Desde o inesperado sobre uma figura próxima - nos seus breves
encontros com os nossos políticos, em que se nota o artifício das palavras,
sorrisos ou apertos de mão - à descodificação de atitudes que o revelam como
figura irascível com as suas mulheres – até mesmo em público – ou o espaço em
que se move no Eliseu como um estranho local de perfídias que não se julgara
possíveis ali, numa França sempre amada na projecção do espírito de tantos seus
autores - às perfídias com Merkel, na combinação da falsificação das contas por
conta do nosso défice ou outros semelhantes, ou à sua presteza em lutar nos
focos de guerra - o que me fizera admirá-lo, como homem de coragem - ignorante
da sua facilidade em despachar vidas perniciosas, isso tudo Pulido Valente refere,
em meio do nosso espanto, de François Hollande, segundo dados recolhidos de uma
biografia feita a partir de gravações de conversas, por dois jornalistas
franceses.
E depois de Hollande, o retrato implacável de um Trump, cuja
eleição vem justificada em paralelo com o inacreditável de uma Revolução
Francesa, feita por um povo saturado de ser joguete ignorado ou desprezado nos
jogos do poder que acentuam o cinismo do politicamente correcto, e que escolhe um
candidato incorrecto mas que lhes parece vir a ser seu defensor… E mais essa
questão empolada do Banco, que ele reduz a um fait divers…
Como sempre, uma prosa sonora e livre que nos lava do
corriqueiro baço “que é Portugal a entristecer”…
Vasco Pulido Valente
Observador
13/11/2016,
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Os
bem-pensantes pensavam que a tolerância se fazia por decreto e retórica.
Tiveram triste surpresa. A brutalidade de Trump respondeu ao ressentimento
acumulado da populaça. Agora, teremos de o aturar
Terça-feira
Com
o alarido de Trump, passou quase inteiramente despercebido o livro de dois
jornalistas franceses, Gérard Navet e Fabrice de Llomme, que contam
através de 100 horas de gravações directas o que foi o mandato do
Presidente da França, François Hollande (“Un président ne devrait pas dire ça…”).
O ambiente do Palácio do Eliseu era desde o primeiro dia um ambiente de hipocrisia,
de calúnia, de intriga, de mentira e de grossa traição. Para já não falar
das cenas conjugais (não estou a falar de sexo) que Hollande conduzia em
público, na maior indignidade e que envolveram zaragatas notórias entre as
sucessivas senhoras que caíram na asneira de se envolver com ele. Nos dias
normais, ministros, secretários de Estado e representantes dessa espécie imunda
que dá pelo nome de assessores, não faziam outra coisa senão tentar liquidar o
próximo pelos métodos mais torpes da cartilha. Isto não é novo. O que é
novo é que Hollande se achasse um grande chefe militar e, nessa exaltada
qualidade, não hesitasse em intervir na Líbia, no Mali, na Somália e na
Síria. Ou que desse ordens (que se cumpriram) aos serviços secretos para
assassinar uns tantos indivíduos, que ele julgava perniciosos. Tinha uma
lista, como abertamente se gabou. Mas, para portugueses, o melhor são as
reuniões cúmplices e alegres em que ele combinava jocosamente com Merkel e com
Juncker falsificar as contas do défice francês (que excedia largamente os 3 por
cento) para ajudar a pôr os pequenos países na ordem. Hollande estava
convencido que prestava assim um grande serviço à Europa. Parece que
Marine Le Pen sobe nas sondagens. Como não subiria?
Quarta-feira
Antes
da revolução, a cultura dominante transbordava de “corações sensíveis”
(incluindo o de Maria Antonieta), devotos da razão e de gente “honesta”, que
não roubava ninguém e se vestia com austeridade para se distinguir da
aristocracia da Corte. A tolerância era universal e os costumes brandos.
Ninguém via como a sociedade e o mundo podiam evoluir de outra maneira. Isto
em 1789. Em 1794, esta nata de bem-pensantes, com a sua
tolerância e o seu grande amor à liberdade, estava toda no exílio ou na
guilhotina do Terror. Ninguém naquele cintilante e humano grupo percebera
que não passava de uma minoria pretensiosa, que ofendia o povo, a
pequena-burguesia, a classe média e a nobreza tradicional e conservadora.
Ninguém percebera também que a sua opinião era uma opinião, mas não era a
opinião. Ao contrário do que pensavam, em Paris como na província, a
generalidade das pessoas detestava o arzinho de superioridade daquele
“modernismo” célebre, virtuoso e geralmente de algibeiras cheias. Quando chegou
a altura não houve piedade com ele.
Trump
escapou ao que escapou, não apesar do que disse na campanha, mas por causa do
que disse na campanha. A boa da plebe andava farta de “valores” e de elevados
sentimentos: só os censores do jornalismo e da política os levavam a sério. O
resto da América sofria no campo, na “cintura da ferrugem” ou nas ruas da
violência, onde, com ou sem Obama, começava uma guerra civil larvar. No meio
deste caos, apareceu um primitivo que começou a berrar o indizível: sobre raça,
sobre a igualdade de género, sobre homossexualidade e por aí fora. Os
bem-pensantes pensavam que a tolerância se fazia por decreto e retórica.
Tiveram uma triste surpresa. A brutalidade de Trump respondeu ao
ressentimento acumulado da populaça. E a pouca política que, do lado
dele, entrou na campanha foi uma exibição quase hitleriana de ódio, de raiva e
de vingança. Agora, teremos de o aturar e, pior ainda, sem saber para onde ele
na sua loucura nos levará. Descobrir uma coerência qualquer na série de
enormidades de que o homem se aliviou é impossível. Só nos resta esperar,
resignadamente, que a América se farte dele (a baixo custo) e que por milagre
nós consigamos passar entre os pingos da chuva.
Sábado
Como
é que a salvação do maior banco português, por ser público e carregar as culpas
de alguns governos já bem mortos e quase esquecidos, criou um problema político
e jurídico, que provavelmente o vai prejudicar e, com ele, todo o sistema
financeiro? Para mim o mistério desta história toda está em que não há um
único culpado para o imbróglio. Parece que o primeiro-ministro e o ministro
das Finanças não tiveram nada com isso e que as manadas de juristas da
Presidência do Conselho e da administração central estavam a dormir. Ninguém
confessou um erro, uma inadvertência, uma confusão. Só os partidos (tirando o
PS) se esganiçaram, segundo o seu hábito e vocação, a proclamar a sua virtude e
a santa defesa do contribuinte. Como, aliás, Marcelo Rebelo de Sousa, que
perpassa por detrás desta história toda, esperou para abrir a boca que o
sarilho estivesse consumado: não lhe dizem nada? e ele não pergunta nada?
Mas
como querem estes senhores que os levem a sério, quando um governo normal e um
Presidente normal teriam tratado do assunto em meia dúzia de dias, sem
desentendimentos, sem conflitos, sem a exaltada polémica que por aí consola e
alimenta os comentadores? Que o problema de nomear um nova administração para a
Caixa Geral de Depósitos sirva de causa e de pretexto para pôr o país num
estado de indignação geral (quer a favor de Domingues, quer a favor da lei) é
um sintoma da nossa incapacidade nacional e da crescente deterioração do regime
em que infelizmente vivemos.
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