Lembrei-me do “Mostrengo”, a propósito
do texto de Vicente Jorge Silva. Certamente que só pela sonoridade da
palavra, num discurso sintético, cuja simbologia superioriza o poema em dimensão e
até em carga emotiva, no reconhecimento da grandeza desse nosso rei D. João
II, que “o arrostou”, principal fautor dos empreendimentos marítimos de
maior dimensão e previsão de posse, que o Tratado de Tordesilhas de 1494
demarcaria:
O Mostrengo (in Mensagem, F. Pessoa)
O mostrengo
que está no fim do mar
Na noite de
breu ergueu-se a voar;
À roda
da nau voou três vezes,
Voou três
vezes a chiar,
E disse: «Quem
é que ousou entrar
Nas minhas
cavernas que não desvendo,
Meus tectos
negros do fim do mundo?»
E o homem do
leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são
as velas onde me roço?
De quem as
quilhas que vejo e ouço?»
Disse o
mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes
rodou imundo e grosso.
«Quem vem
poder o que só eu posso,
Que moro onde
nunca ninguém me visse
E escorro os
medos do mar sem fundo?»
E o homem do
leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do
leme as mãos ergueu,
Três vezes ao
leme as reprendeu,
E disse no fim
de tremer três vezes:
«Aqui ao leme
sou mais do que eu:
Sou um povo
que quer o mar que é teu;
E mais que o
mostrengo, que me a alma teme
E roda nas
trevas do fim do mundo,
Manda a
vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
Não, não se trata do gigante que o “homem do
leme” domou. Mas de mostrengo tem a postura
e o carisma de bicho apocalíptico que uma sociedade elegeu para seu mentor
futuro. Uma sociedade que prima mais pela ligeireza de pensamento – mentecapto –
do que pela arrumação ideológica de um pensamento político. Como a sociedade
inglesa, afinal, no seu Brexit, de desprezo europeu, que provavelmente também
um povo mentecapto – o dirigido pela “bête humaine” dos condicionalismos biológicos
e egoístas humanos - fez superiorizar à cordura do pensamento educado por
preceitos de civilização e sensatez. Um “mostrengo” em muitas das suas
actuações de candidato renhido e reduzido ao chamejar dos insultos e ao
balbuciar dos saberes. Mas o povo nele votou, e o povo é soberano. Como foi em
tempos, afinal, entre nós, com muitas mexidas depois. E tudo se recompõe, em
nós, com o auxílio alheio, de que nunca mais prescindimos, mas eles, os DDT
americanos, não vão precisar, de estruturas feitas para atingir longe, até os mundos
desconhecidos da nossa galáxia. Entretanto, os valores baseados na ética e na cordura,
se escassearem inicialmente, acabarão por recuperar as forças, como sempre
aconteceu. E daí, não sei, muitos mostrengos houve e há por esse mundo que causaram
e causam muitos estragos. E não aprendemos a lição, que se delineia no
horizonte terráqueo, limitado, por enquanto, ao seu espaço terreno, mas com previsão
para um abarcar grande de vítimas.
Depois
da leitura deste “Pesadelo americano”, de V.J.Silva,
li “Lições da América” de António Barreto, que não resisto
a transcrever, como mais uma lição que põe a tónica não sobre o “retrato”
daquele, mas sobre os motivos dessa
escolha, de insensibilidade ao retrato. Ou antes, de sensibilidade aderente::
O
pesadelo americano
Público, 13/11/2016
Afinal, os piores receios concretizaram-se. «O sinal
alarmante da degradação da democracia na América», que referi numa crónica
anterior sobre a campanha presidencial, esse «grau zero da
democracia» representado pelo perigo da eleição de Trump, passou do campo das
especulações para o domínio dos factos.
O
mítico sonho americano, obsessivamente perseguido desde a fundação do país e no
qual se reviam povos de todos os quadrantes, converteu-se em pesadelo. Um pesadelo
do qual o mundo se encontra suspenso desde a passada terça-feira, impulsionando
vertiginosamente «as tentações populistas e autoritárias mais irracionais» que
«se multiplicam um pouco por toda a parte» (como escrevi noutra passagem dessa
crónica). Não há extremista político, populista isolacionista, ditador ou
candidato a ditador que não se encontre reconfortado com a vitória de Trump.
As
tentativas de desdramatização desse pesadelo ou de interpretá-lo racionalmente
vêm-se multiplicando, como se aquilo que aconteceu não reflectisse a perigosa e
contagiante esquizofrenia revelada pelo eleitorado americano. Afinal, muitos
daqueles que não souberam prever o que acabou por acontecer – como eu também
não soube, embora tenha apontado o perfil sombrio da candidatura de Hillary
Clinton – entregam-se agora a uma espécie de masoquismo explicativo sobre as
razões do fenómeno, rendendo-se acriticamente à legitimidade popular e
democrática da vitória de Trump (apesar das distorções inerentes ao sistema
anacrónico dos ‘grandes eleitores’ e de a maioria dos sufrágios ter sido
conquistada por Clinton, conforme sucedera com Al Gore contra George W. Bush).
Ora, quantos ditadores – incluindo Hitler ou Mussolini – subiram ao poder
legitimados pelo voto popular, como ainda há pouco vimos com o sinistro
Duterte, nas Filipinas?
