Tenho andado numa fona à procura desta canção da Maria
de Lurdes Resende, que a nossa amiga trouxe ontem, escrita em Quelimane,
7/3/1956, segundo anotação sua, e que ontem a minha irmã e eu nos pusemos a
entoar em surdina, por isso não audível no meio do ruído do café. Gostei. E quis
copiá-la da Internet, mas outras lindas canções dela encontrei que não esta. Tive
mesmo que a bater em computador, com o meu dedo indicador direito, avesso a
longas tiradas, o que não foi o caso.
E pus-me a pensar nos avanços socioculturais, que
apagaram - ou não chegaram a acender – uma canção dos tempos do “John, chauffeur
russo” da Max du Veuzit que com tanto gosto líamos e nos fazia sonhar com os
príncipes, conquanto a Maria de Lurdes Resende vá mais longe, à espera do rei,
embora em falsa e orgulhosa expectativa irónica. Era no tempo da diferença de sexos
e desigualdade de direitos, conceitos que as feministas e os feministas fizeram
extinguir do mapa e é por isso que esta linda história de amor nos mostra uma
mulher num plano soberano ao do homem – apesar do que se disse em contrário – o
qual, naqueles tempos recitava juras de um amor eterno com muita firmeza, como
ela mostra. Mas vê-se que as mulheres já nessa altura não criam neles, como
esta canção revela, que a minha irmã e eu recriámos ontem, graças à nossa amiga
que a trouxe dos confins do tempo, o que significa que a cantámos bem, como era
nosso costume, quando arrumávamos o nosso quarto ou limpávamos o pó da sala aos
domingos, alto e bom som, a ouvir-se na rua, não como agora que preferimos
escutar na televisão ou nos fones, ou na rádio. Tempos! Agora que estamos numa
época de igualitarismos, já não aceitamos que uma mulher se mostre tão
altivamente desprezadora, coitado do homem, que teve que descer para a gente
poder subir e já não pode oferecer palácios hipotéticos, pelo menos assim às
claras.
É claro que estou a divagar, os homens continuam a
oferecer palácios às mulheres, ou até vice-versa – há sempre mulheres donas de
palácios e com advogados a defendê-las, muitas vezes em troca dos ditos, tipo “a
bolsa ou a vida” de todos os tempos. Palácios autênticos, não de mentirinha,
como na carta de amor da M. de Lurdes Resende. Mas isso passa-se em planos
superiores, não na fantasia das canções de antigamente. De resto, eram cartas de
puras promessas, coisa que já ninguém escreve. E por isso a bela canção da Maria
de Lurdes Resende não aparece na Net, que mostrava como as mulheres eram de
garra, antigamente.
Mas do que eu gostava mesmo era que a canção da Maria Lurdes
Resende fosse ouvida na internet, por muito reacionária que pareça aos novos
tempos.
Uma carta de amor
Por: Maria de Lurdes
Resende
Recebi
Uma carta de amor
Poética e apaixonada.
Respondi
Ao meu adorador,
Que assim faz quem é
educada.
«Li a sua carta, meu
senhor.
Vou dar-lhe a
resposta desejada.
Diz-me, com paixão,
que sou formosa
Para arredondar a
prosa,
Mas não diz nada.
Diz-me que quisera
ter um reino,
Depô-lo a meus pés
por sua lei.
Ter o meu reinado,
quem me dera!
Entretanto fico à
espera
Que seja rei.
Recebi
Uma carta de amor
Poética e apaixonada.
Respondi
Ao meu adorador
Que assim faz quem é
educada.
Canta o galo doido,
despertador,
Árias à luz da
manhãzinha,
Tem o timbre dum
amor perfeito,
Dá vibrantes dós de
peito
Pela galinha.
As cartas de amor
são papagaios.
Falam porque gostam
de imitar.
Meu senhor, acabe o
seu ensaio
Dê mais guita ao
papagaio
Que anda no ar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário