domingo, 13 de novembro de 2016

De “Mostrengo”, só a “postura medonha e má”… do “Adamastor”


 
Lembrei-me do “Mostrengo”, a propósito do texto de Vicente Jorge Silva. Certamente que só pela sonoridade da palavra, num discurso sintético, cuja simbologia superioriza o poema em dimensão e até em carga emotiva, no reconhecimento da grandeza desse nosso rei D. João II, que “o arrostou”, principal fautor dos empreendimentos marítimos de maior dimensão e previsão de posse, que o Tratado de Tordesilhas de 1494 demarcaria:

O Mostrengo (in Mensagem, F.  Pessoa)
O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

Não, não se trata do gigante que o “homem do leme” domou. Mas de mostrengo tem  a postura e o carisma de bicho apocalíptico que uma sociedade elegeu para seu mentor futuro. Uma sociedade que prima mais pela ligeireza de pensamento – mentecapto – do que pela arrumação ideológica de um pensamento político. Como a sociedade inglesa, afinal, no seu Brexit, de desprezo europeu, que provavelmente também um povo mentecapto – o dirigido pela “bête humaine” dos condicionalismos biológicos e egoístas humanos - fez superiorizar à cordura do pensamento educado por preceitos de civilização e sensatez. Um “mostrengo” em muitas das suas actuações de candidato renhido e reduzido ao chamejar dos insultos e ao balbuciar dos saberes. Mas o povo nele votou, e o povo é soberano. Como foi em tempos, afinal, entre nós, com muitas mexidas depois. E tudo se recompõe, em nós, com o auxílio alheio, de que nunca mais prescindimos, mas eles, os DDT americanos, não vão precisar, de estruturas feitas para atingir longe, até os mundos desconhecidos da nossa galáxia. Entretanto, os valores baseados na ética e na cordura, se escassearem inicialmente, acabarão por recuperar as forças, como sempre aconteceu. E daí, não sei, muitos mostrengos houve e há por esse mundo que causaram e causam muitos estragos. E não aprendemos a lição, que se delineia no horizonte terráqueo, limitado, por enquanto, ao seu espaço terreno, mas com previsão para um abarcar grande de vítimas.
Depois  da leitura deste “Pesadelo americano”, de V.J.Silva, li “Lições da América” de António Barreto, que não resisto a transcrever, como mais uma lição que põe a tónica não sobre o “retrato” daquele, mas sobre os motivos dessa escolha, de insensibilidade ao retrato. Ou antes, de sensibilidade aderente::

