Leitura dispersa, orientada segundo o garrote que estrangula
todos os que gostariam que tanta sensaboria não acontecesse neste país votado a
ela e que Vasco Pulido Valente desmascara, com o desassombro e a irrequietude
de sempre, lembrando propósitos antigos de europeização do país, de uma “Geração de
Setenta”, na sua desmistificação pela sátira, de idênticos ridículos hoje,
prova de que nem um “ridendo castigat
mores” nos salva. Mas como a esperança é a última a morrer, esperemos.
O Diário de Vasco
Pulido Valente
Táxis,
Guterres, Sócrates e a pobreza de Portugal
Observador, 16/10/2016
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As discussões sobre o Orçamento de 2017 deixaram à
vista a pobreza e a fragilidade de Portugal. Sempre foi assim. Agora julgávamos
que “entrar” para a Europa nos fazia europeus. Não fez.
Segunda-feira
À
cautela fiquei em casa. De qualquer maneira ficava, mas desta vez fiquei com
convicção. Esta querela dos taxistas é um retrato da imbecilidade nacional. Primeiro,
não há uma única espécie de taxistas, há três: os taxistas que trabalham
por conta de outrem (desconfio que a maioria), os proprietários de um carro (e
de um alvará) que são no fundo donos de um pequeno negócio de família (feito à
custa de austeridade e poupança) e as empresas que têm dezenas (ou centenas) de
táxis, que, naturalmente, se governam por outros interesses. A lei juntou
as três espécies por uma questão de ignorância e de amadorismo. Vieram brincar
aos governos, brincam aos governos. Resultado: arranjaram um sarilho sem uma
saída digna.
Terça-feira
Agora
que já acabou ou, pelo menos, se atenuou a campanha patriótica para a
canonização de Guterres, talvez se possa olhar para ele com alguma
tranquilidade e medida. Por acaso conheço a criatura. É um homem fraco,
influenciável, indeciso e superficial. A crónica amnésia deste país fez
desaparecer numa semana de glória o péssimo governo que ele dirigiu; um governo
que estava sempre em crise porque o primeiro ministro avançava, recuava, não
era capaz de resolver nada de uma vez para sempre e, como disse Medina
Carreira, caía em terríveis transes de angústia quando tinha de dizer “não”.
Esse é o Guterres de que me lembro e não me parece a encarnação de um grande
diplomata. Quanto ao resto, o católico a roçar o beato, cheio de amor pelos
pobrezinhos, também não me entusiasma: a ONU não precisa de uma nova versão de
Sta. Teresa de Calcutá.
Quarta-feira
Consta
por aí que o eng. Sócrates vai publicar outro livro. Por descargo de
consciência li o primeiro. É um exercício escolar sem originalidade ou rigor,
que, como lhe compete, exibe uma enorme incultura filosófica. Não valia a pena
tornar a falar dele se Sócrates não aparecesse agora com uma nova prestação dos
seus pensamentos, desta vez sobre o “carisma” (um assunto que tresanda a
pretexto para o auto-elogio). Depois do que se disse sobre a autoria e as
vendas da sua alegada tese, nenhum académico com vergonha se atreveria a
lembrar a sua presença sobre a terra, sem o reconhecimento de uma universidade
idónea. O problema de Sócrates é que está morto, intelectual e politicamente
morto, e se recusa a reconhecer esse facto simples. A agitação em que anda
chega a confranger. Sossegadinho na Covilhã ou no diabo ficava melhor.
Quinta-feira
O
debate entre Trump e Clinton não passa de uma zaragata de bordel. A famosa
civilização do Ocidente deu nisto.
Sexta-feira
Quando
se puxa o cobertor para cima, ficam os pés de fora; quando se puxa o cobertor
para baixo fica de fora a cabeça. Depois de se insultarem por causa deste
interessante assunto, os senhores da economia recomendam muito sabiamente que
se estique o cobertor. Mas, sobre a maneira de o esticar, não dizem mais que
meia dúzia de lugares-comuns. As discussões sobre o Orçamento de 2017 deixaram
à vista a pobreza e a fragilidade de Portugal. A choradeira e o ranger de
dentes não levam a nada, nem os triunfos vicários com as façanhas de Ronaldo ou
Guterres. Sempre foi assim. Agora julgávamos que “entrar” para a Europa nos
fazia europeus. Não fez.
Sábado
Ando
a ler uma “História do Cristianismo – Primeiro Milénio”, que tem 1 100 páginas
e ajuda muito quando se tem de esperar. É um interesse antigo que os
meus compatriotas não partilham. Verdade que Saldanha, o da estátua, conseguiu
fazer o maior discurso do Parlamento português sobre o Concílio de Niceia, mas
não era inteiramente bom da cabeça e era Presidente do Conselho e
comandante-em-chefe do exército. Os católicos nunca se interessaram muito
pela origem ou pela teologia da sua fé. Hoje nem sequer há uma boa tradução da
Bíblia (tirando talvez a do Novo Testamento, directamente traduzida do
grego por Frederico Lourenço, que saiu esta semana). O próprio Patriarca
deu a entender a uma amiga minha que não estava muito satisfeito com esta
situação. A Universidade Católica não se interessa e só se preocupa com as
suas ninhadas de economistas, de gestores e daquelas criaturas que se
auto-proclamam “cientistas” políticos. O que estará na cabeça do católico
indígena, fora meia dúzia de orações e de rituais, e de uma vaga crença no Céu
e no Inferno?
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