A
cólera dos excluídos e marginalizados pelo ‘sistema’ e pela globalização, a
raiva contra as elites políticas, mediáticas e financeiras, o ressentimento
agressivo da ‘maioria silenciosa’ e da ‘América profunda’, a reconhecida
impopularidade de Clinton – mas sem esquecer também a de Trump, antes
considerado inapto por uma grande maioria de americanos para o cargo de
Presidente – são agora apontados como motivos decisivos da eleição do
multimilionário, com um longo e conhecido percurso de falências e fuga ao
fisco, para a chefia da Casa Branca.
Ora,
por mais cólera, raiva e ressentimento que existissem – e, pelos vistos,
existiam –, não parece possível explicar racionalmente que um perigoso mitómano
de uma boçalidade tão grotesca, com um discurso impregnado de insultos, ódio,
xenofobia e apelo aos mais baixos instintos humanos, recusando as evidências
científicas mais elementares, que deveria suscitar incredulidade junto de
qualquer pessoa provida do mínimo senso comum, tenha conseguido tornar-se o
homem mais poderoso do Ocidente – e até, para já, do mundo. Afinal, quanto mais
Trump levava aos extremos a sua retórica, mais os seus apoiantes se
identificavam com ele.
As
manifestações de civilidade que se esforçou por exibir depois da eleição, o seu
enquadramento pelo Congresso e outras instituições, serão suficientes para
neutralizar os desvarios em que tantos milhões de americanos acabaram rever-se?
Eis-nos perante a esquizofrenia de um eleitorado frustrado com a herança de
Obama mas atribuindo ao Presidente cessante uma invejável taxa de popularidade.
Um eleitorado que cede às paixões mais primárias e se deixa embarcar num
pesadelo assustador, imagem invertida do sonho americano.
Lições
da América
António Barreto
DN, 13/11/16
Há
uma espécie de concurso entre as elites europeias e americanas de esquerda:
quem insulta mais Donald Trump? Quem consegue escolher os epítetos mais
violentos? Racista, boçal, cretino, sexista, corrupto, inculto e xenófobo estão
entre os mais utilizados. Isto para além das classificações brandas de fascista
e populista.
No
entanto, o problema não é o de qualificar Trump nem de sublinhar a sua
incultura e a sua falta de sofisticação. O problema consiste em saber por que
razão foi eleito. Contra a opinião sondada e publicada, este senhor foi
escolhido por 60 milhões de americanos que, creio, não são todos racistas, machistas,
bandidos, milionários, fascistas e corruptos. E, se fossem, a questão era ainda
mais difícil: como é possível que houvesse tantos assim?
O
problema não é o de classificar os defeitos de Trump e seus apoiantes nem de
mostrar como são violentos, intolerantes, xenófobos e déspotas. O problema é o
de saber por que razões perderam os virtuosos, os democratas, os liberais, os
intelectuais, os jornalistas e os artistas. O problema é o de saber por que
razão os pobres, os desempregados e os marginalizados não votaram em quem
deveriam votar, isto é, em quem pensa que a solidariedade, a segurança social,
o emprego e a igualdade são exclusivos dos democratas e das esquerdas.
As
esquerdas em geral, incluindo artistas, intelectuais, jornalistas, liberais
americanos e progressistas europeus, não suportam não ter percebido nem ter
previsto o que aconteceu. Como não admitem que são, tantas vezes, responsáveis
pelas derivas políticas dos seus países.
Já
correm pelo mundo explicações fabulosas sobre estas eleições. As mais
hilariantes são duas. Uma diz que, além dos machistas e dos racistas, votaram
em Trump os analfabetos, os desesperados, os marginalizados pelo progresso, os
desempregados e os supersticiosos. A outra diz que o fiasco das sondagens, dos
estudos de opinião e dos jornalistas se deve ao facto de os reaccionários terem
vergonha de dizer em quem votariam! Por outras palavras: quem não presta votou
em Trump; e quem votou em Trump enganou-nos!
Tal
como os democratas em geral, as esquerdas atribuem sempre as culpas das suas
derrotas aos defeitos dos outros, da extrema-direita, dos ricos, dos padres,
dos fascistas, dos proprietários, dos patrões, dos corruptos e agora dos
populistas. Não pensam que os culpados são ou também são eles, os democratas,
ou elas próprias, as esquerdas. Raramente se dão conta de uma verdade velha,
com dezenas de anos, mas sempre esquecida: as democracias não caem por serem
atacadas, não são derrubadas pelos seus inimigos, caem por sua própria
responsabilidade, porque enfraquecem, porque se dividem, porque perdem tempo e
energias com quezílias idiotas e porque deixam que o sistema político perca de
vista as populações. Também, finalmente, porque acreditam nas suas virtudes,
porque confiam na sua racionalidade e porque consideram que têm o exclusivo da
bondade e da compaixão.
As
esquerdas (nas suas versões americana e europeia) apresentam-se cada vez mais
como uma soma de sindicatos e de clientelas: mulheres, negros, operários da
indústria, desempregados, pensionistas, homossexuais, artistas, intelectuais,
imigrantes, latinos ou muçulmanos. Todas as minorias imagináveis, incluindo as
mulheres que o não são. Às vezes, resulta. Mas acaba sempre por não resultar.
As esquerdas abandonaram as ideias e os direitos universais dos cidadãos e valorizam
as suas circunstâncias étnicas, sociais ou sexuais. Como também abandonaram a
capacidade de pensar a identidade nacional, entidade ainda hoje vigorosa e
reduto de referências pessoais e culturais.
Acima
de tudo, a arrogância e a superioridade moral, cultural e política das
esquerdas têm destes resultados: afastam-nas do povo e favorecem os inimigos da
democracia.
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