Como os alcatruzes da nora,
que o burrinho de olhos vendados fazia mergulhar no poço, nos antigos engenhos.
Disse Fernando Pessoa:
Os alcatruzes da nora
Andam sempre a dar e dar.
É para dentro e p’ra fora
E não sabem acabar.
Muito repetitivos. Mas a água
cai nas calhas para regar e fertilizar. Não sei se o mesmo acontece neste nosso
despejar natural de palavras que se usam, ou com preocupação (do lado da oposição)
ou com artifício (do lado da governação), segundo João Miguel Tavares, estas
últimas, de contrapartida irónica, a esconder respostas que se não têm ou se não querem dar, no vexame
de sentir que estamos sempre atreitos às propostas de Bruxelas de “suspensão
de fundos a Portugal”, embora “de forma prudente, e portanto, cuidadosa”,
como informa o artigo ao lado do primeiro de J.M.Tavares, anterior à decisão
definitiva de Bruxelas e ao Orçamento para 2017. À falta dos resultados
prometidos e naturalmente não cumpridos, de desenvolvimento económico, o
Governo faz chiste devolvendo a parada, dedo espetado acusando, o Diabo é ele, e só ele, P.P.Coelho, o iniciador
da austeridade, tão difícil de ultrapassar, apesar dos remendos já cumpridos,
de reposição de alguns salários (10 euros mais! É obra!) e alguns feriados,
para refazimento do nosso desgaste físico, os serviços públicos a degradar-se,
ao que se diz, por falta de verba.
Julgo que não, que a água fertilizante
não cai nas calhas para a nossa robustez, apenas para o exibicionismo da nossa
astúcia palavrosa.
E o diabo não veio
01/10/2016 - 00:05
O país sobreviveu a 2016. Nada garante que vá
sobreviver a 2017. O diabo, de facto, não veio. Mas o cheiro a enxofre empesta
o ar.
Hoje é dia 1 de Outubro e podemos confirmar que belzebu,
ao contrário daquilo que Pedro Passos Coelhos havia vaticinado em Julho
– recordemos a sua frase histórica: “gozem bem as férias que em Setembro vem aí
o diabo” –, não foi avistado em Portugal, nem nos seus arredores. Concedo-me,
pois, o direito de decretar oficialmente a não vinda do diabo, lamentando que o
líder do PSD deixe mais uma promessa por cumprir, neste caso por manifesta
imprudência: Passos Coelho abusou na gravidade da situação e entregou de
bandeja ao adversário uma frase infeliz. Anunciar o apocalipse com metas
temporais agregadas é assim como anunciar o fim do mundo para 2023 – há
sempre uma boa probabilidade de que tal não se venha a verificar e de o vidente
acabar a fazer figura de parvo.
Se
é certo que PSD e CDS estão obrigados a dramatizar a situação do país, para que
quando as coisas começarem a descambar os eleitores tenham fresco na memória os
seus avisos repetidos, é evidente que Pedro não pode gritar demasiadas vezes
que o lobo está a vir sem que nenhum lobo se veja. Dramatizar a menos é
mau; dramatizar a mais é péssimo. António Costa soube, aliás, aproveitar
isso muito bem, e a ausência de vestígios do demo tem provocado grande
satisfação nas hostes do actual governo. É até possível que estejam a ser
organizadas festas anti-satânicas nas sedes do PS e do Bloco de Esquerda, com o
patrocínio de Mário Centeno. Não quero de modo algum estragar esse breve
momento de felicidade aos apoiantes do governo. Deixo apenas um conselho amigo:
cuidado com o excesso de festejos.
O
governo e os seus apoiantes estão a confundir capacidade de resistência com
estratégia política. A esquerda acha que está a ganhar porque está a
aguentar – não porque esteja realmente a chegar a lado algum, ou porque tenha
encontrado um caminho alternativo para a sustentabilidade das finanças
públicas. Não há qualquer tempo novo para o país, nenhuma página que se tenha
virado. A única estratégia política de António Costa é resistir, gerir os
problemas do presente e atrasar ao máximo os problemas do futuro. Soluções não
existem; existem apenas adiamentos. As cativações não são um exclusivo de Mário
Centeno. Todo o governo é uma imensa cativação – cativado à direita pelas
regras da União Europeia; cativado à esquerda pelos pactos que assinou com o
Bloco e com o PCP.
É
por isso que quando Passos Coelho aparece na comunicação social a anunciar a
vinda do diabo setembrista ele acaba por fazer um enorme favor a Costa.
