domingo, 13 de novembro de 2016

Assim somos, assim seja, amen



Como os alcatruzes da nora, que o burrinho de olhos vendados fazia mergulhar no poço, nos antigos engenhos. Disse Fernando Pessoa:
Os alcatruzes da nora
Andam sempre a dar e dar.
É para dentro e p’ra fora
E não sabem acabar.
Muito repetitivos. Mas a água cai nas calhas para regar e fertilizar. Não sei se o mesmo acontece neste nosso despejar natural de palavras que se usam, ou com preocupação (do lado da oposição) ou com artifício (do lado da governação), segundo João Miguel Tavares, estas últimas, de contrapartida irónica, a esconder respostas  que se não têm ou se não querem dar, no vexame de sentir que estamos sempre atreitos às propostas de Bruxelas de “suspensão de fundos a Portugal”, embora “de forma prudente, e portanto, cuidadosa”, como informa o artigo ao lado do primeiro de J.M.Tavares, anterior à decisão definitiva de Bruxelas e ao Orçamento para 2017. À falta dos resultados prometidos e naturalmente não cumpridos, de desenvolvimento económico, o Governo faz chiste devolvendo a parada, dedo espetado acusando, o  Diabo é ele, e só ele, P.P.Coelho, o iniciador da austeridade, tão difícil de ultrapassar, apesar dos remendos já cumpridos, de reposição de alguns salários (10 euros mais! É obra!) e alguns feriados, para refazimento do nosso desgaste físico, os serviços públicos a degradar-se, ao que se diz, por falta de verba.
Julgo que não, que a água fertilizante não cai nas calhas para a nossa robustez, apenas para o exibicionismo da nossa astúcia palavrosa.

E o diabo não veio
01/10/2016 - 00:05
O país sobreviveu a 2016. Nada garante que vá sobreviver a 2017. O diabo, de facto, não veio. Mas o cheiro a enxofre empesta o ar.
Hoje é dia 1 de Outubro e podemos confirmar que belzebu, ao contrário daquilo que Pedro Passos Coelhos havia vaticinado em Julho – recordemos a sua frase histórica: “gozem bem as férias que em Setembro vem aí o diabo” –, não foi avistado em Portugal, nem nos seus arredores. Concedo-me, pois, o direito de decretar oficialmente a não vinda do diabo, lamentando que o líder do PSD deixe mais uma promessa por cumprir, neste caso por manifesta imprudência: Passos Coelho abusou na gravidade da situação e entregou de bandeja ao adversário uma frase infeliz. Anunciar o apocalipse com metas temporais agregadas é assim como anunciar o fim do mundo para 2023 – há sempre uma boa probabilidade de que tal não se venha a verificar e de o vidente acabar a fazer figura de parvo.
Se é certo que PSD e CDS estão obrigados a dramatizar a situação do país, para que quando as coisas começarem a descambar os eleitores tenham fresco na memória os seus avisos repetidos, é evidente que Pedro não pode gritar demasiadas vezes que o lobo está a vir sem que nenhum lobo se veja. Dramatizar a menos é mau; dramatizar a mais é péssimo. António Costa soube, aliás, aproveitar isso muito bem, e a ausência de vestígios do demo tem provocado grande satisfação nas hostes do actual governo. É até possível que estejam a ser organizadas festas anti-satânicas nas sedes do PS e do Bloco de Esquerda, com o patrocínio de Mário Centeno. Não quero de modo algum estragar esse breve momento de felicidade aos apoiantes do governo. Deixo apenas um conselho amigo: cuidado com o excesso de festejos.
O governo e os seus apoiantes estão a confundir capacidade de resistência com estratégia política. A esquerda acha que está a ganhar porque está a aguentar – não porque esteja realmente a chegar a lado algum, ou porque tenha encontrado um caminho alternativo para a sustentabilidade das finanças públicas. Não há qualquer tempo novo para o país, nenhuma página que se tenha virado. A única estratégia política de António Costa é resistir, gerir os problemas do presente e atrasar ao máximo os problemas do futuro. Soluções não existem; existem apenas adiamentos. As cativações não são um exclusivo de Mário Centeno. Todo o governo é uma imensa cativação – cativado à direita pelas regras da União Europeia; cativado à esquerda pelos pactos que assinou com o Bloco e com o PCP.
É por isso que quando Passos Coelho aparece na comunicação social a anunciar a vinda do diabo setembrista ele acaba por fazer um enorme favor a Costa. Passos dramatizou de mais e o governo capitalizou ganhos políticos sem fazer coisa alguma – bastou-lhe, afinal, que o diabo não tivesse vindo. Infelizmente para Costa, não fazer nada é apenas solução durante um período limitado de tempo. O seu governo aproveitou o embalo que vinha de trás para o país continuar a girar em 2016, mas essa estratégia parece ser manifestamente insuficiente para 2017. Ainda que o défice de 2016 consiga por milagre ficar à roda dos 2,5%, ninguém percebe como é que, com as actuais políticas e as limitações nos cortes de funcionários públicos e reformados, será possível atingir em 2017 o 1,4% de défice previsto no Programa de Estabilidade. Daí o risco de a esquerda, e dos seus apoiantes, muitas vezes confundirem resistência com vitória. Não há vitória alguma. O país sobreviveu a 2016. Nada garante que vá sobreviver a 2017. Esse é o grande drama de António Costa. O diabo, de facto, não veio. Mas o cheiro a enxofre empesta o ar.

