de literatura portuguesa no Colégio Moderno de João Soares (avô) e, depois, porque os meus pais, igualmente devotos da seita, eram amigos dele. À sexta-feira, havia sempre uma reunião em casa de Mário Dionísio, cuja função era discutir a “linha correcta” para o PC, os “desvios” ideológicos da “inteligência” indígena e, lateralmente, as malfeitorias da Ditadura. Faziam parte deste grupo João Cochofel e a mulher, a pianista Maria da Graça Amado da Cunha e o marido (Roger de Avelar), o erudito excêntrico Huertas Lobo e uma ou outra figura de passeio. A partir dos doze, treze anos, comecei a ser arrastado para esta catequese e passei muitas noites – calado e quieto – a ouvir aquela gente perorar.
Mário Dionísio, como é evidente, presidia. Os meus pais mal abriam a boca: a minha mãe não tinha qualquer qualificação formal e o meu pai não passava de um engenheiro químico, ainda por cima director de uma empresa. Mas, calados que estivessem, não escapavam à crítica do seu estilo de vida. Tiveram de prometer não gastar mais do que ganhava um funcionário de Estado médio, não usar o carro em viagens de prazer e não me vestir luxuosamente. O povo passava fome e um bom comunista não devia viver como um milionário. Foi assim que, com muita raiva minha, usei calça curta e casacos voltados durante o liceu inteiro, ou quase.
Fora isso, Mário Dionísio, justiça lhe seja feita, defendeu meia dúzia de escritores contra a fúria jdanovista do tempo, entre os quais José Cardoso Pires que me descreveu mais tarde os tremores com que tinha ido apresentar Os Caminheiros ao sumo sacerdote da ideologia. Como seria de esperar, Dionísio acabou a presidir à “comissão de saneamento” do Ministério da Educação. Toda a vida se preparara para esse nobilíssimo papel. Quando o meu pai morreu, deixou um quadro de Mário Dionísio: não houve leiloeiro ou ferro-velho que lhe pegasse.
Sexta-feira
Os portugueses nunca deixarão de me espantar. Uns berram por aí indignados contra a “austeridade” da “Europa” e não querem pagar o que lhe devem; outros persistem ainda em dar conselhos para o regresso dos bons tempos do crescimento e do pleno emprego (que acabaram por volta de 1968-69) e para a ressurreição de um mito, que só circunstâncias de acaso, inteiramente irrepetíveis, permitiam. A “Europa” morreu há muito mais de vinte anos e hoje os portugueses não passam de um incómodo e de um prejuízo para a Alemanha e para os países que dependem dela. Mas nem assim Portugal percebe que não é e nunca foi europeu. Mesmo quando a França (segundo o sr. Hollande) aldraba as contas do défice – de resto com o incitamento e a cumplicidade do sr. Barroso e do sr. Juncker – não alvorece no pequeno cérebro nacional que Bruxelas não levantará um dedo para nos tirar de sarilhos. Para a Alemanha, e mesmo para a França, só contam os países, ou as regiões, do antigo império soviético entre Riga e Trieste. Portugal e a periferia mediterrânea (excepto a Espanha) são restos de uma política confusa, que se tem tarde ou cedo de liquidar e que, entretanto, precisam de se resignar a viver numa miséria recatada e cumpridora. Nem a bofetada que o sr. Hollande aplicou aos nossos patriotas de trazer por casa os vai acordar. Afinal, não passámos séculos – como Belgrado e Bucareste – a imitar a França?
Sábado
À vista do Orçamento de Estado para 2017, será que algum português se sente menos miserável, mais confiante, mais disposto a gozar a vida? Será que a sopa do convento aumentou o bastante para fazer esquecer a bancarrota, a austeridade, o tempo perdido de há oito anos para cá? O dr. António Costa (e o afectuoso Marcelo) deviam ler e reler esta frase do cardeal de Retz, arquétipo do intriguista e do manobrador: (cito de memória) “Existe um grande intervalo entre as pessoas estarem fartas de um governo e perceberem que estão fartas de um governo”.
NOTA – O título exacto do livro de que falei a semana passada é “Uma História do Cristianismo – Os primeiros três mil anos”. Peço desculpa.

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