A
minha irmã e a nossa amiga estavam hoje imparáveis, a contar coisas lá de
Quelimane, onde as duas se encontraram nos anos cinquenta – 55 a 57, mais
precisamente. Falou-se nos chás – Namúli, Licungo, Gurué - onde elas
foram e que ficou gravado em foto, numas escadarias monumentais, de um palacete
do administrador do chá no Gurué, provavelmente já sem escadaria hoje. Mais uma
vez se compararam vivências, a vida na Zambézia sendo realçada pela nossa amiga
reivindicativa do calor das relações zambezianas, em contacto ainda hoje, entre
os que estão vivos e se telefonam, a vida em Lourenço Marques, segundo me
lembro, mais limitada aos universos pessoais, de menor liberdade no caso dos
meus pais que preservavam as relações em família e os piqueniques na praia de
vez em quando aos domingos, no carro dos nossos primos Camilo e Celeste, com os
macacos a vir buscar as nossas bananas e a dessedentarem-se nas torneiras,
postas ali à disposição dos frequentadores, a lembrar as tiradas queirosianas da
“Cidade e as Serras” embora com menos poesia, ligados que éramos aos
prazeres da “vida selvagem”, com torneiras benevolamente perras,
pingando para os macacos, postas pela mão eficiente dos homens: “e muita fonte, posta à beira das veredas, jorrava
por uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados…” O “Se bem
me lembro” continuou e muita coisa mais foi revista, com a nossa amiga a
comandar e a lembrar a sua vida livre de
menina e moça, na mesma Lourenço Marques, onde nós – a minha irmã e eu -
fôramos criadas em liberdade sim, mas à beira da nossa casa. A minha irmã
lembrou uma vez mais o livro do Gavicho de Lacerda sobre a Zambézia, que muito
lhe agradara, na justeza de observação, que ia ao encontro da opinião da nossa
amiga. E acabou a contar, em suspense, uma
que lhe lembrou: “E sabem vocês qual foi o primeiro presente que enviei aos meus pais por um amigo que foi a Lourenço
Marques de barco?” Fiquei intrigada, a lembrar estatuetas de marfim ou
pau-preto, e cinzeiros, como os que o meu pai ganhara nos concursos de quadras
sobre marcas de tabaco, pelos anos cinquenta, mas a minha irmã tirou-nos
rapidamente do suspense. Tratava-se de ananases. Ananases da Zambézia, que pesavam
dois e três quilos, como nunca a gente comera em África. Abacaxis, mais
propriamente chamados, não eram só as pessoas que eram de primeira na Zambézia,
havia também os abacaxis, doces e suculentos, autêntico poema em prosa. Mandara-os
por barco, mas encheram-se de formigas, tão doces eram. Mas a casca era dura, e as formigas foram à
vida. Porque não podemos comer abacaxis da Zambézia? Importados que fossem,
pois nunca provei, os abacaxis que cá se compram nem sequer inspiram as formigas.
Mas
hoje é domingo, dia de doçura, recordo alguns versos com que o meu pai ganharia
os tais objectos de marfim e pau-preto, e, afinal o nosso primeiro rádio, que
era grande, e um ou dois anos depois o segundo, pequeno e todo branco, como
primeiro prémio da marca “Império” (sublinhado o mote):
1ª
quadra: «À porta do Céu, Tibério / Pede a S. Pedro um lugar: / - Fuma
cigarros Império? / - Diz-lhe o santo - Pode entrar». 2ª
Quadra: «Resume-se a vida assim / Para quem tem gosto e critério / Deixar
correr o marfim / Fumar cigarros Império». 3ª
quadra: “Que dos cigarros Império / Nenhum fumador se prive”. / Porque
cigarros Império / Quem os não fuma não vive».
O
prémio anterior fora a várias marcas de cigarros, e apenas me ficou na memória
uma quadra, o meu pai, quando veio para cá quase tudo rasgaria dos seus
escritos e tenho pena:
«Pode
o dinheiro chegar, / Ser o pão suficiente, / Tudo falta, se faltar / Macedónia
a toda a gente.»
Tenho
uma vaga ideia de já ter referido estes versos do meu pai, Mas neste domingo
pouco amistoso, já a arrefecer, a lembrança do meu pai é como um corolário bom
de uma das nossas conversas no café.
Pergunto-me,
em versão Agatha Christie: Porque rasgou
ele os seus versos? Afinal, nessa altura, ainda não rasgáramos os mapas da
pátria que construíramos, e que permanece na saudade de quem lá viveu, de vez
em quando exposta, mesmo a uma simples
mesa de café. Why?
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