domingo, 6 de novembro de 2016

Uma de ananases



A minha irmã e a nossa amiga estavam hoje imparáveis, a contar coisas lá de Quelimane, onde as duas se encontraram nos anos cinquenta – 55 a 57, mais precisamente. Falou-se nos chás – Namúli, Licungo, Gurué - onde elas foram e que ficou gravado em foto, numas escadarias monumentais, de um palacete do administrador do chá no Gurué, provavelmente já sem escadaria hoje. Mais uma vez se compararam vivências, a vida na Zambézia sendo realçada pela nossa amiga reivindicativa do calor das relações zambezianas, em contacto ainda hoje, entre os que estão vivos e se telefonam, a vida em Lourenço Marques, segundo me lembro, mais limitada aos universos pessoais, de menor liberdade no caso dos meus pais que preservavam as relações em família e os piqueniques na praia de vez em quando aos domingos, no carro dos nossos primos Camilo e Celeste, com os macacos a vir buscar as nossas bananas e a dessedentarem-se nas torneiras, postas ali à disposição dos frequentadores, a lembrar as tiradas queirosianas da “Cidade e as Serras” embora com menos poesia, ligados que éramos aos prazeres da “vida selvagem”, com torneiras benevolamente perras, pingando para os macacos, postas pela mão eficiente dos homens:  “e muita fonte, posta à beira das veredas, jorrava por uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados…” O “Se bem me lembro” continuou e muita coisa mais foi revista, com a nossa amiga a comandar e a  lembrar a sua vida livre de menina e moça, na mesma Lourenço Marques, onde nós – a minha irmã e eu - fôramos criadas em liberdade sim, mas à beira da nossa casa. A minha irmã lembrou uma vez mais o livro do Gavicho de Lacerda sobre a Zambézia, que muito lhe agradara, na justeza de observação, que ia ao encontro da opinião da nossa amiga. E  acabou a contar, em suspense, uma que lhe lembrou: “E sabem vocês qual foi o primeiro presente que enviei  aos meus pais por um amigo que foi a Lourenço Marques de barco?” Fiquei intrigada, a lembrar estatuetas de marfim ou pau-preto, e cinzeiros, como os que o meu pai ganhara nos concursos de quadras sobre marcas de tabaco, pelos anos cinquenta, mas a minha irmã tirou-nos rapidamente do suspense. Tratava-se de ananases. Ananases da Zambézia, que pesavam dois e três quilos, como nunca a gente comera em África. Abacaxis, mais propriamente chamados, não eram só as pessoas que eram de primeira na Zambézia, havia também os abacaxis, doces e suculentos, autêntico poema em prosa. Mandara-os por barco, mas encheram-se de formigas, tão doces eram.  Mas a casca era dura, e as formigas foram à vida. Porque não podemos comer abacaxis da Zambézia? Importados que fossem, pois nunca provei, os abacaxis que cá se compram nem sequer inspiram as formigas.
Mas hoje é domingo, dia de doçura, recordo alguns versos com que o meu pai ganharia os tais objectos de marfim e pau-preto, e, afinal o nosso primeiro rádio, que era grande, e um ou dois anos depois o segundo, pequeno e todo branco, como primeiro prémio da marca “Império” (sublinhado o mote):
1ª quadra: «À porta do Céu, Tibério / Pede a S. Pedro um lugar: / - Fuma cigarros Império? / - Diz-lhe o santo - Pode entrar».     2ª Quadra: «Resume-se a vida assim / Para quem tem gosto e critério / Deixar correr o marfim / Fumar cigarros Império».      3ª quadra: “Que dos cigarros Império / Nenhum fumador se prive”. / Porque cigarros Império / Quem os não fuma não vive».
O prémio anterior fora a várias marcas de cigarros, e apenas me ficou na memória uma quadra, o meu pai, quando veio para cá quase tudo rasgaria dos seus escritos e tenho pena:
«Pode o dinheiro chegar, / Ser o pão suficiente, / Tudo falta, se faltar / Macedónia a toda a gente
Tenho uma vaga ideia de já ter referido estes versos do meu pai, Mas neste domingo pouco amistoso, já a arrefecer, a lembrança do meu pai é como um corolário bom de uma das  nossas conversas no café.
Pergunto-me, em versão Agatha Christie:  Porque rasgou ele os seus versos? Afinal, nessa altura, ainda não rasgáramos os mapas da pátria que construíramos, e que permanece na saudade de quem lá viveu, de vez em quando exposta, mesmo  a uma simples mesa de café. Why?

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