Passos dramatizou de mais e o governo capitalizou ganhos políticos sem fazer
coisa alguma – bastou-lhe, afinal, que o diabo não tivesse vindo. Infelizmente
para Costa, não fazer nada é apenas solução durante um período limitado de
tempo. O seu governo aproveitou o embalo que vinha de trás para o país
continuar a girar em 2016, mas essa estratégia parece ser manifestamente
insuficiente para 2017. Ainda que o défice de 2016 consiga por milagre
ficar à roda dos 2,5%, ninguém percebe como é que, com as actuais políticas e
as limitações nos cortes de funcionários públicos e reformados, será possível
atingir em 2017 o 1,4% de défice previsto no Programa de Estabilidade. Daí
o risco de a esquerda, e dos seus apoiantes, muitas vezes confundirem
resistência com vitória. Não há vitória alguma. O país sobreviveu a 2016. Nada
garante que vá sobreviver a 2017. Esse é o grande drama de António Costa. O
diabo, de facto, não veio. Mas o cheiro a enxofre empesta o ar.
O diabo já chegou: chama-se
Passos Coelho
05/11/2016 - 06:37
A diabolização de Passos Coelho é o verdadeiro cimento
que sustenta o governo.
Em 2016 não tivemos um
governo, mas um regoverno: o programa de António Costa e dos
partidos à sua esquerda limitou-se a repor salários, horas de trabalho,
feriados. Em 2017, pelo que se pôde ver no debate sobre o orçamento, também
não vamos ter um governo, mas um contragoverno: o programa de
António Costa e dos partidos à sua esquerda não tem, mais uma vez, nenhuma
estratégia para mostrar, limitando-se a vincar as diferenças em relação ao que
seria o programa de um alegado governo de direita em Portugal. “Lembrem-se
o que sofreram às mãos do PSD e do CDS”, disse Carlos César no
Parlamento, naquilo que me pareceu um resumo perfeito do que pudemos escutar
nos últimos dias. A tese da esquerda é esta: a grande força do Orçamento
Seja o que Deus Quiser 2017 é ter impedido o Orçamento Seja o que Passos Quiser
2016.
Pedro Passos Coelho foi muito apressado a anunciar a
vinda do diabo, mas para a esquerda o diabo chegou há muito – e é ele. Finda
a grande vaga das reposições, a diabolização de Passos Coelho é o verdadeiro
cimento que sustenta o governo. O Bloco de Esquerda admite que este
orçamento tem limitações… mas se fosse um orçamento de direita seria
bastante pior. O PCP admite que o orçamento fica muito aquém dos seus
desejos… mas se fosse o de Passos Coelho seria o terramoto de 1755. Ora,
quando se tem de engolir sapos tantas vezes, deixa de ser sacrifício para
passar a ser gastronomia. O Bloco e o PCP já não estão a engolir sapos –
eles estão a degustar perninhas de rã. Não vale a pena continuarem a fazer
caretas. Estão a comer de livre vontade. E a gostar.
Se há mérito que António Costa tem é precisamente ter
conseguido esse extraordinário empenho na protecção do governo por parte da
esquerda, que é muito maior do que aquilo que alguma vez imaginei possível. Foi
por isso que, durante a tarde de ontem, Carlos César não perdeu dois minutos
a defender o orçamento de Estado – passou o tempo todo a atacar PSD e CDS.
“Ainda não se habituaram à condição de oposição”, disse ele. É verdade. Mas
ainda mais espantoso é o PS não se ter habituado à condição de governo.
É certo que António Costa iniciou o seu discurso em
pose de estadista, recordando os “seis pilares do programa nacional de
reformas”, aos quais chamou uma “estratégia de médio e longo prazo”,
e que inclui medidas tão originais quanto a educação para adultos, a
“indústria 4.0” (uma nova versão do plano tecnológico) e o Simplex +.
Desconfio que José Sócrates terá pensado para com os seus botões: “Eu até posso
não ter escrito os meus livros, mas pelo menos escrevi o programa de reformas
de António Costa.” Mas depois de ter perdido algum tempo a relembrar medidas
absolutamente fundamentais para a salvação do país, tais como a inauguração
de lojas do cidadão e o desenvolvimento do regadio, a pose de estadista
rapidamente ficou para trás, e o primeiro-ministro animou enfim as hostes ao
soltar o grito de guerra do défice: “Nós conseguimos o que vocês falharam após
quatro anos de governo!”
A partir desse momento, Costa continuou a martelar
impiedosamente a oposição, como se ainda fosse ela que estivesse a
governar. Poder-se-á argumentar que tudo isto é muito poucochinho. E, no
entanto, é tudo aquilo que António Costa tem e é tudo aquilo que os seus
apoiantes querem ouvir. Passos Coelho é o belzebu de estimação da esquerda
portuguesa, e a solidez do seu pacto deriva disso. Não é preciso amor quando há
tanto ódio para dar.
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