O diabo já chegou: chama-se Passos Coelho
05/11/2016 - 06:37
A diabolização de Passos Coelho é o verdadeiro cimento que sustenta o governo.
Em 2016 não tivemos um governo, mas um regoverno: o programa de António Costa e dos partidos à sua esquerda limitou-se a repor salários, horas de trabalho, feriados. Em 2017, pelo que se pôde ver no debate sobre o orçamento, também não vamos ter um governo, mas um contragoverno: o programa de António Costa e dos partidos à sua esquerda não tem, mais uma vez, nenhuma estratégia para mostrar, limitando-se a vincar as diferenças em relação ao que seria o programa de um alegado governo de direita em Portugal.Lembrem-se o que sofreram às mãos do PSD e do CDS”, disse Carlos César no Parlamento, naquilo que me pareceu um resumo perfeito do que pudemos escutar nos últimos dias. A tese da esquerda é esta: a grande força do Orçamento Seja o que Deus Quiser 2017 é ter impedido o Orçamento Seja o que Passos Quiser 2016.
Pedro Passos Coelho foi muito apressado a anunciar a vinda do diabo, mas para a esquerda o diabo chegou há muito – e é ele. Finda a grande vaga das reposições, a diabolização de Passos Coelho é o verdadeiro cimento que sustenta o governo. O Bloco de Esquerda admite que este orçamento tem limitações… mas se fosse um orçamento de direita seria bastante pior. O PCP admite que o orçamento fica muito aquém dos seus desejos… mas se fosse o de Passos Coelho seria o terramoto de 1755. Ora, quando se tem de engolir sapos tantas vezes, deixa de ser sacrifício para passar a ser gastronomia. O Bloco e o PCP já não estão a engolir sapos – eles estão a degustar perninhas de rã. Não vale a pena continuarem a fazer caretas. Estão a comer de livre vontade. E a gostar.
Se há mérito que António Costa tem é precisamente ter conseguido esse extraordinário empenho na protecção do governo por parte da esquerda, que é muito maior do que aquilo que alguma vez imaginei possível. Foi por isso que, durante a tarde de ontem, Carlos César não perdeu dois minutos a defender o orçamento de Estado – passou o tempo todo a atacar PSD e CDS. “Ainda não se habituaram à condição de oposição”, disse ele. É verdade. Mas ainda mais espantoso é o PS não se ter habituado à condição de governo.
É certo que António Costa iniciou o seu discurso em pose de estadista, recordando os “seis pilares do programa nacional de reformas”, aos quais chamou uma “estratégia de médio e longo prazo”, e que inclui medidas tão originais quanto a educação para adultos, a “indústria 4.0” (uma nova versão do plano tecnológico) e o Simplex +. Desconfio que José Sócrates terá pensado para com os seus botões: “Eu até posso não ter escrito os meus livros, mas pelo menos escrevi o programa de reformas de António Costa.” Mas depois de ter perdido algum tempo a relembrar medidas absolutamente fundamentais para a salvação do país, tais como a inauguração de lojas do cidadão e o desenvolvimento do regadio, a pose de estadista rapidamente ficou para trás, e o primeiro-ministro animou enfim as hostes ao soltar o grito de guerra do défice: “Nós conseguimos o que vocês falharam após quatro anos de governo!”
A partir desse momento, Costa continuou a martelar impiedosamente a oposição, como se ainda fosse ela que estivesse a governar. Poder-se-á argumentar que tudo isto é muito poucochinho. E, no entanto, é tudo aquilo que António Costa tem e é tudo aquilo que os seus apoiantes querem ouvir. Passos Coelho é o belzebu de estimação da esquerda portuguesa, e a solidez do seu pacto deriva disso. Não é preciso amor quando há tanto ódio para dar. 

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