O pesadelo americano
Público, 13/11/2016
Afinal, os piores receios concretizaram-se. «O sinal alarmante da degradação da democracia na América», que referi numa crónica anterior sobre a campanha presidencial, esse «grau zero da democracia» representado pelo perigo da eleição de Trump, passou do campo das especulações para o domínio dos factos.
O mítico sonho americano, obsessivamente perseguido desde a fundação do país e no qual se reviam povos de todos os quadrantes, converteu-se em pesadelo. Um pesadelo do qual o mundo se encontra suspenso desde a passada terça-feira, impulsionando vertiginosamente «as tentações populistas e autoritárias mais irracionais» que «se multiplicam um pouco por toda a parte» (como escrevi noutra passagem dessa crónica). Não há extremista político, populista isolacionista, ditador ou candidato a ditador que não se encontre reconfortado com a vitória de Trump.
As tentativas de desdramatização desse pesadelo ou de interpretá-lo racionalmente vêm-se multiplicando, como se aquilo que aconteceu não reflectisse a perigosa e contagiante esquizofrenia revelada pelo eleitorado americano. Afinal, muitos daqueles que não souberam prever o que acabou por acontecer – como eu também não soube, embora tenha apontado o perfil sombrio da candidatura de Hillary Clinton – entregam-se agora a uma espécie de masoquismo explicativo sobre as razões do fenómeno, rendendo-se acriticamente à legitimidade popular e democrática da vitória de Trump (apesar das distorções inerentes ao sistema anacrónico dos ‘grandes eleitores’ e de a maioria dos sufrágios ter sido conquistada por Clinton, conforme sucedera com Al Gore contra George W. Bush). Ora, quantos ditadores – incluindo Hitler ou Mussolini – subiram ao poder legitimados pelo voto popular, como ainda há pouco vimos com o sinistro Duterte, nas Filipinas?
A cólera dos excluídos e marginalizados pelo ‘sistema’ e pela globalização, a raiva contra as elites políticas, mediáticas e financeiras, o ressentimento agressivo da ‘maioria silenciosa’ e da ‘América profunda’, a reconhecida impopularidade de Clinton – mas sem esquecer também a de Trump, antes considerado inapto por uma grande maioria de americanos para o cargo de Presidente – são agora apontados como motivos decisivos da eleição do multimilionário, com um longo e conhecido percurso de falências e fuga ao fisco, para a chefia da Casa Branca.  
Ora, por mais cólera, raiva e ressentimento que existissem – e, pelos vistos, existiam –, não parece possível explicar racionalmente que um perigoso mitómano de uma boçalidade tão grotesca, com um discurso impregnado de insultos, ódio, xenofobia e apelo aos mais baixos instintos humanos, recusando as evidências científicas mais elementares, que deveria suscitar incredulidade junto de qualquer pessoa provida do mínimo senso comum, tenha conseguido tornar-se o homem mais poderoso do Ocidente – e até, para já, do mundo. Afinal, quanto mais Trump levava aos extremos a sua retórica, mais os seus apoiantes se identificavam com ele. 
As manifestações de civilidade que se esforçou por exibir depois da eleição, o seu enquadramento pelo Congresso e outras instituições, serão suficientes para neutralizar os desvarios em que tantos milhões de americanos acabaram rever-se? Eis-nos perante a esquizofrenia de um eleitorado frustrado com a herança de Obama mas atribuindo ao Presidente cessante uma invejável taxa de popularidade. Um eleitorado que cede às paixões mais primárias e se deixa embarcar num pesadelo assustador, imagem invertida do sonho americano. 
Lições da América
António Barreto
DN, 13/11/16
Há uma espécie de concurso entre as elites europeias e americanas de esquerda: quem insulta mais Donald Trump? Quem consegue escolher os epítetos mais violentos? Racista, boçal, cretino, sexista, corrupto, inculto e xenófobo estão entre os mais utilizados. Isto para além das classificações brandas de fascista e populista.
No entanto, o problema não é o de qualificar Trump nem de sublinhar a sua incultura e a sua falta de sofisticação. O problema consiste em saber por que razão foi eleito. Contra a opinião sondada e publicada, este senhor foi escolhido por 60 milhões de americanos que, creio, não são todos racistas, machistas, bandidos, milionários, fascistas e corruptos. E, se fossem, a questão era ainda mais difícil: como é possível que houvesse tantos assim?
O problema não é o de classificar os defeitos de Trump e seus apoiantes nem de mostrar como são violentos, intolerantes, xenófobos e déspotas. O problema é o de saber por que razões perderam os virtuosos, os democratas, os liberais, os intelectuais, os jornalistas e os artistas. O problema é o de saber por que razão os pobres, os desempregados e os marginalizados não votaram em quem deveriam votar, isto é, em quem pensa que a solidariedade, a segurança social, o emprego e a igualdade são exclusivos dos democratas e das esquerdas.
As esquerdas em geral, incluindo artistas, intelectuais, jornalistas, liberais americanos e progressistas europeus, não suportam não ter percebido nem ter previsto o que aconteceu. Como não admitem que são, tantas vezes, responsáveis pelas derivas políticas dos seus países.
Já correm pelo mundo explicações fabulosas sobre estas eleições. As mais hilariantes são duas. Uma diz que, além dos machistas e dos racistas, votaram em Trump os analfabetos, os desesperados, os marginalizados pelo progresso, os desempregados e os supersticiosos. A outra diz que o fiasco das sondagens, dos estudos de opinião e dos jornalistas se deve ao facto de os reaccionários terem vergonha de dizer em quem votariam! Por outras palavras: quem não presta votou em Trump; e quem votou em Trump enganou-nos!
Tal como os democratas em geral, as esquerdas atribuem sempre as culpas das suas derrotas aos defeitos dos outros, da extrema-direita, dos ricos, dos padres, dos fascistas, dos proprietários, dos patrões, dos corruptos e agora dos populistas. Não pensam que os culpados são ou também são eles, os democratas, ou elas próprias, as esquerdas. Raramente se dão conta de uma verdade velha, com dezenas de anos, mas sempre esquecida: as democracias não caem por serem atacadas, não são derrubadas pelos seus inimigos, caem por sua própria responsabilidade, porque enfraquecem, porque se dividem, porque perdem tempo e energias com quezílias idiotas e porque deixam que o sistema político perca de vista as populações. Também, finalmente, porque acreditam nas suas virtudes, porque confiam na sua racionalidade e porque consideram que têm o exclusivo da bondade e da compaixão.
As esquerdas (nas suas versões americana e europeia) apresentam-se cada vez mais como uma soma de sindicatos e de clientelas: mulheres, negros, operários da indústria, desempregados, pensionistas, homossexuais, artistas, intelectuais, imigrantes, latinos ou muçulmanos. Todas as minorias imagináveis, incluindo as mulheres que o não são. Às vezes, resulta. Mas acaba sempre por não resultar. As esquerdas abandonaram as ideias e os direitos universais dos cidadãos e valorizam as suas circunstâncias étnicas, sociais ou sexuais. Como também abandonaram a capacidade de pensar a identidade nacional, entidade ainda hoje vigorosa e reduto de referências pessoais e culturais.
Acima de tudo, a arrogância e a superioridade moral, cultural e política das esquerdas têm destes resultados: afastam-nas do povo e favorecem os inimigos da democracia.

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